Ações,
reflexões e a recriação do Rio Grande do Sul
No
último mês acompanhamos estarrecidos o maior desastre climático da história do
Brasil: 600 mil pessoas fora de suas casas, 80 mil em abrigos, mais de cem
trechos de estradas e pontes destruídos, milhares de escolas, postos de saúde,
comércios, indústrias e até mesmo nosso aeroporto internacional com
perspectivas de ficar fechado por, no mínimo, seis meses.
Tais
fatos têm nos mobilizado a agir em diferentes espaços. Milhares de pessoas sem
condições de acessar alimentos ou água passaram a depender da distribuição de
doações e de cozinhas solidárias. Milhares de casas e bairros têm sido limpos a
partir de incontáveis mutirões de limpeza e outros ainda precisarão de uma
grande mobilização de recursos e de mão de obra para suas reconstruções. Uma
série de obras como o replantio de milhões de árvores, a recuperação de solos e
lavouras, a construção de diques e desvios de cursos d’água precisarão ser
executadas no médio prazo.
Um
desastre dessa magnitude nos coloca, desde o primeiro instante, frente a um
gigantesco desafio: em vez de sucumbirmos perante a força da natureza e da
nossa falta de preparação prévia para lidar com tais situações, devemos
arregaçar as mangas a fim de começarmos imediatamente a reconstruir nosso
estado. Tal urgência parece estar alinhada às famosas frases de Karl Marx: “Até
agora os filósofos se preocuparam em interpretar o mundo de várias formas. O
que importa é transformá-lo”.
Marx,
angustiado pelas muitas injustiças que percebia em seu tempo, parece deixar
subentendido que a reflexão e a ação são contraditórias, isto é, não apenas
etapas independentes, mas escolhas que se repelem mutuamente. Consideramos,
contudo, que essa interpretação de Marx comunica um erro fundamental. Para nós,
a ação está em continuidade com a reflexão e vice-versa. O ponto aqui é
claramente normativo. Devemos agir a partir das reflexões e devemos refletir
para agir. Se é certo que, em algumas situações extremas e de urgência, parece
não existir tempo para ponderar, é igualmente certo que agimos melhor quando
baseamos nossas ações em considerações refletidas que nos permitem evitar erros
passados, prever melhor o futuro e organizar de forma mais sólida as estruturas
de uma sociedade mais justa.
É
com esse espírito que foi idealizado pelo Departamento de Filosofia da UFSM o
ciclo de palestras online Clima e Sociedade, com apoio da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), dos programas de pós-graduação em
Filosofia da UFPel, UFRGS, UCS, PUCRS, UFSM, Unisinos, do programa de
pós-graduação em Ensino de Humanidades e Linguagens (PPGMEHL) da UFN e do IFRS.
Nesse ciclo, cerca de setenta pensadores do Brasil e do exterior associados aos
mais diferentes campos de estudos e práticas estarão propondo, ao longo de três
meses, uma série de palestras, discussões e debates sobre distintas questões
filosóficas, políticas, sociais, ambientais, artísticas, econômicas etc.
associadas ao desastre supracitado. Tal iniciativa tem como um de seus propósitos
socorrer os atingidos por meio da destinação de todo o valor líquido arrecadado
pela venda a pessoas atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Trata-se,
pois, também de uma ação de solidariedade.
Em
paralelo a isso, ainda que sem ignorar que o presente momento chama para a
ação, o presente ciclo de palestras também serve como defesa de que essas ações
sejam realizadas de forma refletida. A partir dessa lógica, esperamos que nosso
Estado não seja apenas reconstruído, mas recriado sob outras bases. Em outras
palavras, esperamos que essa aproximação entre ações e reflexões nos permita
recriar nossa sociedade, nos permita reconstruir de forma refletida melhores
relações sociais, tornando, em certo sentido, real aquilo que o projeto do
atual governo Joe Biden ao menos apresentou como sua intenção: “Build Back
Better”, isto é, “Reconstruir Melhor”.
Até
aqui, defendemos a importância de construirmos um ciclo virtuoso entre ações e
reflexões. Nas três seções a seguir, apresentamos, de forma mais concreta e
propositiva, algumas reflexões originadas pelas observações das muitas ações
associadas a diferentes formas de enfrentamento do desastre mencionado. Para
tal, em primeiro lugar, provocamos alguns debates relacionados a como temos nos
organizado (e como deveríamos nos organizar) socialmente em situações extremas.
Além disso, propomos a reflexão sobre o papel da ciência e da racionalidade
pública em tais momentos de crise. Finalmente, introduzimos a discussão sobre a
importância e os perigos das emoções e do engajamento público em situações como
essas.
• O Estado e a sociedade civil no
enfrentamento de desastres
Vivemos
em um país (até então) pouco afetado por desastres naturais, tais quais
furacões e terremotos. Além disso, somos um povo que não costuma projetar o
longo prazo (sobre esse segundo ponto, vale a leitura de O valor do amanhã, de
Eduardo Giannetti). Finalmente, nossa jovem democracia parece ainda pouco
preparada para dar guarida a movimentos políticos que transcendam interesses
partidários de curto prazo e que permitam a real colaboração entre os
diferentes entes federativos (cidades, estados e União), bem como entre os
diferentes setores da sociedade civil organizada (empresas, instituições,
ONGs). Não é raro vermos a aparição – e até a defesa escancarada – de um
antagonismo rasteiro onde universidades são colocadas como concorrentes das
empresas, ONGs como contrárias ao desenvolvimento econômico, órgãos de controle
como empecilhos para o progresso nacional.
Principalmente
em momentos de crise, esses – e talvez outros – fatores somados criam uma
sensação de não apenas vivermos um vácuo de lideranças políticas, ou ao menos
um despreparo dessas lideranças para agir em tais situações, mas também uma
cisão fundamental no tecido social que gera uma série de dificuldades para o
diálogo e a cooperação entre diferentes entidades e setores. Nesses momentos,
frases como “É o povo pelo povo!” apontam na direção da defesa, por vezes de
uma maneira até ingênua, do Estado mínimo e da anarquia. Diante da ineficiência
e morosidade do Estado e da necessidade de atuação urgente para salvar vidas,
surgiu um sentimento perigoso de que não precisamos de Estado algum. Nesse
sentido, é comum ouvirmos o louvor ao voluntariado colocado como contrário a
uma rede organizada e robusta de serviços públicos, o apelo a doações e à
caridade no lugar de uma defesa pela cobrança de impostos e pela sua justa
redistribuição. O trabalho voluntário e as doações (que, vale dizer, devem ter
o seu lugar) surgem como soluções mágicas e, mais ainda, como substitutos e não
como complementos da ação estatal.
A
provocação que fica é: essa postura aponta o caminho que, entre outras coisas,
garantirá a reconstrução das casas, do trabalho e das vidas dos milhares de
atingidos? Além disso, por que e em que sentido a necessidade do voluntariado e
a honesta solidariedade em uma crise de tamanha proporção precisam ser
colocados como contrários à necessária atuação do Estado?
Por
sua vez, a provocação serve como um chamado a um segundo momento no
enfrentamento da crise gigantesca que ainda estamos vivendo. É claro que o
voluntariado e as redes de solidariedade foram fundamentais para salvar vidas
no momento mais agudo da crise e é claro que ainda continuam sendo necessárias
nesse momento. Mas agora é chegado também o momento de nos dedicarmos a pensar
a reconstrução do Rio Grande do Sul a partir de bases mais sólidas e maduras em
que as pessoas, a sociedade civil organizada e o Estado precisam cooperar. Sem
dúvida, cada um dentro de seus limites e expertises, mas tendo como objetivo o
bem comum. Ou ficaremos gritando palavras de ordem e repassando memes, apenas
para continuar a guerra cultural e reafirmar nossas próprias convicções
políticas, enquanto as pessoas permanecem sem água potável e as crianças sem
escolas? É certo que a atuação da sociedade civil pode (e deve) contribuir para
a recriação do nosso estado. Contudo, também é certo que sem a presença forte
do Estado não iremos avançar. Finalmente, associado a esse último ponto, é
igualmente certo que se apostarmos na fragmentação do tecido social e não na
cooperação horizontal e ativa de todos os agentes, não promoveremos essa tão
necessária reconstrução/recriação.
• A ciência e a racionalidade pública
no enfrentamento de desastres
Como
outra solução óbvia, ouvimos o apelo em favor da razão, da ciência, da escuta
aos especialistas. Sobre esse ponto, é interessante notar que, nos últimos
anos, os defensores dessa visão parecem estar na mesma trincheira dos que
defendem o respeito à tradição milenar dos povos originários. Certamente há pontos
de contato entre essas duas visões, mas, ao menos em relação a tal alinhamento,
sobra uma pergunta de difícil resposta: Como conjugar ciência e saberes
ancestrais? Elaborando um pouco mais a pergunta: Como conjugar a valorização à
ciência e a celebração de algumas cosmovisões não calcadas em princípios
consagrados pelo método científico como, por exemplo, aqueles que fundamentam
as práticas de muitos povos indígenas que operam a partir da celebração de
mitos e que entendem elementos da natureza como divindades? Por certo, muito já
se pensou sobre a compatibilização entre a fé e a ciência, mas o que nos causa
uma certa estranheza é o apelo que alguns fazem à ciência quando tal defesa é
conveniente para criticar a fé daqueles que têm visões opostas, e o apelo a fé
nos saberes ancestrais quando tal tese serve para se opor a práticas que
agridem algo considerado sagrado como a natureza.
Uma
segunda provocação a muitos dos atuais defensores da ciência está ligada à
mudança de suas posturas, outrora bastante críticas, em relação ao fazer
científico. Até o início dos anos 2000, era bastante comum serem ouvidas, ao
menos entre boa parte dos estudantes das Ciências Humanas, fortes críticas
direcionadas aos “poderosos” que faziam uso do discurso científico para impor
suas visões de mundo. Não raro, a ciência, a razão, a verdade e a objetividade
eram vistas como construções sociais que serviam para legitimar o status quo,
para proteger uma casta de privilegiados. A razão e a ciência costumavam ser
contrapostas às emoções e identificadas como símbolos de uma forma de agir no
mundo que valorizava o individualismo, as faltas de empatia e de preocupação
com o próximo. Como explicar essa ampla defesa da ciência por parte de muitos
progressistas que a criticavam? Uma crítica mais recente com relação à noção de
objetividade científica mira não na busca pela objetividade em si, pedra de
toque do método científico, mas na possível omissão de pressupostos que
estariam escondidos na prática científica. Será possível manter uma crítica aos
métodos científicos que se pretendem objetivos quando escondem pressupostos,
por exemplo, misóginos e racistas, sem descredibilizar totalmente a ciência?
Por
fim, uma terceira dimensão de desafio, agora tanto aos cientistas quanto aos
jornalistas profissionais. Nos últimos anos, assim como os cientistas, os
jornalistas e os grandes meios de comunicação também deixaram de ocupar a
posição de vilões nos discursos progressistas. Negacionistas e influenciadores
que fazem uso das redes sociais e compartilham “notícias” de origens duvidosas,
para dizer o mínimo, são os novos vilões. Concordamos, sem dúvida, que devemos
defender a ciência e o jornalismo sério, que é preciso calcar o debate público
na busca pela informação confiável e pelo escrutínio honesto. No entanto, agora
olhando para a forma com que os cientistas e jornalistas (não) dialogam,
deixamos duas perguntas também com tom de provocação: Será que os cientistas,
de fato, se esforçam para participar do debate público e para traduzir suas
investigações à população? Há um movimento entre os cientistas de valorização
daqueles que buscam promover a divulgação científica? Ou esses são vistos como
pensadores menores, que, no limite, não têm lugar naquele espaço acadêmico? Por
outro lado, voltando a provocação aos jornalistas e aos meios de comunicação
tradicionais, podemos perguntar: Será que os meios de comunicação realmente se
esforçam para fundamentar suas notícias em evidências científicas? Mesmo nesses
meios de comunicação tradicionais, não parece haver mais espaço às notícias
sensacionalistas do que às notícias baseadas em evidências científicas?
• As emoções e o engajamento público no
enfrentamento de desastres
Por
fim, não há dúvida de que a dor dos gaúchos produziu um gigantesco sentimento
de solidariedade pelo Brasil (e somos muito gratos por isso). Contudo, ainda
que muita ajuda tenha resultado desse sentimento, devemos nos preparar para o
futuro próximo, para o momento em que deixaremos de ser manchete. Teremos força
e união para recriar uma sociedade a fim de mitigar as mazelas sociais ainda
mais escancaradas por esse desastre? Essa união virá da cultivação de um
sentimento de pertencimento? Aqui no Sul, esse sentimento muitas vezes também
marca um distanciamento, para dizer o mínimo, do restante do país. Como
fortalecer a solidariedade interna sem deixar de valorizar e se preocupar com
os outros cidadãos do Brasil e do mundo? Em outras palavras, como cultivar um
sentimento de pertencimento virtuoso que, por um lado, estimule a solidariedade
interna, mas por outro, não gere repulsa a quem é de fora. Em uma nova
tentativa de reconstruir essa ideia: como desenvolver o espírito de comunidade
sem estimular a xenofobia?
Soma-se
a isso a nossa completa incapacidade de encontrar saídas inteligentes para a
ligeireza dos afetos e das emoções mobilizadas pelas redes sociais. O ódio
político, o nojo pelo diferente, a indignação e a raiva imediatas perante
aquilo que nos parece injusto ou inevitável muitas vezes nos coloca em uma
situação de oposição e de fechamento epistêmico a outras perspectivas e
soluções. Não queremos dizer que, por exemplo, diante do racismo ou da
violência de gênero, deveríamos ser lenientes, não se trata disso. Porém, se
trata de manter a mentalidade arejada a fim de permitir que outros afetos
mobilizados a partir da reflexão atenta e da empatia possam surgir. Sucumbir à
dinâmica das redes, ou seja, trazer sua superficialidade para todos os âmbitos
de nossa vida pode ser fatal em um momento de crise como esse que estamos
vivendo. Em algum momento, e este é o momento, é preciso dar lugar a outros
afetos como o pertencimento, a solidariedade sincera, a cooperação e a
resiliência. Seremos capazes de promover engajamento a partir desse tipo de
emoção pública? Seremos capazes de guardar algumas diferenças e sentar à mesa
para negociar, planejar e agir?
• Michael Sandel e o engajamento
público
Michael
Sandel, talvez o mais aclamado filósofo político da atualidade, abriu nosso
ciclo de palestras, que seguirá até meados de setembro, com uma brilhante roda
de conversa. Nessa roda, Sandel usou uma linda estratégia: dar protagonismo a
três representantes de comunidades periféricas (a Negra Jaque, a Bruna e o
Victor) e, a partir de seus entendimentos sobre o desastre climático
mencionado, elaborar importantes reflexões sobre como entender esse momento e,
por óbvio, indicar caminhos para superá-lo.
Tal
postura do professor Sandel, que nessa roda de conversa teve até mais destaque
do que as ideias inovadoras por ele defendidas ao longo de sua profícua
carreira, vai realmente ao encontro da essência de seu entendimento sobre para
onde devemos apontar enquanto sociedade. Segundo ele, só evoluiremos
socialmente a partir de uma maior convivência mútua, isto é, a partir do
fortalecimento de uma vida realmente comunitária. Foi um pequeno exemplo desse
diálogo transversal, dessa troca de saberes, que a conversa mencionada por ele
simbolizou. Que os fatos de nós da classe média (certamente a grande maioria
dos leitores deste artigo) termos levado comida, dado carinho, entrado nas
casas, tocado, conhecido a realidade daquela parcela da população normalmente
esquecida tenham servido para furar as bolhas que nos separavam! Que esse
espírito de comunidade emerja definitivamente e siga navegando pelas águas
calmas da busca pela justiça social!
Fonte:
Por Gabriel Goldmeier e Mitieli Seixas da Silva, no Le Monde
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