sexta-feira, 31 de maio de 2024

Leonardo Rossatto Queiroz: O negacionismo climático no cotidiano da igreja evangélica

Nos últimos cinco anos, usei dados públicos para pesquisar como evoluiu a capacidade de instituições municipais de enfrentar as mudanças climáticas. Como é impossível separar a vida acadêmica e a vida pessoal, esse se tornou um assunto inescapável na minha vivência em igrejas evangélicas, que só foi interrompida no período pela pandemia.

Existe um componente bastante peculiar quando você fala em ambientes evangélicos (talvez seja em ambientes religiosos em geral, mas o meu espaço de vivência é só o evangélico) sobre mudanças climáticas: logo isso vira um debate acerca da pertinência do tema. Mudanças climáticas existem? Como isso afeta a igreja? Qual é o posicionamento dos evangélicos sobre o tema?

Começo respondendo à última pergunta: não existe “posicionamento dos evangélicos” sobre o tema. “Evangélico” não é uma categoria monolítica, e nenhuma posição é comum a todos eles, exceto para os que definem o ser evangélico apenas pelo “crer que Jesus Cristo morreu e ressuscitou para salvar a humanidade de seus pecados”. Mas, em alguns anos de experiência, pude verificar algumas formas de negacionismo climático que aparecem frequentemente dentro das igrejas e gostaria de compartilhar essas percepções com você.

1)       O negacionismo pré-apocalíptico:

- esse era o tipo de negacionismo mais comum antes da pandemia nas igrejas neopentecostais, e o discurso era muito simples. Basicamente era algo como “Jesus está voltando, por que eu preciso me preocupar com mudanças climáticas?”. A ideia da “volta de Jesus Cristo” e do “arrebatamento” como uma expectativa imediata, largamente difundida nas igrejas com uma visão dispensacionalista do Apocalipse, torna todas as demais questões menos relevantes, e isso inclui as mudanças climáticas. O problema do argumento ser simples é que ele também é aplicado com muita facilidade aos eventos do cotidiano. Qualquer evento é analisado pela lente do viés de confirmação. Um exemplo notório: quando acontecem desastres, não é por causa das mudanças climáticas, mas são indicativos de que Jesus está voltando. E isso interdita completamente o debate sobre o assunto.

2) O negacionismo pré-apocalíptico conspiratório:

- depois da pandemia e com o aumento dos eventos extremos, porém, esse argumento começou a perder espaço para uma forma mais elaborada de negacionismo, também no âmbito do dispensacionalismo: o negacionismo conspiracionista. Essa modalidade de negacionismo incorpora o discurso da emergência do arrebatamento a uma retórica conspiracionista que também passa pelo viés de confirmação em relação à volta iminente de Jesus Cristo. A pandemia, por exemplo, era vista como estratégia para implantação de um “governo mundial”, o que, para boa parte dos dispensacionalistas, é prerrogativa para a volta de Cristo, uma vez que o governo mundial seriam o símbolo da besta e do falso profeta do Apocalipse. Com o arrefecimento da pandemia, as mudanças climáticas viraram o alvo; agora o argumento para a formação de um “governo mundial” é o dos extremos climáticos. E junto com esse argumento vem toda espécie de delírio conspiracionista, como “o uso de antenas HAARP para manipulação do clima”.

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3) O negacionismo do Salmo 91:

- essa não é exatamente uma posição negacionista, mas é uma postura comum em igrejas em relação ao tema. É a noção de “mudanças climáticas existem – mas não irão me atingir”. A referência ao Salmo 91 explica: “Mil cairão ao meu lado, dez mil à minha direita, mas eu não serei atingido”. É uma lógica que concilia duas características muito populares na cultura pentecostal e neopentecostal: a ideia de que o cristão é especial e é protegido por Deus e a ideia de que “o mundo jaz no maligno”, então não há nada que se possa fazer. Essa lógica tem um efeito duplamente negativo em relação ao enfrentamento das mudanças climáticas: ao mesmo tempo em que desincentiva qualquer ação relativa ao assunto em “um mundo tomado pelo mal”, também leva o cristão a achar que por alguma intervenção divina ele não será afetado. No contexto do desastre no Rio Grande do Sul, esse tipo de negacionismo ficou notório com a viralização de fotos de igrejas alagadas, mas com suas fachadas intactas, em meio a destruição das enchentes. A mensagem era justamente a de que “Deus protege os seus”.

4) O desastre como punição divina:

- o argumento do desastre como punição divina não é novo e já apareceu inúmeras vezes na história do cristianismo. Mas agora também tem se aplicado às mudanças climáticas. Em relação ao Rio Grande do Sul, viralizaram vídeos antigos de pastores dizendo que o Rio Grande do Sul era o estado com a menor porcentagem de evangélicos do Brasil e isso provocaria o “juízo do Senhor”. Essa mentalidade é complementar ao argumento de que “Deus protege os seus”, afinal, o outro lado dessa moeda é justamente punir os que “não são seus”. Esse argumento é profundamente contraproducente no enfrentamento às mudanças climáticas, porque faz com que as pessoas comecem a achar que o sofrimento provocado pelos eventos climáticos é merecido. E é muito difícil convencer alguém que pensa desta forma de que desastres atingem da mesma maneira cristãos e não cristãos. E que as mudanças climáticas estão aumentando a frequência e a intensidade desses desastres.

A notícia boa é que existem cada vez mais pessoas dentro das igrejas que pensam além dessas simplificações argumentativas, que, quando não são negacionistas, são desmobilizadoras. E isso mudou muito nos últimos anos: em 2019, era bem mais difícil falar da relação do ser humano com a natureza na igreja do que é em 2024. Hoje, eu já consigo explicar que, para além da minha motivação acadêmica, a minha própria fé cristã ampara o cuidado com a natureza. Ideias que antes pareciam esquecidas, como a de que o ser humano foi incumbido de cuidar de um jardim, estão aos poucos voltando aos púlpitos. Ainda existe uma longa caminhada pela frente, mas a percepção do evangélico em relação às mudanças climáticas está tomando o mesmo rumo da percepção da própria sociedade: as pessoas estão compreendendo que o tema é importante, é urgente e demanda ações imediatas.

De algum tempo para cá, as pessoas pararam de me questionar da maneira como elas faziam no começo do texto. Elas começaram a me tomar como referência no tema, o que é bom. “Viu o que está acontecendo no Rio Grande do Sul? Horrível, né? Tem explicação para aquilo?”. O grande volume de desastres e situações climáticas anormais, como as frequentes ondas de calor do último ano, estão mostrando para as pessoas que sim, existe algo errado no clima. Boa parte delas ainda não sabem muito bem o que fazer a respeito do tema dentro das igrejas, mas algumas boas ações começam a surgir: reciclagem, consumo consciente, iniciativas de preservação. Grupos como o Renovar Nosso Mundo e o Nós Na Criação começaram a falar com mais intensidade em igrejas brasileiras sobre como conciliar uma visão cristã da vida e a preservação da natureza. A pauta climática está cada vez mais presente nas igrejas. O desafio é ela se sobrepor ao negacionismo, que por muitos anos se arraigou nas comunidades, envolvido por uma roupagem teológica, com implicações bastante sérias no cotidiano.

 

•        Os negacionistas do clima. Por Luigi Manconi

 

Jogar na prisão aqueles que negam a catástrofe? Os céticos da mudança climática devem ser colocados em condição de não prejudicar? Ou suas opiniões devem ser consideradas como uma contribuição para a discussão pública e o debate científico?

Vamos com calma. Como todas as Grandes Angústias (guerras, epidemias, desastres naturais), também a mudança climática invade a psique individual e coletiva como um trauma, destinado a se tornar objeto de remoção ou se transformar em tabu. A enormidade da aposta em jogo e sua conotação histórica e ameaçadoramente definitiva (a extinção do planeta) podem induzir a negar o próprio evento, pois está, em primeiro lugar, fora do nosso alcance. Em outras palavras, a mudança climática é demais para a nossa capacidade de percepção e para nosso espaço mental; é demais para a nossa possibilidade de colocá-la na lista das incógnitas; é demais para a nossa vontade de intervir para combatê-la. O resultado é uma sensação de impotência e, justamente, àquela exigência de remoção.

O negacionismo ambiental decorre dessa arraigada desconfiança em nós mesmos. E compreende-se: como preencher a distância entre o que cada um de nós pode fazer (ou seja, a nossa etiqueta ecológica) e os fenômenos que parecem, com razão, incontroláveis? Como identificar alguma relação direta entre os nossos comportamentos virtuosos (a coleta seletiva de lixo ou a poupança de água) e o derretimento da geleira do Adamello?

É sempre uma questão difícil de enfrentar, especialmente na Itália, onde, para ir às origens, o fracasso da reforma protestante, a fragilidade do espírito cívico e do sentido de responsabilidade individual contribuem para tornar mais irreconhecível o nexo entre local e global e entre escolhas pessoais e destino universal.

É aqui que a política deveria intervir, que é justamente o que mantém junto o destino de cada um e de todos, assim como o interesse imediato e a perspectiva futura. Deste ponto de vista, a direita sofre de uma limitação estrutural, pois suas raízes políticas afundam no aqui e agora, num espaço territorial circunscrito e em um período temporal limitado. Essa é a verdadeira razão da impossibilidade de a direita ser ecologista (as dificuldades da esquerda existem, mas têm uma explicação diferente).

E assim, enquanto a direita tende a prevalecer na maioria dos países europeus, a política ambiental comunitária resulta cada vez mais desconsiderada. É nesse clima político que a negação da emergência climática, com base em toscos raciocínios e bizarras análises “contracorrente”, parece se espalhar cada vez mais. E cada vez mais encontra consistentes grumos de anticientismo (os No Vax) e se aglutina em torno de manifestações paranoides de teorias conspiratórias internacionais.

A consolidação dessa atitude e da mentalidade que a inspira podem constituir, de fato, um obstáculo à adoção de políticas ambientais coerentes e de longo prazo. Se isso for verdade, e se o negacionismo ambiental representa uma ameaça à capacidade de reação das sociedades, cabe recorrer à repressão penal para combatê-la?

Isso foi perguntado ao cientista político Gianfranco Pellegrino em Domani em 23 de maio passado, dando início a um debate interessante. A tal respeito, há quem tenha evocado a legislação italiana sobre o negacionismo em relação ao Holocausto, mas a comparação parece impensável. É verdade que em 2016 foi introduzida no ordenamento jurídico italiano o agravante de negacionismo: um endurecimento sancionatório no caso em que as condutas contempladas pela lei Mancino, de propaganda, instigação e incitação à discriminação, se baseiem na negação do Holocausto, de crimes de guerra, contra a humanidade e genocídio previstos pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional. No entanto, a comparação entre negacionismo do Holocausto e negacionismo da mudança climática parece não se sustentar. No primeiro caso, estamos diante de uma tragédia que aconteceu quase um século atrás, sobre a qual o debate científico e a pesquisa historiográfica possuem sólida tradição.

E aquela tragédia ainda continua sendo uma ferida aberta para toda a humanidade.

No segundo caso, ainda há uma controvérsia aberta e fortemente geradora de divisão. Não só: no caso do Holocausto, o Parlamento italiano renunciou a punir o negacionismo como crime autônomo, querendo conectá-lo mais à materialidade dos atos de discriminação ou à capacidade de emular discursos de ódio. E isso justamente porque também não queria sancionar criminalmente as opiniões, nem mesmo as mais infames. A ponto de que atos de propaganda, instigação e incitação, para que sejam sancionados criminalmente, devem ser “cometidos de tal forma que resultem em concreto perigo de difusão”. Não um mero e abstrato crime de opinião, portanto, mas um tipo de perigo concreto.

Isso vale ainda mais para o negacionismo em âmbito de clima. Mesmo que represente um perigo para a implementação de políticas ambientais voltadas para o futuro e um possível instrumento de “manipulação das massas”, só existe uma estratégia útil para combatê-lo: o conhecimento.

 

Fonte: Observatório Evangélico/La Repubblica

 

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