Leonard Boff: É possível superar a crise
sistêmica atual?
Retomo o tema
“Reflexões sobre as causas da crise sistêmica”, que estão na raiz da atual
crise. Interrompemos para refletir sobre a manifestação clara da mudança
climática em curso, causando devastadores enchentes no Rio Grande do Sul. É um
dos sinais que Gaia, a Mãe Terra, nos está dando de que ela não suporta mais o
modo capitalista de habitar o planeta. Pairam, em suspenso, na atmosfera cerca
de dois trilhões de toneladas de gazes de efeito estufa que permanecem por
cerca cem anos. Como a Terra pode digerir toda essa imundície?
O modo capitalista de
produção se caracteriza fundamentalmente por considerar a Terra não como algo
vivo e sistêmico, mas como um baú cheio de recursos a serem explorados para
benefício humano, em especial, para aqueles que detém o ter, o saber e o poder
sobre tais recursos e sobre o curso da história. Esse sistema se impõe sem
qualquer sentido de limite, de respeito e cuidado para com os ecossistemas.
Encontra sua expressão política no neoliberalismo, dominante em quase todas as
sociedades, mas não entre os povos originários que se sentem natureza e cuidam
dela.
Além do eclipse da
ética e da asfixia da espiritualidade no mundo atual, quero acrescentar ainda
mais dados. O primeiro, nas palavras do Papa Francisco na Laudato Sì: “Ninguém
pode ignorar o fato de nos últimos anos termos assistido a fenômenos meteorológicos
extremos, períodos frequentes de calor anormal, secas severas”. O que ocorreu
em maio no Sul do país, simultaneamente ocorreram enchentes fenomenais na
Alemanha, na França, na Bélgica e no Afeganistão.
Outro ponto é a
Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot): precisamos de 1,7 Terra para atender ao
consumo, especialmente das classes opulentas do Norte Global. Pretendem tirar
da Terra aquilo que ela não pode mais dar. Em resposta, por ser um Super
Organismo vivo, reage com mais aquecimento, envio de uma gama de vírus e com os
referidos eventos extremos.
Por fim, um grupo de
cientistas, a pedido da ONU, definiram as nove fronteiras planetárias
(planetary bounderies) que devem ser mantidas para garantir a estabilidade e a
resiliência do planeta (mudança climática, integridade da biosfera, mudanças no
uso do solo, disponibilidade de água doce, fluxos biogeoquímicos, representados
pelos ciclos de nitrogênio e fósforo, acidificação dos oceanos, carga de
aerossóis na atmosfera, esgotamento da camada de ozônio e o que foi chamado de
“novas entidades” — partículas que não existiam na natureza — e foram introduzidas pela ação humana —
como microplásticos, transgênicos e rejeitos nucleares). Verificou-se que seis
das novas fronteiras foram ultrapassadas. Por serem sistemicamente articuladas,
pode dar-se o efeito dominó: todas caiam. Então a civilização colapsa.
O certo é o que tem
atestado muitos cientistas: a ciência e a técnica não conseguem mais deter a
mudança climática, mas podem apenas advertir sua chegada e minorar os efeitos
danosos. Mesmo assim cabe a pergunta: temos chance de sair da crise sistêmica?
Depende de nós, se
aceitamos mudar ou prosseguir no mesmo caminho. Como bem notou Edgar Morin: “A
história várias vezes mostrou que o surgimento do inesperado e o aparecimento
do improvável são plausíveis e podem mudar o rumo dos acontecimentos”. O ser humano
pode se conscientizar e traçar outro rumo. Pelo fato de ser um projeto infinito
e habitado pelo princípio esperança, estão dentro dele virtualidades que,
desentranhadas, poderão instaurar uma saída salvadora. Mas antes devemos
enfaticamente dizer: temos que inviabilizar o projeto capitalista, seja pela
rebelião das vítimas ou pela natureza, pois ele é suicida: na sua lógica de
acumulação infinita dentro de um planeta finito, pode continuar na sua insânia
até fazer da Terra um local inabitável. Se ele começou um dia, pode também
desaparecer um dia. Nada é perpétuo.
As grandes narrativas
do passado não nos vão tirar da crise. Temos que auscultar a nossa própria
natureza. Nela estão os princípios e valores que, ativados, mesmo sob grandes
dificuldades, nos poderão salvar.
Em primeiro lugar,
temos que definir o ponto de partida. É o território, o biorregionalismo. É na
região, assim como a natureza a desenhou que podemos construir sociedades
sustentáveis e mais igualitárias. Elenquemos os valores que estão em nós.
Como os
bioantropólogos mostraram o amor pertence ao DNA humano. Amar significa
estabelecer uma relação de comunhão, de reciprocidade, de entrega
desinteressada e de sacrifício de si em função do outro. Amar a Terra e a
natureza implica criar um laço afetivo com elas: sentir-se unidos a elas. De
mais a mais sabemos que todos os seres vivos possuem o mesmo código genético de
base (vinte aminoácidos e quatro bases nitrogenadas).
Somos irmãos e irmãs
de fato, entre nós e com todos os demais seres. Não basta sabê-lo, mas senti-lo
e vivenciar o laço de comunhão. Além disso, o estudo da evolução do ser humano
(ele tem 7-8 milhões de anos e como sapiens/ demens uns 200 mil anos) revelou
que foi a solidariedade na busca e no consumo dos alimentos, juntos criando a
comensalidade, que permitiu o salto da animalidade à humanidade.
Somos seres
naturalmente solidários, como se tem mostrado nas milhões de ajudas aos
desabrigados e afetados pelas enchentes no Sul do país. Somos também seres de
compaixão: podemos nos colocar no lugar do outro, chorar com ele, partilhar
suas angústias e nunca deixá-lo só. Ainda somos seres de cultura, da criação do
belo, nas artes, na música, na pintura, na arquitetura.
Podemos fazer aquilo
que a natureza por si jamais faria, como uma música de Villalobos ou uma
pintura de Portinari. Como disse Dostoievski: “será a beleza que salvará o
mundo”. Não a beleza como mera estética, mas a beleza como atitude de estar
junto a um moribundo, segurando-lhe a mão e dizendo-lhe palavras de consolação:
“Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração”.
Somos, desde a mais
alta ancestralidade, quando emergiu o cérebro límbico há 200 milhões de anos,
seres de afeto e de sensibilidade. No coração sensível reside o enternecimento,
a ética e o mundo das excelências. Já o escrevi no artigo anterior: somos, no
mais profundo de nossa humanidade, seres espirituais. Somos capazes de
identificar aquela Energia vigorosa e amorosa que se esconde dentro de cada
criatura e em nosso interior (entusiasmo) e a faz continuamente existir e
co-evoluir.
Como espirituais
vivemos o amor incondicional, o cuidado por tudo o que existe e vive e
alimentamos a esperança de uma vida que vai além desta vida. Acompanha-nos
também sombras que podem reverter o amor em indiferença e a solidariedade em
insensibilidade. Mas dispomos de uma força interior, não de negá-las mas de
mantê-las sob o controle e fazê-las uma energia para o bem.
Uma biocivilização,
fundada sobre tais valores e princípios, pode abrir uma senda inicial, capaz de
transformar-se num largo caminho, assinalar-nos marcos na caminhada e
apontar-nos uma luz no fim do túnel. Tudo isso poderá ser conquistado com muito
suor e luta contra aquilo que um dia fomos (inimigos da Terra), em favor de uma
nova forma de habitar amigavelmente este pequeno e único planeta que temos,
nossa Casa Comum, a generosa Mãe Terra.
Fonte: A Terra é
Redonda
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