sexta-feira, 31 de maio de 2024

Reconhecimento da Palestina por europeus não muda ocupação nem assentamentos, diz analista

Isolamento diplomático de Israel se intensifica com reconhecimento do Estado da Palestina por Espanha, Noruega e Irlanda e retirada do embaixador do Brasil de Tel Aviv. Mas sem apoio dos EUA e com continuada ocupação dos territórios palestinos, pressão internacional sob Israel tem efeitos limitados, acreditam analistas ouvidos pela Sputnik Brasil.

Nesta quarta-feira (29), o Ministério das Relações Exteriores do Brasil emitiu nota de apoio ao reconhecimento do Estado da Palestina por Espanha, Irlanda e Noruega. Para o Itamaraty, reconhecimento "constitui notável avanço histórico que contribui para responder aos anseios de paz, liberdade e autodeterminação daquele povo".

O anúncio oficial foi feito no mesmo dia em que o Brasil decidiu retirar permanentemente o seu embaixador Frederico Meyer de Israel, aprofundando a grave crise diplomática entre os países. Apesar de não ter emitido justificativa oficial para a retirada do diplomata, o presidente Lula demonstrou frustração quanto ao avanço da operação israelense na cidade de Rafah, na Faixa de Gaza.

"Queria pedir a solidariedade às mulheres e crianças que estão morrendo na Palestina pela irresponsabilidade do governo de Israel. A gente não pode se calar diante de aberrações", disse o presidente Lula, conforme reportou a Agência Brasil.

O reconhecimento do Estado da Palestina por países europeus e a deterioração nos laços entre Brasília e Tel Aviv são sinais claros do crescente isolamento diplomático de Israel na arena internacional, atestaram analistas ouvidos pela Sputnik Brasil.

"A atuação de Israel em Gaza está isolando o país internacionalmente de maneira inédita", disse a professora de Relações Internacionais e assessora do Instituto Brasil-Israel, Karine Calandrin, à Sputnik Brasil. "Alguns especialistas apontam que Israel se tornará um Estado pária, por estar se afastando de seus aliados mais ferrenhos, como EUA e Alemanha."

Para o professor de Relações Internacionais da PUC-MG, Jorge Lasmar, o reconhecimento do Estado da Palestina é recebido de forma positiva na Cisjordânia e Faixa de Gaza. No entanto, o ato tem o intuito de enviar mensagens para outros atores internacionais, como EUA, União Europeia e Israel.

"Espanha, Irlanda e Noruega estão enviando várias mensagens com esse reconhecimento: primeiro, a de questionar os EUA e sua posição de apoio incondicional a Israel. Segundo, de enviar um recado interno à Europa, de que não estão alinhados com a política majoritária do bloco para Israel – o que é muito relevante, considerando que estamos em intenso ano eleitoral no continente", disse Lasmar à Sputnik Brasil.

Para o professor, o reconhecimento do Estado da Palestina "tampouco deixa de ser uma mensagem de isolamento diplomático para o Estado de Israel. Mas não esqueçamos que não houve ruptura de relações diplomáticas nem a suspensão de acordos comerciais."

Reação de Israel

O governo israelense reagiu à decisão de Espanha, Irlanda e Noruega de forma negativa. Nesta segunda-feira (27), Israel chegou a exigir que a Espanha deixasse de oferecer serviços consulares para palestinos residentes na Cisjordânia em seu consulado em Jerusalém Oriental. De acordo com a legislação internacional aprovada sob os auspícios da ONU, Jerusalém Oriental é um território ocupado por Israel.

O ministro das Relações Exteriores do país, Israel Katz, anunciou que pretendia adotar "medidas preliminares punitivas" contra o consulado espanhol em Jerusalém, após o reconhecimento de um Estado palestino pelo governo da Espanha". De acordo com o jornal The Times of Israel, Katz declarou que "aqueles que nos prejudicarem, nós também prejudicaremos", lembrando ao governo espanhol que "os dias da Inquisição acabaram".

Além disso, Israel convocou os embaixadores dos três países para consultas – ocasião amplamente reportada pela mídia local, durante a qual foram mostrados aos diplomatas vídeos inéditos de violência durante os ataques de 7 de outubro.

"Para o atual governo israelense, o reconhecimento do Estado palestino seria uma premiação ao Hamas pelas suas ações no 7 de outubro", relatou Calandrin. "Na minha opinião, a decisão [de Espanha, Noruega e Irlanda] deveria ser bem recebida por Israel, afinal reconhece a solução de dois Estados, que reafirma a autodeterminação tanto palestina, quanto judaica."

A despeito das boas intenções, a ação diplomática de Espanha, Noruega e Irlanda poderá ter o efeito contrário do esperado na política interna israelense. Ao sentir-se acuado, o governo local poderá ampliar sua distância da comunidade internacional, apontou Lasmar.

"Internamente, o reconhecimento tem o efeito contrário ao desejado [por Espanha, Noruega e Irlanda], fortalecendo a liderança de Netanyahu e a ideia de inimigos externos ao Estado de Israel", notou o professor da PUC-MG.

Ato simbólico

Apesar do furor, o reconhecimento do Estado da Palestina por países europeus não terá implicações práticas para o palestino comum, que continuará a viver ou sob ocupação estrangeira na Cisjordânia, ou em uma zona de guerra como a Faixa de Gaza, disse Calandrin.

"Infelizmente, o reconhecimento é simbólico. Mais de 60% do território da Cisjordânia está sob total controle israelense", explicou Calandrin. "O reconhecimento do Estado palestino não muda a ocupação, nem a situação dos assentamentos na Cisjordânia, que é uma questão essencial para a soberania palestina."

A especialista ainda nota a inviabilidade econômica do Estado palestino, em função da ausência de contiguidade territorial e bloqueio terrestre, marítimo e aéreo da Faixa de Gaza, em vigor desde 2005.

"A situação na Faixa de Gaza é pior do que a da Cisjordânia e muito mais restrita em termos de liberdade. Mesmo antes da guerra, a situação era de falta de infraestrutura básica e falta de emprego", disse Calandrin. "Por isso, o Estado da Palestina só será efetivo quando Israel o reconhecer. O reconhecimento israelense e o fim da ocupação deveriam vir em primeiro lugar."

Lasmar concorda que o reconhecimento tem valor simbólico, mas nota as "mudanças administrativas imediatas", como a intenção norueguesa de elevar o status de sua representação comercial na Cisjordânia e da Irlanda de abrir uma embaixada em Jerusalém Oriental. "Mas, na prática, pouco muda, afinal o território ainda é controlado por Israel."

Para o professor da PUC-MG, a pressão internacional pelo fim da operação israelense em Gaza e pelo reconhecimento do Estado da Palestina precisaria ser acompanhado de medidas econômicas.

"O isolamento diplomático pode ser um instrumento efetivo para modificar o comportamento dos Estados quando combinam medidas políticas e econômicas", explicou Lasmar. "Um caso clássico é o da queda do regime do Apartheid na África do Sul, após campanha de pressão internacional, conduzida inclusive pelo Conselho de Segurança da ONU."

No caso de Israel, o apoio dos EUA impede que medidas de isolamento diplomático tenham impacto efetivo no conflito em Gaza ou na criação de um Estado palestino, acredita Lasmar, que é doutor em Relações Internacionais pela London School of Economics na Inglaterra.

"Como a maioria das instituições financeiras transacionam em dólar e seguem as regras norte-americanas, sem o apoio dos EUA, medidas de pressão econômica contra Israel seriam praticamente inócuas", disse Lasmar. "Lembremos que até agora as manifestações de países como Brasil, Espanha, Noruega e Irlanda contra Israel são políticas. Nenhum Estado chegou a decretar embargo econômico a Israel."

·        Posição brasileira

O Brasil reconheceu o Estado da Palestina ainda em 2010, durante o segundo governo Lula. Após a decisão, o Itamaraty atuou de forma significativa pelo reconhecimento da Palestina como Estado observador não membro da ONU, em 2011. O status garante direito a voz, mas não a voto, às autoridades palestinas na organização.

O contraste entre a reação israelense ao reconhecimento brasileiro do Estado da Palestina em 2010 e as retaliações atuais contra Espanha, Noruega e Irlanda evidenciam mudanças significativas na política interna israelense, considerou Calandrin.

"Atualmente temos um governo Netanyahu que é muito mais irascível a esse tipo de ação. O reconhecimento brasileiro [do Estado da Palestina em 2010] foi importante pela liderança do Brasil na América Latina, o que encorajou outros países a fazerem o mesmo", disse Calandrin. "Na época, isso não gerou controvérsias com o governo em Israel. Mas precisamos considerar que o cenário era muito diferente, já que não havia uma guerra em curso."

No mesmo contexto, os governos petistas promoveram a assinatura do acordo de livre comércio Mercosul-Israel e, durante o governo de Dilma Rousseff, negociou a compra de equipamentos militares israelenses para a vigilância das fronteiras do Brasil.

"Posteriormente um acordo de livre comércio também foi assinado com a Palestina, sempre nesse cuidado brasileiro de reconhecer dois Estados para dois povos. [...] O princípio da autodeterminação dos povos na política externa brasileira leva ao reconhecimento do Estado da Palestina, mas também ao reconhecimento da autodeterminação do povo judaico", concluiu a especialista.

 

¨      MSF: Israel deve pôr fim à sua campanha de morte e destruição em Gaza

Enquanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas se reúne, depois de Israel ter atacado acampamentos que abrigavam pessoas deslocadas em “zonas humanitárias” designadas no sul de Gaza, Médicos Sem Fronteiras (MSF) pede o fim imediato da ofensiva em Rafah e das atrocidades em curso na Faixa de Gaza. A estratégia militar de Israel de lançar repetidamente ataques em áreas densamente povoadas conduz inevitavelmente ao assassinato em massa de civis.

“Civis estão sendo massacrados. Eles estão sendo empurrados para áreas que lhes disseram que seriam seguras, apenas para serem submetidos a ataques aéreos implacáveis e combates intensos”, diz Chris Lockyear, secretário-geral de MSF. “Famílias inteiras, compostas por dezenas de pessoas, estão amontoadas em tendas e vivendo em condições extremamente difíceis. Mais de 900 mil pessoas foram novamente deslocadas à força, quando as forças israelenses intensificaram a sua ofensiva sobre Rafah no início de maio”.

Hoje (28/5), 21 palestinos foram mortos e 64 feridos, segundo as autoridades de saúde locais, depois que as forças israelenses bombardearam outro acampamento para pessoas deslocadas em Al-Mawasi, a oeste de Rafah, no sul de Gaza.

A equipe médica e os pacientes de um ponto de estabilização de traumas apoiado por MSF em Tal Al-Sultan, em Rafah, também foram forçados a fugir na noite de 27 de maio, à medida que as hostilidades na área se intensificavam, interrompendo efetivamente todas as atividades médicas.

A evacuação forçada de mais uma unidade de saúde ocorre 24 horas após as forças israelenses terem realizado um ataque aéreo onde definiram e designaram como “zona segura”. Pelo menos 49 pessoas foram mortas e mais de 250 feridas. A equipe do ponto de estabilização de MSF registrou um fluxo em massa de 180 feridos e 31 mortos. Os pacientes sofreram queimaduras graves, ferimentos por estilhaços, fraturas e outras lesões por traumas. Estes pacientes foram estabilizados e encaminhados para hospitais de campanha localizados em Al-Mawasi, mais a oeste, uma vez que não existem hospitais de trauma funcionando que sejam capazes de lidar com um evento tão grande de vítimas.

“Durante toda a noite passada ouvimos confrontos, bombardeios e lançamentos de foguetes. Ninguém sabe exatamente o que está acontecendo”, diz a Dra. Safa Jaber, ginecologista de MSF, que mora no acampamento de Tal Al-Sultan com sua família. “Estamos com medo por nossos filhos, com medo por nós mesmos. Não esperávamos que isso acontecesse de repente. Para onde nós devemos ir? Estamos lutando para encontrar o básico que todo ser humano precisa para permanecer vivo”.

Na semana passada, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) ordenou a Israel que suspendesse “imediatamente” a sua ofensiva militar em Rafah e permitisse a entrada de ajuda humanitária desesperadamente necessária, garantindo que chegasse àqueles que necessitam. Mas a ofensiva de Israel no sul de Gaza intensificou-se desde então. Nenhuma quantidade significativa de ajuda entrou no enclave desde 6 de maio e o padrão de ataques sistemáticos às instalações de saúde continuou. Todos os países que apoiam as operações militares de Israel nestas circunstâncias são moral e politicamente cúmplices. Apelamos aos países, especialmente aos Estados Unidos, ao Reino Unido e aos Estados-membros da União Europeia para que façam tudo o que estiver ao seu alcance para influenciar Israel a pôr fim ao cerco em curso e aos ataques contínuos a civis e à infraestrutura civil em Gaza.

Quase oito meses após o início desta guerra, já não existe uma única unidade de saúde em Gaza que tenha capacidade para lidar com um evento com vítimas em massa como o do dia 27 de maio. No mesmo dia, logo após o fechamento do posto de trauma apoiado por MSF em Tal Al-Sultan, um ataque aéreo ao hospital kuwaitiano, em Rafah, matou dois funcionários e colocou o hospital fora de serviço. Quase todos os hospitais em Rafah foram evacuados à força, eles não estão oferecendo serviços de saúde ou estão funcionando muito precariamente, não deixando qualquer possibilidade de prestação ou acesso a cuidados médicos. 

“Centenas de milhares de civis estão sendo submetidos a uma demonstração brutal e implacável de punição coletiva”, diz Karin Huster, referente médica do projeto de MSF em Gaza. “Juntamente com os bombardeios, os graves bloqueios à ajuda humanitária estão nos impossibilitando de ajudar de uma forma significativa. As pessoas também estão morrendo, porque os trabalhadores humanitários estão sendo impedidos de realizar o seu trabalho”.

Os bombardeios israelenses e os combates intensos também continuam a devastar o norte do enclave, que é quase inacessível para os trabalhadores humanitários. Os hospitais no norte estão sob fogo e foram sujeitos a extensa destruição, incluindo os hospitais Al-Awda e Kamal Adwan, o último foi bombardeado pelas forças israelenses, ainda hoje. Outros hospitais, como o hospital Al-Aqsa em Deir al Balah e o hospital Nasser, em Khan Younis, relataram a escassez de combustível e poderão em breve não conseguir mais funcionar.

Apelamos a todas as partes em conflito para que respeitem e protejam as instalações médicas, o seu pessoal e os pacientes.

Apelamos a Israel que pare imediatamente a sua ofensiva em Rafah e abra o ponto de passagem de Rafah para permitir a entrada de ajuda humanitária e médica em grande escala.

Apelamos por um cessar-fogo imediato e sustentado em toda a Faixa de Gaza.

 

Fonte: Sputnik Brasil/Imprensa-Rio

 

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