sexta-feira, 31 de maio de 2024

Os riscos da luta pelo controle dos ativos minerais do mundo

Está ao rubro a luta pelo domínio das principais fontes minerais do mundo. Como não poderia deixar de ser, essa luta é mais intensa nos locais onde a acumulação de riquezas mais se faz sentir: África Subsariana e Médio Oriente. O problema é que esta luta está a fazer movimentar as placas tectônicas, provocando o pânico entre as hostes pró-EUA/OTAN/União Europeia.

O aprofundamento das relações entre a China e os países do Sul Global – e dos africanos, em particular –, acompanhada pela intervenção da Rússia no continente africano, iniciando um combate eficaz ao terrorismo – o mesmo terrorismo que justificou, durante quase 20 anos, a presença de missões da União Europeia e EUA no continente –, tem vindo a provocar uma onda de desespero e recriminação em todo o espectro político situacionista e pró-hegemônico.

A presença militar russa – através da Russian African Corps – em diversos países africanos (Burkina-Faso, Mali, Chade, Líbia, Sudão, Moçambique, República Centro Africana), tem suscitado, da parte dos partidos do centro, centro-direita e direita neoliberal, do espectro político europeu, todo o tipo de recriminações, sendo a última delas, a de que a Rússia está a “alinhar ditaduras” em África.

Isto vindo de políticos europeus que estiveram sempre alinhados com o neocolonialismo e com o imperialismo. Chega a ser caricato, se não fosse trágico. Fazer acreditar que a ditadura em África chega, no século XXI, com a chegada da Rússia ao terreno, depois de andarem 500 anos a pilhar, escravizar, ocupar, corromper, condicionar e explorar o continente… mostra muito do porquê de o Ocidente coletivo não ser capaz de encontrar o seu lugar no mundo.

A incapacidade do trio EUA/OTAN/União Europeia de encontrar um lugar no mundo multipolar, um mundo que se quer libertar, avidamente, do passado paternalista, neocolonialista e subserviente, em que havia sido colocado, ao longo de 500 anos de história, encontra ecos em acontecimentos recentes em todo o mundo: Em Bratislava, Robert Fico é alvejado com três tiros e está em estado crítico; no Irã, falecem em acidente de helicóptero o presidente e mais quatro altos quadros do Estado; na República Democrática do Congo foi tentado um golpe de Estado e no Burkina-Faso alguém tentou atacar o palácio presidencial.

A luta pelo controle dos ativos minerais faz-se ao milímetro, bastião a bastião, mina a mina, concessão a concessão. Entretanto, se a China gastou 19 bilhões de dólares, durante 2023, em investimentos mineirais, e a Rússia aprofunda relações com o Senegal, Líbia e outros, os EUA, através da International Development Finance Corporation, apenas investiu 740 milhões de dólares. Percebe-se a renitência. Habituados a obter as minas a preços de saldo ou quase de graça, os países ocidentais confrontam-se, agora, com a necessidade de ter também de pagar. O que é um problema, pois o modelo ocidental é aquele a que se referiu a primeira dama da Serra Leoa, numa entrevista recente. Fatima Maada Bio explicou como o Reino Unido detém todas as minas do seu país e é quem gere a própria rede elétrica do país. Há que garantir que se portem bem.

Mas Serra Leoa tem eleições, eleições ganhas com a melhor propaganda que as empresas mineiras ocidentais podem comprar. Se exemplo existe para demonstrar que o problema não reside na existência de uma falsa democracia, controlada a partir de Wall Street, mas nas condições de soberania que cada estado tem, efetivamente, para se desenvolver… é o da Serra Leoa. Vejam lá quem lucra com a tal “democracia ocidental”.

É por estas razões, por perpetrar este tipo de estereótipos e falácias que o Ocidente coletivo continua sem perceber o que lhe está a acontecer e sem entender, por que razão, mais de 500 anos depois da chegada dos portugueses ao continente africano, os povos africanos se querem libertar. 500 anos de domínio foram suficientes para convencer a maioria de que, com o Ocidente a liderar, o desenvolvimento será sempre uma miragem. E os únicos que não o compreendem são os próprios ocidentais. A criação da Associação de Estados do Sahel é, talvez, a primeira vez que, em África, se definem relações geográficas sem estarem sujeitos ao paternalismo ocidental. Há, portanto, que valorizar esta emancipação.

É neste quadro de emancipação que também em Portugal explodiu a indignação quando os órgãos de soberania recém-empossados, o governo e a direita radical, entraram em colapso nervoso ao descobrirem que uma ex-colônia Portuguesa – São Tomé e Príncipe – havia negociado, celebrado e aplicado um acordo militar com a Rússia, sem pedir autorização. Se não pretendiam que fosse pedida autorização, não foi isso que deram a entender com o seu desespero.

Não faltaram recriminações ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e pedidos de explicações, por parte dos setores mais russófobos – vá-se lá saber por que serão russófobos, à parte de terem passado pela Ivy League – da política portuguesa. Ao ponto de o Presidente da República, talvez pensado que ainda estava nos seus 16 anos (antes da revolução que ditou o fim da guerra colonial e a descolonização), ter referido querer “ver o acordo”.

Portugal, país pequeno do ocidente europeu, mas dos mais russófobos da União Europeia – herança de mais de 40 anos de fascismo, a mais longa ditadura da Europa –, sempre olhou para a CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa, Portugal, Angola, Moçambique, Brasil, Cabo Verde, Timor-Leste, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe), como algo que tem ali, à mão, mas que escusa de apanhar, porque nunca fugirá. Uma espécie de visão neocolonial, bem presente nas relações econômicas entre os vários países, com exceção do Brasil. O Brasil é um peso pesado, como se sabe.

Atrelado à política externa definida pelos EUA e União Europeia, prescindindo de uma visão internacional soberana e independente, os sucessivos governos nunca conseguiram, quiseram ou optaram, olhar para a Comunidade de Países de Língua Portuguesa como o futuro de Portugal, como a sua principal ponte para o mundo, para todo o mundo; uma ponte construída com o de mais precioso que une os povos, a língua e a cultura.

Para as autoridades portuguesas, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa nunca passou de mera porta de saída, entreaberta apenas por razões econômicas, sobretudo, ao sabor de interesses bem mais vastos e nem sempre coincidindo com os portugueses. Vejamos o caso Memorando de Entendimento entre os EUA e a União Europeia, em apoio ao desenvolvimento do corredor do Lobito, entre Angola, Zâmbia e República Democrática do Congo. Portugal, segundo maior exportador para Angola, logo a seguir à China (ao longe), não surge sequer relacionado na documentação que se refere à integração deste corredor do Lobito na estratégia Europeia por matérias primas críticas, o Global Gateway. No fórum de lançamento do Global Gateway em Angola, a única presença portuguesa foi a da embaixadora da União Europeia em Angola.

Tal como com os seus senhores do centro da Europa, Portugal também falhou sempre em promover alternativas de desenvolvimento que pudessem aproximar os países lusófonos do mundo desenvolvido e, sobretudo, falhou em promover uma cooperação, entre iguais, que retirasse benefícios do enorme mercado à disposição dos povos de língua portuguesa, de todos eles. Um fator de união que ainda hoje constitui um dos principais elos de ligação entre os EUA e o resto do mundo. A língua.

Ao invés, Portugal optou sempre por se virar para norte e contentar-se com a ideia de ser um dia tratado como o são os povos do Norte, tal como os africanos se foram perdendo na ilusão de se desenvolverem através da aproximação ao Ocidente, sonho do qual estão, agora, a acordar. Portugal tem caído e continua a cair no mesmo equívoco. Portugal nunca vai assumir qualquer centralidade que não seja alicerçada na sua soberania, independência e numa visão que vire o país para o futuro, para o Sul Global, para o mundo em crescimento, em cooperação, em desenvolvimento.

O fato é que, muitos milhões de fundos europeus depois, nem Portugal, nem nenhum país periférico da União Europeia, almejou convergir com os países do norte e centro europeu, quanto aos níveis mais elevados de desenvolvimento. Se nenhum o conseguiu, dezenas de anos depois, centenas de bilhões e euros depois, é porque não era suposto consegui-lo. Tal como nenhum africano o conseguiu em 500 anos de domínio ocidental. Há coisas que a própria história se encarrega de demonstrar, apesar de todos os discursos e de todos os floreados.

Foi esta mesma subserviência, que Portugal exige às suas ex-colônias e que a União Europeia exige a Portugal, que fez com que um país com 10 milhões de habitantes, com acesso histórico privilegiado a um mercado de 300 milhões de habitantes, com mais de dois trilhões de euros de PIB, não tenha conseguido transformar esse acesso numa vantagem estratégica, até numa perspectiva da sua integração europeia.

Ao invés, Portugal perdeu-se em sonhos adiados, vendo cada vez mais longe a prometida “convergência” europeia. Convergência que nunca chega, como nunca chega o prometido desenvolvimento aos países africanos, com que acena o Ocidente coletivo, desde que há 500 anos decidiu ir para África salvar almas e levar a civilização.

As relações econômicas de Portugal com os países africanos dizem tudo. Portugal importa cerca de metade do valor que exporta, de acordo com os dados do Instituto Nacional de estatística, para os anos de 2018-2022. Já quando apreciada a relação com o Brasil, a situação inverte-se e é Portugal que fica com a balança desequilibrada. Portugal manda bens manufaturados, com valor acrescentado médio e importa bens de baixo valor acrescentado não transformados.

Esta relação demonstra que Portugal tem feito muito pouco para ajudar estes países ao desenvolvimento, nomeadamente através das transferências tecnológicas. Angola tem muito petróleo, não o refina, Portugal não tem petróleo, mas sabe refiná-lo. Um e outro estão nas mãos de interesses estrangeiros. Um pequeno exemplo.

Daí que não possa admirar a ninguém esta relação entre São Tomé e Príncipe e a Rússia, que também se antevê na Guiné-Bissau e em Moçambique. É, uma vez mais, a história quem explica esta relação, pois não foi senão a URSS que apoiou os movimentos de libertação que combateram contra o governo colonial português, enquanto os EUA e outros países europeus apoiavam o ignominioso apartheid. Foi com armas e tropas soviéticas e cubanas, que se derrotou a África do Sul, na batalha do Cuito Cuanavale, que se tornou o início do fim daquele regime genocida.

Hoje, quando olham para a ameaça terrorista, os países africanos olham para o Sahel e detectam o óbvio: 20 anos de “apoio” na luta contra o terrorismo, pelos países ocidentais (França, EUA, Reino Unido), e os terroristas eram cada vez mais. Até que chegaram os russos. Aí, a história já foi outra. Tal como na Síria.

Esta situação é sintomática da falência de toda uma política externa que dizia querer fazer “pontes” com o mundo. Tal como todo o Ocidente coletivo, também Portugal não soube preservar a sua relação privilegiada com África. Quando os governantes portugueses assistiram ao acordar dos países africanos, à sua aproximação aos BRICS, à sua recusa em aplicar sanções à Rússia, o que fizeram? Tentaram compreender? Tentaram perceber porque razão estes países perderam a fé no Ocidente? Nunca! Apenas recriminaram e destacaram-se claramente da tendência geral.

Portugal afastou-se dos seus para se juntar aos outros. Aos que lhe pagaram para destruir a indústria, agricultura e pescas de que necessitava para ser uma mais valia na CPLP. Hoje, 80% dos postos de trabalho criados são de baixa qualificação, baixo salário, e Portugal tem muito pouco a oferecer a África e ao Brasil, que outros não possam oferecer. Como se viu no caso do Global Gateway em Angola, as potências europeias não necessitam do envolvimento de Portugal para relançar os seus acessos e as suas redes.

Este acordo entre a Rússia e São Tomé e Príncipe representa, sobretudo, a incapacidade portuguesa em ver futuro para além das decadentes e cada vez mais fascizantes EUA/OTAN/União Europeia. Representa a falência em ver no Brasil e nos restantes países africanos de língua portuguesa um mercado comum enorme, uma fonte de industrialização, cooperação, numa estratégia em que todos ganham: uns porque vendem, outros porque compram, outros porque produzem, outros porque trocam. A Comunidade de Países de Língua Portuguesa era a ponte dos países lusófonos para o mundo. Para todo o mundo.

Portugal falhou, como falha a União Europeia, como falham os EUA, em ver, no mundo multipolar, um mundo sem nações indispensáveis, o seu futuro, o nosso futuro. Não se admirem, portanto, que a Rússia, a China, o Irã ou mesmo a Índia continuem a expandir-se em África, nesta segunda leva da descolonização. Na primeira, a URSS ajudou a obter a liberdade, na segunda, é a Rússia quem vem colher os frutos de todo esse “soft power”, incrustado na história humana a letras de ouro. Enquanto uns quiseram perpetrar a colonização, outros ajudaram, em momentos-chave, a combatê-la.

E por muito que doa ao ocidente, é a Rússia quem está, agora, em condições de colher o resultado de um investimento que os blocos imperialistas não quiseram, não puderam, nem estavam preparados para desenvolver. Não estava, simplesmente, na sua natureza.

 

Fonte: Por Hugo Dionísio, em A Terra é Redonda

 

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