O capitalismo senil e os CEOs popstars
Uma das muitas
contradições presentes no campo ideológico das Big Techs é a que opõe a fé na
descentralização e a sedução dessas corporações pela “liderança” empresarial.
Identificar as empresas pelos apelidos dos seus executivos-chefes, ou CEOs –
Altman, no caso da OpenAI; Zuckerberg, no da Meta; Ellison, no da Oracle –
tornou-se jargão. Na imprensa especializada prevalece a sensação de que esses
nomes servem mais como sinônimos do que como metonímias, como se o indivíduo
que dirige a corporação fosse também o eixo sobre o qual gira seu sucesso ou
fracasso. As aquisições malsucedidas, as violações de segurança e os problemas
de monetização do Yahoo ao longo da década de 2010 tornaram-se indelevelmente
associados à sua CEO, Marissa Mayer. O retorno triunfante da Apple,
praticamente falida no final da década de 1990, foi atribuído ao lendário golpe
dado por Steve Jobs em seu conselho de administração.
Os CEO nem sempre
ocuparam um lugar tão privilegiado na cultura empresarial global. Na opinião de
Rakesh Khurana, professor da Harvard Business School, os líderes empresariais
já foram tão anônimos para o público “como o eram suas secretárias, motoristas
e engraxates”. No seu trabalho de 2002, Searching for a Corporate
Saviour: The Irrational Quest for Charismatic CEOs [“Procurando um
Salvador Corporativo: a busca irracional por CEOs carismáticos”, em tradução
preliminar], Khurana descreve a mudança do papel prático e
simbólico destas figuras desde o final do século XIX. Os primeiros titãs da
indústria – os Carnegies e os Rockefellers, os Henry Fords e Charles Eastmans,
e outros grandes líderes empresariais – adquiriram notoriedade pública pela sua
construção de impérios, inovações técnicas e de gestão, esforços filantrópicos
e seu ativismo antioperário. Eles personificavam um tipo distintamente burguês
de autoridade carismática weberiana, sob a qual a acumulação de riquezas era
vista como uma recompensa divinamente ordenada pela sua excepcional ética de
trabalho. Em meados do século XX, contudo, esta imagem foi transformada à
medida que o desenvolvimento de rotinas, procedimentos, leis e normas
corporativas conduziu a uma forma reconhecidamente moderna de autoridade legal
ou racional.
Naquele momento, o
magnata reencarnou como um administrador competente. Embora Khurana atribua
isto à ascensão de tiranos como Hitler e Mussolini, que explodiram o “mito
do self-made man”, uma explicação mais completa poderia estabelecer
uma ligação entre o CEO de meados do século XX e os princípios formais de
gestão do taylorismo. O apelo à racionalidade e à eficiência despersonalizou a
subjugação do trabalho pelo capital. A exploração já não podia ser
personificada pelo barão da empresa, uma vez que as condições existentes no
local de trabalho eram o resultado de um sistema de análise, cálculo e
planejamento eticamente neutro e semelhante à norma legal. Embora os
trabalhadores organizados continuassem a rebelar-se contra o “chefe-espantalho”
da fábrica fordista, durante a década de 1950 a escala crescente das operações
empresariais, bem como a substituição dos empresários e dos seus herdeiros
pelos acionistas e, posteriormente, pelos conselhos de administração e equipes
de gestão, ajudou a inaugurar um período no qual o CEO delegou grande parte das
operações diárias visíveis da empresa.
Na década
de 1980, as condições estavam propícias para que outra transformação ocorresse.
Os efeitos do desempenho de cinco anos de alta da bolsa de Nova York, seguidos
por uma série muito mais longa de aumento dos preços das ações na década
seguinte, refletiram-se na sorte dos fundos mútuos. Depois que o Congresso dos
EUA aprovou a Lei da Receita de 1978, que legalizou e popularizou os planos de
aposentadoria privados, cuja contribuição beneficia-se de generosas isenções
fiscais – os famosos planos 401(k) – o dinheiro fluiu para eles, o
que significou que o capital de investidores não profissionais ou “comuns”
começou a ser canalizado para uma gama diversificada de ações de inúmeras
empresas. Adivieram duas consequências importantes: uma ampla demanda por estas
ações e um envolvimento emocional generalizado com o desempenho geral da bolsa.
A mídia dos EUA continua a dedicar uma quantidade esmagadora de tempo à
evolução dos preços das ações; Donald Trump frequentemente parece vincular o
sucesso de sua presidência ao desempenho do S&P 500 [um dos índices de Wall
Street], enquanto os fundos que acompanham o desempenho desse índice cresceram
em popularidade nas últimas décadas entre a comunidade internacional de
investimentos.
Isso
permitiu a rápida expansão da imprensa de negócios, com a fundação de veículos
como CNBC, MSNBC e Bloomberg News durante as décadas de 1980 e 1990 e a
proliferação de inúmeras publicações financeiras especializadas, bem como o
surgimento do cobiçado novo título de “analista de ações”. O jornalismo
econômico concentrava-se no desempenho de curto prazo das empresas, para as
quais o preço das ações era um barômetro claro e prontamente disponível. É
claro que, como ressalta Khurana, essa cobertura sempre foi “tingida com o viés
individualista da cultura americana”, concentrando-se em personalidades
individuais em vez de estratégias complexas. O principal deles era o CEO, a
personificação mais visível do destino de uma empresa.
Ao mesmo
tempo, os deveres do CEO começaram a mudar para aparições na mídia, reuniões de
acionistas, conferências do setor, apresentações de lucros, briefings
individuais e outras responsabilidades, que passaram a ser chamadas de
“relações com investidores”. O líder empresarial ideal era aquele que chamava a
atenção e inspirava a confiança de um número muito maior de partes envolvidas
ou conectadas de uma forma ou de outra com a empresa. Aqueles que conseguiam
cumprir essas tarefas eram remunerados com uma renda estratosférica por seu
trabalho executivo. Khurana descreve o surgimento dos “CEOs terceirizados” e o
processo pelo qual a busca por um novo CEO deixou de ser uma formalidade sem
graça, ou seja, simplesmente a constatação da promoção iminente de um
funcionário antigo que havia subido na escada corporativa, para se tornar um
espetáculo de mídia transmitido com grande alarde.
Esse
período também viu o renascimento da mitologia do fundador-empreendedor, que,
não por coincidência, coincidiu com o boom da tecnologia, bem como um
aumento significativo na popularidade dos modelos de financiamento de capital
de risco e no número de empresas que buscavam acesso ao capital. Nesse
ambiente, os magnatas da tecnologia precisavam proclamar ambições de mudança de
paradigma para seu trabalho e buscavam formas criativas de narrá-las. Isso se
refletiu no gênero literário peculiar que surgiu na época e que até hoje
permanece nas listas de best-sellers: a biografia ou autobiografia empresarial
evangelística.
Um
elemento básico desse gênero, como aponta Khurana, é mostrar como o sujeito
alcançou o sucesso apesar dos infortúnios dos primeiros anos de sua vida: a
gagueira no caso de Jack Welch da Chrysler, a dislexia de John Chambers da
Cisco. Hagiografias mais recentes seguiram essa tendência: o estudo de Walter
Isaacson sobre Steve Jobs se concentra em sua adoção na infância e no
diagnóstico de câncer de pâncreas, enquanto o retrato de Elon Musk feito por
Ashlee Vance explica os efeitos do bullying e da ruptura do casamento neste
“Tony Stark da vida real”.
O culto ao
“inovador” pode ser mantido na década de 2020? Considere a apresentação de
Steve Jobs na MacWorld 2007, uma cerimônia pomposa na qual a Apple anuncia seus
próximos produtos. Em seu discurso principal, Jobs listou os três novos
dispositivos a serem lançados naquele ano – “um iPod com controles de toque, um
telefone e um dispositivo inovador de comunicação pela Internet” – antes de
levantar o véu para revelar que essas eram, na verdade, as funções de um único
dispositivo híbrido, o iPhone. Esse se tornou o modelo predominante de inovação
tecnológica: o que Jason E. Smith chama de “canivete suíço do século XXI”, por
meio do qual as capacidades e os recursos existentes são misturados,
assimilados, adaptados e incorporados em ferramentas compostas multifuncionais.
Os aparelhos de consumo das últimas décadas são quimeras engenhosas que podem
recombinar e aprimorar superficialmente funções tecnológicas conhecidas. Na
visão de Smith, isso indica a ausência sistêmica do tipo de inovação
revolucionária que outrora transformou o cotidiano da população em geral –
automóveis, ferrovias, eletrificação, telecomunicações, fotografia e
cinematografia – e que trouxe ganhos significativos de produtividade para a
economia capitalista como um todo.
Hoje, a
reprodução dessa inovação por recombinação está ocorrendo em nível corporativo.
A morte do laboratório de pesquisa interno, outrora sinônimo de instituições
como o Bell Labs ou o Projeto Manhattan, sinaliza uma estratégia organizacional
que Nancy Ettlinger chama de “paradigma da abertura”, por meio da qual as
empresas reduzem ou eliminam o investimento interno em Pesquisa &
Desenvolvimento, optando, em vez disso, por uma prática coordenada de inovação
tericeirizada, caracterizada pelo fornecimento externo de pesquisa, tecnologia
e habilidades. Assim como o iPhone, a empresa de tecnologia do século XXI
torna-se uma ferramenta composta, uma coleção heterogênea de patentes e
licenças proprietárias, de vendedores e fornecedores contratados, de divisões e
equipes autônomas, de projetos e estruturas de código aberto, de integrações de
terceiros e provedores de nuvem, de aplicativos e plataformas de navegador
nativos e competências educacionais transferíveis reunidas em um pool
corporativo transnacional. Em meio a esse fluxo, o CEO deve projetar uma imagem
de unidade e integridade. Entretanto, quando o valor de mercado de uma empresa
cai, o CEO é revelado como apenas mais uma unidade modular na panóplia de
recursos.
¨
A quem o presidente do
Banco Central diz sim? Por Aldemario Araujo Castro
Em entrevista ao
Estadão/Broadcast, o ainda presidente do Banco Central do Brasil, Roberto
Campos Neto, afirmou: “A coisa mais importante, sentando na cadeira, é tentar
olhar por cima, e não dentro do ruído. Há muitos ruídos de curto prazo: de
economia, político. O mais importante é saber dizer não. Vão vir várias ideias
e propostas que não são nem do interesse da sociedade e nem do Banco Central.
Às vezes, é preciso dizer não para o Executivo. Às vezes, para o Legislativo.
Que tenha a firmeza de dizer não, que tenha a capacidade de explicar a opinião
e que passe transparência ao longo do tempo. Mas a capacidade de dizer não é
crucial”.
São raros os
reconhecimentos públicos acerca dos mais importantes e fortes poderes
efetivamente existentes no âmbito das relações socioeconômicas no Brasil. A
fala do atual, e ainda, presidente do Banco Central não poderia ser mais
elucidativa. Ao relevar a quem o dirigente máximo do BC deve dizer não e deixar
implícito a quem a mesma autoridade deve dizer sim, ficou claro o jogo de
forças existente na sociedade brasileira.
Curiosamente,
sugere-se que o presidente do BC diga não ao Executivo (leia-se, o presidente
da República) e ao Legislativo (leia-se, o Congresso Nacional composto pela
Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal). São justamente os dois poderes
políticos titularizados por representantes eleitos pelo povo, detentor do poder
político soberano (artigo primeiro, parágrafo único, da Constituição).
Esse tipo de fala
também deixa claro qual o verdadeiro objetivo das teses, ideias, movimentos ou
leis definidoras de autonomias e independências para o Banco Central.
Persegue-se, evidentemente, um afastamento de definições que possam conter, por
menor que seja, um conteúdo popular em confronto com os sagrados e intocáveis
interesses do deus mercado.
O presidente do BC
explicita, sem pudor, a quem dirige um “não”. Não fez o mesmo em relação a quem
dirige um “sim”. Mas esse último é facilmente identificado a partir da
atuação da instituição que lidera. De forma sumária, recebe o “sim” do presidente
do Banco Central do Brasil o mercado financeiro, seus componentes e os
instrumentos de que se vale para transferir montanhas de recursos financeiros
do conjunto da sociedade para uma minoria de privilegiados.
Os tais componentes do
mercado financeiro envolvem, entre outros: a) bancos e caixas econômicas; b)
seguradoras; c) corretoras de valores; d) bolsa de valores; e) bolsa de
mercadorias e futuros; f) entidades de previdência; g) cooperativas de crédito;
h) consultores e operadores individuais e i) especuladores (camuflados de
investidores).
Os principais instrumentos operados ou administrados pelo Banco Central para
viabilizar a referida transferência de riqueza no âmbito da sociedade
brasileira são: a) a fixação da taxa básica de juros da economia; b) operações
compromissadas; c) swap cambial e d) formação de reservas monetárias.
A fixação da taxa
básica de juros (Selic), invariavelmente entre as maiores do mundo e sem razão
econômica plausível, viabiliza uma movimentação anual de recursos financeiros
da ordem de 1,5 trilhão de reais. São valores que saem das famílias, empresas e
Poder Público em direção aos credores das dívidas públicas e privadas. É
relativamente fácil perceber que essa massa de recursos é subtraída da
dinamização das atividades econômicas na forma de produção e consumo de bens e
serviços.
Esse último dado
demonstra a razão fundamental para os brasileiros figurarem como a quarta
nacionalidade com mais recursos alocados em paraísos fiscais. O montante em
questão é estimado em cerca de 520 bilhões de dólares americanos.
Sem base legal
conhecida, o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos (já considerado
o compulsório) por meio das chamadas “operações compromissadas”. A seguinte
ponderação foi realizada, em 2015, pelo ex-senador José Serra: “O custo das
operações compromissadas – dívida sobre tutela do Banco Central – é outro
exemplo: perto de um trilhão de reais rendendo 14,25% ao ano!”. Registre-se que
nos últimos anos o trilhão já foi ultrapassado em muito.
Os abusos nas
operações de swap cambial também foram destacados pelo ex-senador José Serra:
“Tampouco pode se desconhecer a incidência de outros fatores como despesas de
R$120 bilhões produzidas pela política de swaps cambiais – operações feitas
para dar seguros contra a variação do dólar. (…) Limitar-se-á a liberdade
excessiva de endividamento hoje existente, a qual permite ao Banco Central
exercer políticas cujos custos fiscais são desproporcionais, como, por exemplo,
a mencionada oferta prematura e astronômica de swaps cambiais ao setor privado,
em um cenário que deveria ser de câmbio flutuante”.
A formação das
reservas monetárias do Brasil é outro capítulo onde as censuras ao Banco
Central são fortes e consistentes. “Ao acumular reservas cambiais, o país
incorre em custos e benefícios; o acúmulo justifica-se sobretudo como um
‘seguro’, a ser usado em estado adverso. Neste texto, questiona-se o porquê de
o Banco Central possuir nível de reservas tão acima do seu ‘ponto ótimo’ .
”Qual o problema de
ter reservas em excesso? No caso do Brasil, em que os juros pagos pelo governo
são atipicamente elevados em uma ampla comparação internacional, isso gera um
custo fiscal de carregamento das reservas bastante ‘salgado’. Mas isso ainda é
potencializado por algumas características idiossincráticas de nosso arcabouço
de política monetária e fiscal”. “Mauro Benevides Filho [deputado federal,
PDT/CE] afirmou que, segundo os parâmetros do próprio Fundo Monetário
Internacional (FMI), o volume de reservas internacionais poderia ser reduzido
para quase US$ 200 bilhões. Isso reduziria os custos fiscais de manutenção dos
títulos em dólar, mas ainda assim manteria a segurança jurídica para
investidores e importadores. ‘Manter a reserva internacional além do limite que
manda a teoria econômica é um custo fiscal que não tem precedente’.
Destaque-se que
convivemos com duras limitações para as despesas de manutenção e ampliação dos
direitos sociais, representadas, entre outros, pela Lei de Responsabilidade
Fiscal, pela Emenda Constitucional n. 95/2016 e pelo “Novo Arcabouço Fiscal”.
Entretanto, a regulação da ação do Banco Central nos campos monetário e cambial
é praticamente inexistente. Adotar leis de responsabilidade nessas searas deve
ser considerado, pelos donos do poder econômico, como demonstração do mais
elevado desequilíbrio mental.
E as ferramentas
voltadas para a acumulação de riquezas nas mãos de poucos a partir dos recursos
da grande maioria da sociedade se multiplicam. Nesse sentido, a Auditoria
Cidadã da Dívida denuncia a “securitização dos créditos públicos” por
intermédio do PLP n. 459, de 2017. “O sistema tem causado prejuízos como desvio
do dinheiro de impostos, perda de controle da arrecadação, Parcerias Público
Privadas que lesam os cofres públicos e outros mecanismos que beneficiam
bancos”.
Esses componentes anteriormente destacados integram um rentismo extremamente
perverso. A acumulação de riquezas (e fortunas) com base na geração de empregos
e na produção de bens e serviços ficou no passado. Predomina, atualmente,
no Brasil e no mundo, o capital improdutivo. São engenhosamente criados e
ancorados na institucionalidade jurídica vários mecanismos viabilizadores de um
enorme fluxo de recursos financeiros da grande maioria da sociedade para uma
meia dúzia de pessoas, sem relação direta com a dinamização da economia real.
Outro ponto que merece
destaque na entrevista do presidente do BC é sua afirmação de que pretende
“deixar a vida pública”. Assim como todos os anteriores presidentes do Banco
Central, em alguns meses teremos notícia da instalação de Sua Excelência em um
vistoso posto no mercado.
É preciso pontuar que
todos os governos brasileiros, incluídos o atual (Lula 3) e o anterior
(Bolsonaro), são competentes gestores desses mecanismos de produção de
profundas desigualdades socioeconômicas. As diferenças entre eles são
cosméticas ou secundárias. A tal polarização radical e ruidosa alimenta os
incautos, incapazes, por várias razões, de compreender o contexto político e
econômico mais profundo em que estão inseridos.
As peripécias do
presidente do Banco Central e os poderosos e mesquinhos interesses por ele
cuidados somente cederão espaço diante de uma vigorosa conscientização,
organização e mobilização dos interesses populares, claramente distintos e
distantes do mercado financeiro e do rentismo dominante. A inversão da perversa
lógica socioeconômica prevalecente não cairá do céu ou será viabilizada em um
passe de mágica de algum salvador da Pátria.
Fonte: Por
Por Michael Eby, no El Salto- Tradução: Glauco
Faria, para Outras Palavras
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