domingo, 26 de maio de 2024

Prioridade para a diplomacia chinesa: especialista aponta 'envergadura internacional' do Brasil

Em 2024, quando as relações diplomáticas entre Brasil e China completam 50 anos e chega a duas décadas de existência uma das principais comissões responsáveis por estreitar a cooperação entre os países, o governo brasileiro trouxe como meta potencializar ainda mais as parcerias. Desde a quinta (23), Celso Amorim cumpre extensa agenda em Pequim.

Ainda era ditadura militar quando, em meio à tentativa do governo brasileiro de se tornar menos dependente dos Estados Unidos, fiador do regime autoritário no país, foram estabelecidas as relações diplomáticas entre Brasil e China, em 1974.

No mesmo ano, foram abertas as embaixadas em Brasília e Pequim. A parceria crescia a passos largos, até que em 2004, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi instalada a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que reúne ministérios dos dois países nas mais diversas áreas e acaba de completar duas décadas de atividades.

Tudo isso levou a China a se tornar o maior parceiro comercial do Brasil ainda em 2009 e, desde então, uma das principais fontes de investimento externo.

No ano em que as relações diplomáticas entre Pequim e Brasília completam 50 anos, o governo brasileiro colocou como meta potencializar os laços econômicos, políticos e culturais. Em meio às comemorações da data, o assessor especial da Presidência da República e ex-chanceler brasileiro, Celso Amorim, realiza desde a última quinta-feira (23) uma extensa agenda oficial na China, que já trouxe frutos: a assinatura de um documento conjunto com seis pontos para a desescalada na Ucrânia, em resposta à conferência de paz que será realizada na Suíça sem a presença da Rússia.

O professor de relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e especialista em assuntos ligados a Pequim Marcos Cordeiro Pires lembrou à Sputnik Brasil que o país é uma prioridade para a diplomacia chinesa, o que, segundo ele, mostra o tamanho da "envergadura internacional que muitos brasileiros sequer percebem".

Um dos organismos bilaterais que concentram boa parte dos esforços de cooperação entre Brasil e China é justamente a Cosban, que, segundo o especialista, engloba pastas como Fazenda, Relações Exteriores, Ciência e Tecnologia, Defesa e Agricultura.

"São pautas que são importantes para caminhar o planejamento da cooperação desses dois países que firmaram a parceria estratégica em 1993 e que aprofundaram essa questão em 2012, quando ocorreu aqui no Brasil a Rio+20 [Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável]. A gente pode fazer menção […] à cooperação em nível comercial, à superação de barreiras comerciais, à parte de licenciamento de frigoríficos ou a todas as questões fitossanitárias", exemplifica o especialista.

Apesar disso, o professor cita que há um desafio importante a ser superado: a falta de continuidade das reuniões na comissão. "Não há uma definição de que esses encontros vão ocorrer, por exemplo, de maneira anual, e isso depende muito da predisposição de cada governo. É claro que no Itamaraty as comissões que lidam diretamente com as contrapartes chinesas são permanentes, porém as reuniões de cúpula, como será quando o vice-presidente Geraldo Alckmin for para a China, no dia 1º de junho, são muito importantes [na esteira dos 20 anos da Cosban]", acrescenta.

·        Qual é a relação que existe entre a China e o Brasil?

Só no ano passado, as exportações brasileiras para a China atingiram US$ 104 bilhões (R$ 537,4 bilhões), o quarto recorde consecutivo e valor que representa, a nível de comparação, quase a metade do Produto Interno Bruto (PIB) de países como Portugal e Grécia. Para além da questão comercial, o professor Marcos Cordeiro lembra que o Brasil possui pautas ainda mais ambiciosas com o país.

"É o caso das obras do novo Programa de Aceleração do Crescimento [PAC], em que o governo traça diversas diretrizes e que poderiam depender muito, por exemplo, da parceria com os chineses. Também há a questão da energia limpa e a própria reindustrialização brasileira, que é uma questão bastante polêmica, principalmente com relação aos carros elétricos, pelos norte-americanos. Essa é uma temática significativa que pode caminhar aqui não só na produção dos veículos, mas desenvolvimento de baterias inclusive com a própria exploração em larga escala das reservas de lítio no Brasil ou outros minerais críticos", resume.

O especialista ainda pontua a agenda ligada ao meio ambiente, diante das mudanças climáticas e eventos extremos. "Eu imagino que a tragédia no Rio Grande do Sul pode chamar atenção para a busca de um diálogo mais aprofundado entre Brasil e China na questão relacionada à descarbonização e em questões relacionadas a problemas de segurança não tradicionais, como, por exemplo, resgate, tragédia, como articular defesa civil, troca de experiência nessa área", explica, ao enfatizar que os principais anúncios do ano com relação à cooperação China-Brasil devem ficar para novembro, durante visita oficial do presidente Xi Jinping, quando também participará do G20.

Já o professor de relações internacionais e da pós-graduação em ciências sociais da Unesp Luis Antonio Paulino destaca à Sputnik Brasil que a cooperação técnica em ciência e tecnologia é uma das áreas que mais tem avançado na parceria entre os dois países.

"O Brasil tem programas e acordos de cooperação com a China na área espacial, tecnologia de informação e comunicação, biotecnologia, nanotecnologia, astronomia, ciências agrárias, parques tecnológicos, Antártica, educação e cultura, esportes e defesa", argumenta, ao pontuar ainda o setor do agronegócio, com a ampliação de frigoríficos para a venda de carne no país que pode dobrar o volume das exportações brasileiras para o país asiático.

·        Qual o motivo da tensão entre EUA e China?

Diante da perda de espaço e relevância dos Estados Unidos em todo o globo e o crescimento da influência chinesa, os dois países vivem quase uma nova edição da Guerra Fria que se intensifica ao longo dos anos.

E as eleições norte-americanas, aponta o professor de relações internacionais, podem interferir inclusive nas relações entre Brasil e China, que no ano passado fizeram a primeira transação completa em moeda local para empresas brasileiras. "Sabemos que é uma questão muito interessante e, recentemente, o candidato a presidente Donald Trump disse que vai agir com todo o rigor contra países que adotarem políticas de desdolarização", enfatiza Marcos Cordeiro Pires.

"O único consenso bipartidário que existe hoje nos Estados Unidos é contra a China. É adoção de todas essas medidas. E dentro dessa fluidez do cenário internacional, a gente deveria esperar o que poderia ser a eleição de Donald Trump, porque seria, de fato, um divisor de águas e que isso poderia ter um impacto maior na relação entre o Brasil e China do que atualmente coloca [...]. Algo que seria desejável para o Brasil, mas a pressão norte-americana é muito forte, por exemplo, a assinatura do Memorandum de Entendimento do Belt and Road [Cinturão e Rota]. Poderia ser anunciado pelo Xi Jinping, mas a gente sabe que esse é um tema que é bastante sensível", declarou.

·        Relações estremecidas entre China e Argentina podem beneficiar o Brasil

Pela primeira vez na história, em 2022 os investimentos chineses tiveram uma virada de chave na América do Sul quando a Argentina desbancou o Brasil e se tornou a "queridinha" de Pequim no continente — na época, o montante destinado a Buenos Aires ficou em US$ 1,34 bilhão (R$ 6,92 bilhões), enquanto para Brasília foi de US$ 1,3 bilhão (R$ 6,7 bilhões). Porém, com a início do governo Javier Milei no país vizinho no fim do ano passado, cuja estratégia é se aproximar dos Estados Unidos e menos dos chineses, pode fazer o jogo virar novamente.

"Então, acho que o que poderia ocorrer com a política que considero desastrada do governo atual na Argentina é que alguns desses investimentos acabem sendo deslocados aqui do Brasil. E, de novo, a gente deveria prestar atenção no tamanho das oportunidades que o Brasil pode criar, por exemplo, para investimento chinês em infraestrutura. Nós temos a questão do PAC, que é uma carteira de projetos muito grande, que não envolve apenas estradas, ferrovias, mas também a própria urbanização. A crise no Rio Grande do Sul, a crise climática impactou nas cidades fundamentalmente, da forma como as cidades são construídas. E você tem no novo PAC um capítulo que vai colocar as cidades mais resilientes. E a China tem muita expertise nessa área e que poderia utilizar", pontua.

·        'Chamar a atenção da comunidade internacional'

Por fim, um dos últimos pontos que voltou a marcar a estreita relação diplomática entre China e Brasil foi a divulgação do documento com pontos em comum defendidos pelos países com relação ao conflito ucraniano durante a visita de Celso Amorim.

"É uma resposta à conferência de mais de 50 países [que acontece em junho] em que a Rússia não foi convidada. Então, é muito difícil imaginar que dê para fazer uma reunião sobre paz na Ucrânia sem ter como contrapartida a presença da opinião russa nessas discussões. E vale lembrar que no começo do ano passado, logo após o Lula assumir, ele já defendia uma negociação de paz e recusou, por exemplo, vender ou repassar tanques ou munições de tanques alemães do tipo Leopard", enfatizou Cordeiro.

¨      Ao tentar conter comércio chinês, EUA dizem que 'aliança contra China traz oportunidades ao Brasil'

A China é o maior parceiro econômico do Brasil há mais de uma década. No ano passado, o comércio bilateral rendeu US$ 159,5 bilhões (R$ 817 bilhões), mais que o dobro dos US$ 74,5 bilhões (R$ 380 bilhões) em transações brasileiras com os Estados Unidos. Sem ter como competir, os norte-americanos estão alertando sobre o comércio com Pequim.

Este ano, Brasil e Estados Unidos comemoram 200 anos de relações diplomáticas, e a Câmara de Comércio dos EUA, citada pela Folha de S.Paulo, diz que planeja investir na relação de estabilidade e diversificação de produtos para se contrapor ao peso crescente da China no país.

Enquanto 70% das exportações brasileiras para a China se concentram em apenas três produtos (petróleo bruto, minério de ferro e soja), a pauta comercial com os EUA é mais diversificada e inclui 49 grupos de produtos que constituem a mesma proporção de vendas externas, relata a mídia.

No entanto, apesar da perspectiva positiva apresentada, as relações entre Brasil e EUA também são influenciadas pelas disputas geopolíticas em nível global. Neste contexto, os acenos do governo brasileiro a Pequim e uma maior proximidade com o Sul Global são percebidos por alguns como um posicionamento contra Washington.

Ainda assim, há quem defenda que, mesmo com um viés político, a economia e as trocas comerciais podem não ser afetadas.

"Existem algumas orientações e relações básicas de política externa que não mudam muito de governo para governo nem são diretamente afetadas pela política interna. EUA e Brasil têm muitas afinidades culturais, investimento mútuo nas economias um do outro, uma grande e crescente população brasileira nos EUA, laços comerciais significativos e posições comuns sobre muitas questões", ressaltou o cientista político Anthony W. Pereira, professor da Universidade Internacional da Flórida, ouvido pela Folha.

Há também quem acredite que as recentes tarifas aplicadas pela administração Biden sobre produtos chineses, ação que impulsionou uma guerra comercial, de fato, entre os dois países, será uma boa oportunidade para o Brasil.

Para Simon Rosenberg, estrategista do Partido Democrata, ouvido pelo jornal Valor Econômico, as novas medidas de Biden representaram um movimento mais agudo do que os EUA estão acostumados a fazer em questões de comércio exterior.

"Estive envolvido em todos os contratos de livre-comércio que temos hoje, e o governo Biden está indo atrás de uma estratégia diferente. Isso representa uma oportunidade para o Brasil, porque estamos indo de uma era econômica para outra", afirmou.

Já o estrategista do Partido Republicano, Scott Jennings, admite que há um sentimento anti-China, o qual Washington pode explorar com o Brasil.

"Para nossos aliados no Ocidente, há muitas oportunidades, e vocês vão encontrar pessoas que concordam em ambos os partidos. Há um desejo de lutar contra a China e encontrar outros países como o Brasil para estar do lado dos EUA. A aliança contra a China traz, para todos vocês, enormes oportunidades", afirmou.

Não só no âmbito político e econômico, mas também no militar, os Estados Unidos parecem estar fazendo uma campanha contra a presença chinesa na América Latina.

A chefe do Comando Sul dos EUA, Laura Richardson, comentou na sexta-feira (24), após exercícios de guerra no Panamá no qual cerca de 20 países latino-americanos participaram, que os "inimigos da democracia" estão "tentando substituir o sistema de governo" na região, conforme noticiado.

·        EUA falam de 'inimigos' na América Latina que estão 'tentando substituir a democracia'

A chefe do Comando Sul dos EUA comentou exercícios de guerra no Panamá, onde participaram militares de vários países da América Latina.

Os "inimigos" da "democracia" na região estão tentando substituir esse sistema de governo, que Washington afirma defender, por regimes autocráticos, afirmou na sexta-feira (24) a chefe do Comando Sul dos EUA aos comandantes dos Exércitos de cerca de 20 países latino-americanos.

"Nossos inimigos acordam todos os dias tentando nos substituir, tentando substituir a democracia, mas a equipe da democracia que estou vendo é muito mais forte do que nossos inimigos autocráticos", disse Laura Richardson, sem mencionar nenhum país, citada pela agência francesa AFP.

Suas observações foram feitas no final de exercícios de guerra na Cidade do Panamá com militares de vários países da região, incluindo Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Peru e os próprios Estados Unidos.

A democracia, disse ela, "é uma equipe poderosa que trabalha em todos os setores para garantir um Hemisfério Ocidental livre, seguro e próspero". Essa conduta, segundo ela, foi demonstrada pelos participantes das manobras.

"Durante esse exercício, eles competiram uns contra os outros, mas trabalharam juntos para que, quando nos encontrarmos durante uma crise, e a crise vai acontecer, não estejamos nos encontrando pela primeira vez", observou.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário