quarta-feira, 29 de maio de 2024

Heraldo Campos: ‘Tragédias em Cidades Gaúchas - Culpa de São Pedro ou falta de ação?’

Costumo em alguns textos que escrevo, encerrar com uma frase de um escritor conhecido e libertário para uma grande maioria de seus leitores. Confesso que nunca abri e tentei ler um livro, no bom formato papel, do escritor italiano Umberto Eco. Espero não me faltar tempo, nesse mundo de tragédias climáticas que vivemos no nosso mal tratado Planeta.

De qualquer modo, como assisti, recentemente, na TV por assinatura, o documentário ”Umberto Eco: A Library of the World”, onde um neto do professor e escritor declarou que não havia lido um livro de um autor que o avô recomendara, vou nessa onda dos que ainda estão em falta com a leitura e cito a seguinte frase, porque fui pesquisar um pouco na internet sobre esse grande pensador: “Justificar tragédias como “vontade divina” tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas.”

Tragédias, e daí? Será que a culpa é de São Pedro ou de uma “vontade divina” a tragédia pelo que vem passando o povo que vive na maior parte das cidades do Estado do Rio Grande do Sul? Nunca é demais lembrar que várias cidades brasileiras que enfrentam problemas relacionados às enchentes e aos deslizamentos de terra já causaram muitas vítimas ao longo dos últimos anos.

“De um modo geral, as pessoas mais atingidas são as de baixa renda, porque acabam ocupando as áreas inundáveis e as encostas íngremes por falta de opção de moradia. Os terrenos geologicamente e naturalmente instáveis, as chuvas de verão (previsíveis) e a construção de casas sem orientação técnica alguma, se encarregam dos trágicos acidentes. O descumprimento das diretrizes de ocupação do solo (plano diretor) e as vistas grossas ao Código Florestal vigente, por parte do poder público, facilitam a desordem dos assentamentos no espaço urbano.

Está mais do que passando da hora de realizar uma reforma urbana para valer no âmbito dos municípios e resolver essa situação. Nessa reforma seriam realocadas as comunidades que vivem em situações de risco geológico. Se esta medida pode ter um custo aos cofres públicos e envolve interesses políticos distintos num mesmo espaço urbano é o mínimo que se espera de um governo democrático, voltado para atender as reais necessidades da maioria da população.

O cenário em que ocorrem esses tipos de acidentes naturais e/ou induzidos pela atividade humana chega a ser monótono e repetitivo em vários municípios. A falta de infraestrutura urbana, representada pela precariedade de saneamento básico, produz o acúmulo de lixo e entulho nos taludes dos morros e nas várzeas dos córregos, que acelera os processos de deslizamentos e de inundações.

O poder público não pode se furtar e deve enfrentar o problema de frente, empenhando seu corpo técnico no atendimento da população, que inclui planejamento, trabalho de campo e fiscalização permanente. Assim, sem a vontade política por parte dos governantes para atuar nessa área, todo ano vai ser a mesma ladainha: a culpa é de São Pedro. Vale lembrar que São Pedro não tem controle sobre o fenômeno El Niño, que provoca o aumento da temperatura das águas do Oceano Pacífico deslocando a umidade da Amazônia para o sul do país, e nem sobre as mazelas causadas pelo aquecimento global.”

Tragédias, e daí? O que fazer?. Além do reassentamento de moradias, para que as pessoas tenham uma vida digna e segura, toda a atenção é pouca com os mais desassistidos, para que não se transformem em refugiados ambientais.

“A globalização e a necessidade de consumo, é um dos motivos da repetida devastação da natureza. Por mais que as grandes potências do mundo resistam em admitir, o planeta terra padece da própria intervenção humana. E essa devastação e a necessidade da humanidade de conviver com recursos naturais, gerou um novo tipo de refugiados, os chamados refugiados ambientais.

Essa categoria surgiu pelos inúmeros episódios diários de descontrole e devastação no meio ambiente, por exemplo: tsunamis, acidentes nucleares, seca, desertificação de rios, barragens em rios, poluição de nascentes, aumento de temperatura, falta de chuva e outros tantos motivos que forçam os habitantes abandonarem sua terra de origem, suas raízes e cultura em busca de sobrevivência.

Não é possível mais ignorar que a quantidade de refugiados ambientais no mundo, atualmente, supera os de vítimas por guerras. E hoje, no Brasil, existem muitos lugares que deixaram de ser habitados por não mais possuírem condições naturais de moradia.”

Para encerrar, voltamos ao escritor Umberto Eco com o seguinte pensamento: “A mente desenvolve-se como o corpo, mediante crescimento orgânico, influência ambiental e educação. Seu desenvolvimento pode ser inibido por enfermidade física, trauma ou má educação.”

 

¨      Maioria das estações do governo do RS que enviam dados de chuva em tempo real não funciona. Por Sílvia Marcuzzo

No leste do Rio Grande do Sul (RS) – onde estão as regiões mais afetadas pelas enchentes que devastaram o estado em maio –, a Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) tem 94 estações que medem a chuva e enviam os dados em tempo real, a chamada telemetria. Contudo, dessas 94, só 60 estão disponíveis no portal da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Destas, 48, ou seja, a maioria, não estão transmitindo os dados como deveriam fazer.

A denúncia, obtida pela Agência Pública com exclusividade, é do professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPF) Fernando Meirelles. Ele foi diretor do Departamento de Recursos Hídricos da Sema de 2015 a 2018. “A maioria das estações tem dados defasados, porque pararam de funcionar”, afirma.  

Das 60 estações presentes na plataforma, 27 estão na Região Hidrográfica do Guaíba, onde mora a maior parte da população gaúcha e que inclui os rios Jacuí, Caí, Gravataí, Sinos e Taquari. Outras 18 estão na laguna dos Patos e 15, na lagoa Mirim. 

Os dados de chuva em tempo real, acessados pelo portal da ANA, são fundamentais para avaliar a intensidade da precipitação para orientar a população e acertar as previsões de vazão. Os equipamentos com telemetria transmitem informações por satélite, telefonia celular ou wi-fi.

<><> Por que isso importa?

  • A transmissão de dados de volume de chuvas em tempo real é apontada por especialistas como essencial para tomada de decisões, por exemplo, sobre evacuação de cidades.
  • A alteração do clima torna eventos extremos mais comuns e dificulta que previsões passadas sirvam como parâmetro para o futuro.

Meirelles acrescenta que, apesar de o governo do Rio Grande do Sul ter investido R$ 7,5 milhões na compra dessas estações telemétricas entre 2017 e 2019, a atual gestão estadual, do governador Eduardo Leite (PSDB), estaria realizando um desmonte da rede complementar. Somada ao vandalismo e à perda de sinal, a situação da transmissão de dados estaria prejudicada. “Perdemos informações importantes para os municípios pequenos e [ficamos com poucos dados] para dimensionar corretamente a chuva e a vazão, e isso afeta a tomada de decisão.” 

De acordo com Meirelles, na bacia hidrográfica do Guaíba, há informações apenas de oito das 27 estações acessadas pelo portal. Uma estação no Gravataí parou em abril de 2021, outras deixaram de operar em outubro de 2023 e em 27 de abril de 2024, respectivamente, quando começaram as chuvas.

Meirelles esclarece que essa falha traz diversos prejuízos para o planejamento e para a emissão de alertas mais precisos. “Se eu não tenho dados medidos, eu fico só com a estimativa do modelo. E o modelo, para ser calibrado antes de ser utilizado, precisa de bons dados de chuva e nível. Sem bons dados, se faz a calibração possível e se roda um modelo que estará errando, para mais ou para menos, dando alertas negativos ou não dando alertas positivos.” 

Ainda de acordo com o professor, na laguna dos Patos existiam 18 estações; destas, só duas estão transmitindo dados. Na lagoa Mirim, das 15, apenas duas estão em operação. “Ou seja, podíamos ter um retrato mais nítido do comportamento da Laguna e uma estimativa muito melhor do que iria acontecer em Pelotas”, explica Meirelles.

passado. “Apenas duas pessoas estavam trabalhando para os equipamentos funcionarem. Como um técnico está de licença-saúde desde novembro passado e o outro não tem como fazer esse serviço sozinho, o colega está no momento atuando nos atendimentos de emergência”, pontua o presidente da Associação dos Servidores da Sema, Pablo Pereira. Essa situação é comprovada pelas datas em que as estações pararam de trabalhar.

Pereira explica que, sem essas estações funcionando, as informações necessárias são estimadas com base em outras estações, que podem estar muito longe ou não ter registrado chuva, por exemplo. “Uma rede não é planejada para ter dados a mais, mas sim o que é necessário. Os eventos em Caraá [litoral norte], em julho do ano passado, não podem ser analisados porque as estações não estavam operando. Nem um alerta eficiente pode ser dado sem essas informações”, pontua.

Estima-se que há a necessidade de ter, pelo menos, seis equipes de campo para atender os 12 roteiros de medição pelo estado. A falta de servidores públicos concursados é um dos principais problemas da atual gestão. “É impossível fazer esse serviço com apenas um funcionário, inclusive por questões de segurança. Esse é um dos exemplos que denotam o interesse do governo em cuidar do meio ambiente e zelar pelas estações de monitoramento”, comenta Pereira.

Ele enfatiza que tanto os laboratórios da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fepam), que analisavam parâmetros de qualidade das águas, quanto estas sofrem com o sucateamento imposto pelas últimas gestões estaduais. A Sema chegou a ter 186 estações entre pluviométricas (coletam água da chuva) e fluviométricas (medem o nível dos rios). Grande parte das que o estado operava foi carregada pelas enxurradas anteriores, vandalizada ou até furtada. 

Em resposta à reportagem, a assessoria de imprensa da Sema enviou uma nota dizendo que “não há prejuízos ao monitoramento quando da inoperância de estações automáticas hidrometeorológicas e pluviométricas”. Também reforçou que o estado faz parte de um sistema integrado, estando disponíveis informações da própria secretaria, do Serviço Geológico do Brasil (SGB), do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e do setor elétrico. Quando ocorrem problemas técnicos ou perda de estações devido à enchente, provisoriamente o estado utiliza informações das estações de parceiras que seguem ativas ou de réguas manuais instaladas.

Além da ANA, da Sema e do Cemaden, as empresas do setor elétrico também contam com estações de monitoramento. Para Meirelles, porém, “esses dados não são suficientes para entender todo o processo; por isso, o estado entrou com uma rede complementar, pegando as áreas que não tinham informações. É como se fosse fazer um exame de sangue. Mas, por economia, só se faz o hemograma simples. Essa é a lógica da rede nacional. Ou se tens vários pacientes e só cuida dos quatro mais “doentes”. Essa é a lógica do Cemaden, que só acompanha onde há cheias frequentemente, como o Caí, o Taquari e o Sinos”.

·        Situação do RS não é muito diferente da de outros estados, diz técnico da ANA

De acordo com Wesley Gabrieli de Souza, superintendente de Gestão da Rede Hidrometeorológica da ANA, a situação da rede hidrológica do Rio Grande do Sul não é muito diferente da de outros estados. 

“A despeito de eventuais dificuldades relacionadas ao orçamento e à força de trabalho, na hora da crise, as instituições se unem para possibilitar a continuidade de disponibilização dos dados hidrológicos para a sociedade.” Souza diz que estações automáticas da ANA nas bacias hidrográficas dos rios Jacuí, Taquari e Caí foram avariadas nas últimas enxurradas. E que deverão ser recuperadas quando houver condições de chegar lá. Mas para isso é preciso que se tenha segurança para acesso aos locais.   

Além das estações hidrológicas automáticas, outra forma de obter dados para o monitoramento, mas para alertas, é por meio de observadores locais, que são pagos pela ANA. São pessoas que vivem nas proximidades das estações hidrológicas e fazem a leitura das réguas que registram os níveis dos rios e dos pluviômetros. Souza diz que “cada estação conta com um observador hidrológico, que realiza essas leituras rotineiramente, inclusive possibilitando avaliarmos a qualidade dos dados que são transmitidos e indicando necessidades de manutenção ou correção”. Quando as estações são avariadas, os dados coletados pelos observadores são transmitidos por telefone e disponibilizados no SNIRH (Portal Hidro-Telemetria).

O superintendente da ANA, que fica sediado em Brasília, informa que nas bacias dos rios Jacuí, Taquari-Antas e Caí – os que têm maior parcela da vazão que aportam no Guaíba – a agência dispõe de 18 estações de monitoramento fluviométrico com telemetria, ou seja, estações automáticas, com disponibilização de dados em tempo real. Essas estações são operadas pelo Serviço Geológico do Brasil, com recursos repassados pela ANA. 

“Contudo, em razão da cheia crítica ocorrida no início de maio deste ano, dez estações sofreram avarias, o que, consequentemente, prejudicou a continuidade do envio dos dados de nível e chuva, de forma automática (telemétrica)”. Devido a essa situação, em algumas das estações avariadas, os dados hidrológicos passaram a ser coletados manualmente e disponibilizados diariamente.

 

Fonte: EcoDebate/Agencia Pública

 

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