O Velho Continente e o novo colonialismo
Nos últimos vinte
anos, a União Europeia (UE) promoveu mais de quarenta missões externas em
países da Europa não pertencentes à UE, à África e ao Oriente Médio. O debate sobre a guerra-paz e o
papel militar da Europa torna-se central numa região gravemente ferida pelo
confronto Rússia-Ucrânia. Uma questão que poderá influenciar as eleições para o
Parlamento Europeu, de 6 a 9 de junho, com votos de punição ou apoio aos
partidos mais belicistas.
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Uma bússola sem rumo
A política externa e de segurança comum da União Europeia, definida no Tratado de 1993 e atualizada
pelo Tratado de Lisboa, de 2007, visa “preservar a paz, reforçar a segurança
internacional, promover a cooperação internacional e consolidar a democracia, o
Estado de direito, os direitos humanos e as liberdades fundamentais”.
O seu apoio financeiro
é prestado pelo Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (MEAP), um instrumento
extraorçamentário lançado em 2021 e que visa “reforçar a capacidade da União
Europeia para prevenir conflitos, consolidar a paz e reforçar a segurança
internacional”. Na prática, esse fundo permite financiar ações operacionais
“que tenham repercussões no âmbito militar ou de defesa”.
Caracterizadas como
serviços de baixa a média intensidade, essas missões estrangeiras envolvem o
fornecimento de treinamento e de equipamentos militares aos exércitos
nacionais. Para o período 2021-2027 têm um teto de 17 bilhões de euros (cerca
de 18,5 bilhões de dólares). Desse montante, 11 bilhões de euros (cerca de 11,8
bilhões de dólares) foram para as Forças Armadas ucranianas desde o início do
conflito com a Rússia. Esse apoio supera os 32 bilhões de euros (US$ 34,5
bilhões) se forem levados em conta os recursos alocados pela União Europeia e
pela assistência bilateral assegurada pelos diferentes Estados europeus.
Conceitualmente, ao
nível da segurança e da defesa, a União Europeia implementa a chamada “Bússola
Estratégica”, que define e orienta a política comum nessa rubrica e estabelece
também uma visão comum dos seus principais riscos e desafios a curto e médio
prazos. Seus quatro pilares declarados: trabalhar de forma associativa,
investir, atuar e garantir a segurança.
A partir de fevereiro
de 2022, e assim que o conflito russo-ucraniano eclodiu no extremo leste da
União Europeia, os seus Estados-Membros expressaram a sua determinação em
“aumentar as despesas com a defesa e investir da forma mais eficaz, a fim de
melhor proteger a UE e os seus cidadãos, aumentar a capacidade e a preparação
geral da EU em matéria de defesa e reforçar a base tecnológica e industrial da
defesa europeia”. Desde o primeiro dia desse confronto, a UE e a OTAN aumentaram os seus esforços e cooperação, “demonstrando uma unidade inabalável” a favor da Ucrânia.
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Um único bloco à
maneira ocidental
Em 6 de maio, a União
Europeia e a Ucrânia decidiram dar mais um passo em frente na sua cooperação
mútua em matéria da indústria militar e garantir o financiamento necessário
para armar a Ucrânia o mais rapidamente possível. Esse fato foi acordado num Fórum
em Bruxelas por Josep Borrell, ministro dos Negócios Estrangeiros e da
Segurança da União Europeia, e Thierry Breton, comissário europeu para o
Mercado Interno. Altos funcionários de Kiev e cerca de 400 representantes governamentais e de empresas do setor militar participaram no Fórum. O
treinamento de militares ucranianos faz parte dessa missão de apoio militar:
até o momento, 47 mil soldados ucranianos foram treinados pela União Europeia.
Nos próximos meses, esse número chegará a 60 mil.
Dois dias após o Fórum
de Bruxelas, os embaixadores dos Estados-membros da União Europeia concordaram
em alocar mais 3 bilhões de euros (cerca de US$ 3,24 bilhões) à Ucrânia para
sua recuperação e defesa. Esse acordo, que aguarda ratificação pelos respetivos
ministros, utilizará os juros gerados pelos ativos russos congelados pela União
Europeia como parte das suas sanções a Moscou. São cerca de 210 bilhões de
euros (cerca de 226 bilhões de dólares).
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Missões externas da UE
sem êxitos significativos
Embora o apoio da
União Europeia à Ucrânia tenha sido sua principal prioridade a partir de 2022,
ela já havia intervido na então República Iugoslava da Macedônia, em 2003.
Atualmente, a União Europeia realiza 24 missões, 10 das quais são militares.
Como resultado de uma
investigação de alto nível, em 8 de maio, o Instituto Transnacional
(Transnational Institute, TNI, por sua sigla em inglês), com sede em Amsterdã,
publicou um relatório com o título “Sob o radar. Vinte anos de missões
militares da União Europeia”, onde argumenta que, embora essas missões da
diplomacia europeia sejam impulsionadas pelo compromisso de melhorar a situação
de segurança em países fora de sua própria jurisdição, na realidade elas têm
pouco a ver com a promoção da paz, da prosperidade e da segurança desses
países. Em outras palavras: o que mais lhes interessa é promover os próprios
interesses da União Europeia, mesmo que isso seja prejudicial aos interesses
dos países onde se estabeleceram.
De acordo com
o TNI e como contexto interpretativo
conjuntural, “A resposta da UE à invasão da Ucrânia pela Rússia e, mais
recentemente, ao genocídio de Israel em Gaza, não passou despercebida pelos
europeus, muitos dos quais saíram às ruas para protestar contra a cumplicidade
da UE na guerra e no genocídio.
O relatório também
documenta que, nos últimos 20 anos, essas operações militares pouco
contribuíram para a resolução de conflitos. É o caso, por exemplo, da
Bósnia-Herzegovina, que acolhe a missão mais antiga da União Europeia e onde as
tensões subjacentes enraizadas em questões políticas não resolvidas não puderam
ser desbloqueadas pelo destacamento de militares. Além disso, em alguns casos,
os conflitos foram exacerbados, como na região africana do Sahel, onde a União
Europeia enviou sete missões militares nas últimas duas décadas (três ainda
estão ativas). Tanto a ineficácia dessas missões militares como os problemas
adicionais que delas resultam mostram que a União Europeia dá prioridade aos
seus próprios interesses em detrimento dos dois países de acolhimento. Tudo
isso leva o TNI a comentar criticamente que a União Europeia carece de uma
metodologia adequada e aceita para avaliar a eficácia das suas missões, ao
ponto de ela própria “admitir que atingiu poucos dos seus objetivos
declarados”.
Segundo o TNI, as
missões europeias no exterior também causaram outros tipos de problemas, como
golpes de Estado, e não só nos países onde estiveram presentes, mas também em
países vizinhos. Na África, por exemplo, nos últimos 20 anos, numerosas forças
militares treinadas sob os auspícios da União Europeia acabaram por perpetrar
graves violações dos direitos humanos ou por participar em golpes de Estado.
Moçambique é, talvez, o exemplo mais recente e notório, embora não seja de modo
algum excepcional.
Mas isso não é tudo.
Apesar do seu princípio declarado de defesa do Estado de direito, a União
Europeia, frequentemente, tem apoiado governos corruptos e autoritários, ou
governos com um péssimo histórico em matéria de direitos humanos, a fim de
preservar os seus próprios interesses políticos e econômicos. “Isto é
imprudente e irresponsável e uma traição aos valores que a União Europeia diz
defender”, argumenta o relatório do TNI.
Por vezes, as missões
militares europeias no estrangeiro causaram outros tipos de problemas. Foi o
caso das duas missões na Somália, que operam em terra e patrulham as águas
costeiras. Em vez de aliviar a situação local, agravaram-na, culminando com a
expulsão da comunidade local de suas próprias terras e a perda de seus meios de
subsistência, como a pesca artesanal, agora nas mãos de grupos armados e
totalmente fora do controle estatal. Por seu lado, a mais recente missão da
União Europeia no Mar Vermelho e em resposta à interrupção das rotas marítimas
pelos houthis, em retaliação ao ataque israelense a Gaza, também exemplifica
como a União Europeia protege os seus próprios interesses.
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A história colonial
condiciona o presente imperial
Segundo o TNI, os
conflitos mais importantes dos últimos dois anos – Rússia-Ucrânia, 2022 e Faixa
de Gaza, 2023 – também evidenciam que a União Europeia se alinhou à agenda
geopolítica dos EUA e que qualquer pequena diferença com a mesma tem sido
puramente retórica. Em outras palavras, as ações das entidades afiliadas à OTAN
em ambos os lados do Atlântico permanecem amplamente alinhadas. Isso não é
surpreendente já que há bases militares dos EUA em praticamente todos os países
da União Europeia, algumas das quais – como as do Reino Unido – abrigam até
armas nucleares.
Embora o poder militar
da União Europeia empalideça em comparação com o dos Estados Unidos, ela
continua a recuperar o atraso e avança com seus planos de se tornar um ator de
“poder forte” em vez de fornecer um contrapeso por meio da diplomacia. Para o TNI,
essa posição exibe coerência histórica “dado que vários dos Estados-membros da
UE foram fundamentais na colonização de África, Ásia e Américas e continuam a
operar a partir de uma lógica colonialista e imperialista, como evidenciado
pela abordagem adotada em relação a Israel, um país colonialista”.
O estudo do TNI aponta
para outras três consequências negativas das operações militares promovidas ou
sustentadas pela União Europeia. Em primeiro lugar, devido à forma como são
estabelecidas e operadas, minam as estruturas multilaterais, como as Nações Unidas
e os Estados e sistemas nacionais e regionais. Em segundo lugar, sofrem de uma
grave falta de controle democrático. O Parlamento Europeu, a única instituição
europeia democraticamente eleita, tem um poder de decisão muito limitado em
matéria de política externa. Há vários anos, as missões militares são
financiadas por meio de um fundo extraorçamentário para além de qualquer
escrutínio democrático. Finalmente, escapam ao controle judicial porque a União
Europeia não tem uma organização que a sancione juridicamente interna ou
externamente. Também não estão sob a jurisdição do seu Tribunal de Justiça ou
da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que se aplica apenas aos
Estados-Membros. Além disso, e como epílogo, o estudo publicado pelo TNI
critica a falta de informação disponível sobre questões militares e de defesa,
como um detalhamento das despesas e do número de vítimas resultantes destas
missões, entre outros.
Fonte: Por Sergio
Ferrari, com tradução de Rose Lima, em Outras Palavras
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