quarta-feira, 1 de maio de 2024

‘Guloso esse povo de Ferraz’, diz elo do PCC sobre propinas em prefeitura

Conversas obtidas pelo Ministério Público de São Paulo após a quebra de sigilo do cantor de pagode Vagner Borges Dias, o ‘Latrell Britto’ – apontado como o ‘cabeça’ do esquema de fraudes do PCC em licitações de mais de R$ 200 milhões em prefeituras e câmaras de vereadores da Grande São Paulo e do interior do Estado -, revelam detalhes de como o grupo operava e também o nível de acesso a gestões municipais.

No caso de Ferraz de Vasconcelos, município a leste da região metropolitana, os diálogos indicam a interlocução com uma ‘secretária’ da prefeitura, gestão Priscila Gambale (Podemos), e também acertos com a ‘pregoeira’ de uma licitação sob suspeita. Outro trecho cita um ‘deputado’ – o relatório da Promotoria não aponta o nome do suposto parlamentar; as investigações estão em curso.

Os diálogos do pagodeiro do PCC são peça chave da Operação Munditia, cuja fase ostensiva foi aberta no último dia 16. Na ocasião, o vereador de Ferraz Flávio Batista de Souza (Podemos), o ‘Inha’, foi preso sob suspeita de receber propina da quadrilha ligada ao PCC que se teria instalado em setores da administração e do legislativo municipal.

Além de ‘Inha’, foram capturados mais dois vereadores, de outros municípios: Luiz Carlos Alves Dias (MDB), o ‘Luizão Arquiteto’, de Santa Isabel, e Ricardo de Oliveira (PSD), o Ricardo ‘Queixão’. Na última quinta, 25, a Promotoria levou à Justiça denúncia criminal que atribui a quatro vereadores e três servidores públicos envolvimento com a organização infiltrada pelo PCC na máquina pública.

Como mostrou o Estadão, no capítulo Ferraz de Vasconcelos as mensagens resgatadas pelos promotores mostram o pagodeiro do PCC pedindo a uma funcionária sua. “Separa 17 mil pro ‘Inha’”.

A menção à ‘secretária’ de Ferraz – provável referência a uma pasta da administração Priscila Gambale – aparece em áudios trocados entre ‘Latrell Brito’ e Antônio, que seria seu funcionário, em maio do ano passado. Antônio diz que a ‘secretária’ de Ferraz ligou para ele e disse que ‘achava melhor não expor’ empresas sob suspeita em um edital emergencial.

“Ela não queria expor, por ‘piriri, pororó’, até porque ia aumentar o valor, o valor vai estar de acordo com a convenção nova, ia aumentar o efetivo, iria chamar a atenção, se podia ser outra empresa”, diz a mensagem.

Antônio relata que a ‘secretária’ disse a ele que já iria publicar o edital definitivo. “Estou enviando, inclusive, esse edital, que ela falou que quer publicar e fazer essa licitação nesse mês que vai começar em junho e ficar esse emergencial no máximo um ou dois meses”, reportou a Vagner.

“E tem mais um detalhe importante. A empresa que fizer o emergencial agora não vai poder baixar muito o preço unitário, o preço por colaborador da licitação, até para não ter problema, né? Isso seria um impeditivo para a Mova, para a Cjm fosse para qual empresa seria. Melhor, de fato, deixar uma tampão que não atrapalhe a gente vencer o processo definitivo”, emenda, evidenciando o acerto prévio das licitações.

Diálogos entre Vagner e Márcio, suposto sócio do pagodeiro, mostra a extensão da atuação da quadrilha. Este diz ao pagodeiro, em fevereiro de 2023, que está ‘vendo para eles venderem 3 mil cestas e 3 mil kits em Ferraz’. “Nem precisa de licitação, caso de urgência”, completa. Vagner diz que ‘ama’ o sócio e responde: “Bora pra cima. Top”.

Em outro diálogo, em agosto de 2022, Antônio, que nessa ocasião usava outro número, revela a Vagner, dados de uma reunião com uma pregoeira de Ferraz. “Fiquei quase 3 horas, bicho, com a pregoeira acertando os negócios dos detalhes da planilha, quem classifica, quem desclassifica, mas está dando certo, graças a deus, saindo agora de Ferraz”, narrou.

Naquele mesmo mês, os dois investigados trataram de uma ‘varrição’ em Ferraz. Vagner questiona se uma das empresas envolvidas no esquema teria um ‘atestado’. Antônio respondeu: “Essas questões do atestado nós vamos fazer aparecer o atestado, ué. Até porque a comissão está com a gente e não vai fazer diligenciamento mesmo, vamos fazer atestado.”

A mesma conversa mostra a extensão da presença das empresas sob suspeita no comando de contratos públicos de Ferraz. Vagner diz a Antônio que sua empresa, a Vagner Borges Dias ME, teria o ‘atestado’ necessário para a varrição.

“Varrição de Ferraz, porque eu fechei com ele (Márcio, sócio de Vagner) todos os serviços. Igual eu te falei, todos os serviços de Ferraz é nosso, né. Inclusive a merendeira quando sair a gente tem que preparar um plano”, disse o pagodeiro do PCC.

O modo que o grupo opera também é revelado pelos diálogos. Os investigadores interceptaram conversas entre ‘Bola’ – também denunciado na Operação Munditia, titular de uma das empresas que teriam envolvimento em fraudes – e ‘Latrell Brito’.

Eles conversavam em meio a ocorrência de pregões, ajustando os lances que cada companhia daria de maneira que o resultado do certame estivesse de acordo com os interesses do grupo. Uma conversa também é datada de agosto de 2022.

Em setembro daquele ano, Vagner detalhou o esquema de fraudes que teria sido montado em Ferraz a um homem apontado pela Promotoria como cúmplice dele, Deneval Júnior: “É, Ferraz é assim: a gente vai derrubar o primeiro e aí eles vão querer chamar os outros, mas os outros estão com o mesmo preço. Então assim, a gente vai falar que está inexequível para fazer emergencial, aí, fazendo emergencial, a gente já põe a sua.”

A Deneval, o pagodeiro também diz que Antônio ‘vai montar’ o edital de Ferraz para uma das empresas investigadas. “Lá também ele já está com o edital de João Pessoa, ele já vai começar a desenhar também e Ubatuba se for para descer para ver o negócio da OS, vai eu, você e ele, já falei com ele também”, emendou ‘Latrell Brito’.

Ainda em setembro, Antônio mandou um áudio ao pagodeiro narrando que o ‘povo de Ferraz é guloso’. “Guloso esse povo de Ferraz, bem gulosinho esse povo, heim, Vagner, tá nos mesmos moldes de Ferraz, insalubridade para todo mundo, encargo social lá em cima, aquela planilha, visita técnica obrigatória, coloquei uma cláusula de repactuação, quando aparecer a convenção coletiva, o efetivo está um pouco acima pra gente ter uma gordura, tá chique. Se passar desse jeito, tá lindo.”

Mais tarde, naquele dia, Vagner detalha a Antônio uma suposta divisão de valores e faz menção a um ‘deputado’. O relatório do Ministério Público baseado na recuperação das mensagens do grupo não indica nominalmente o deputado. As investigações estão em curso.

“E, então, 300 pessoas, né, boa, boa, boa. Então, Ferraz é 10% para eles e o restante dividiu, aí tirou seu 1% lá e dividiu eu e o Márcio, porque assim, eles descontão 11% de INSS, aí falou que não vai descontar, como a empresa está no simples, não vai descontar aí eu consigo eu pagar e não ter aquela sobra, porque não tem os 20% do patronal, nem o RAT, entendeu? Mas é alto, mano, é alto só para lá está indo 90 pau, 90. É muita coisa, agora, se ele vai dar lá, eu não sei, né, porque ele tá falando que tá antecipando com o deputado e esse dinheiro fica para mim. É uma jogada do caralho, mano, estou te falando, porque agora a gente tem que ficar ligeiro agora que a gente está na parceria pra gente não perder, entendeu?”

Cerca de uma hora depois, Antônio ainda reporta ao suposto chefe sobre um outro pregão, que seria realizado no final daquele ano. “Falei com o BETO um pouco mais cedo e a intenção deles é lançar esse edital para que o pregão ocorra entre o natal e o ano novo, por volta do dia 27/28, cara, pra gente resolver mesmo da melhor maneira possível, se for o caso, já boto uns jagunços na porta lá pra não deixar ninguém entrar e vamos para cima.”

•        Corrupção ‘não está adstrita’ a ‘Inha’

Em uma denúncia da Operação Munditia, o Ministério Público de São Paulo narra que a corrupção de agentes em Ferraz de Vasconcelos ‘não está adstrita’ a ‘Inha’, o vereador de Ferraz preso quando a fase ostensiva da investigação foi aberta. Como mostrou o Estadão, as apurações identificaram diálogos que remetem diretamente a entregas de propina ao parlamentar.

A Promotoria também implica Roberto Martinelle, ex-secretário de Governo de Ferraz de Vasconcelos na gestão de Jorge Abissamra (2005-2012), diante de mensagens apreendidas no celular de Vagner.

Em um diálogo, de janeiro de 2021, Martinelle e o pagodeiro tratam de suposto aditivo em um contrato de ‘Latrell Brito’. Em meio a essa suposta tratativa, o ex-secretário de Governo pergunta se pode pedir para o irmão, Marcos, ‘falar’ com Vagner.

Segundo a Promotoria, era Marcos quem acionava o pagodeiro, em nome do irmão, buscando dinheiro na sede de uma empresa investigada. A Promotoria identificou mensagens em que a funcionária da companhia é avisada que Marcos buscaria dinheiro no local. Segundo os investigadores, o dinheiro era separado mensalmente.

 

¨      A promiscuidade entre serviço público e crime organizado. Por Dirceu Cardoso Alves

 

O Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), do Ministério Público de São Paulo, realizou em abril o desdobramento das ações que buscam apurar  o envolvimento da facção PCC (Primeiro Comando da Capital) em contratos da administração publica, supostamente com o objetivo de lavar dinheiro de origem criminosa. Na fase inicial, foram identificadas duas empresas de ônibus que executam grande parte do transporte coletivo da capital e quatro dirigentes acusados de envolvimento com o crime organizado foram presos. Agora, os agentes cumpriram 42 mandados de busca e apreensão  e 15 de prisão temporária, em execução da ordem expedida pela 5ª Vara Criminal de Guarulhos. Entre os envolvidos, com prisão decretada estão três vereadores de cidades do Alto Tietê e do litoral paulista, cujos nomes ainda não foram revelados até o momento em que preparávamos este texto.

A relação da administração pública com facções criminosas é algo que deveria ter merecido maior atenção dos órgãos de controle das atividades e da governança. A população paulistana lembra dos insistentes comentários que circularam publicamente há anos de que os perueiros que atuavam supletivamente ao transporte de ônibus na capital seriam vinculados ou apoiados pelo crime organizado. Pouco ou nada se fez na época para esclarecer essas relações e elas, em vez de cessar, acabaram se ampliadas para a constituição das duas grandes empresas de ônibus que agora o Ministério Público nos apresenta como controladas pelo PCC. As empresas, hoje sob intervenção decretada pelo prefeito Ricardo Nunes, são peças importantes na logística de transporte da cidade e, se pararem, trarão grande transtornos à população. Por isso, deverão ser mantidas em atividade até a solução das pendências.

O correto seria o serviço de “compliance” ter sido executado rigorosamente para manter todos os serviços públicos e contratados para a sua execução dentro do que determinam as leis federais, estaduais e municipais e as normas de procedimento de cada setor. Não pode uma empresa cuja finalidade de  suprir o transporte da população, servir paralelamente para lavar, esquentar ou branquear dinheiro oriundo do tráfico de drogas, roubos ou de qualquer outra atividade ilícita. Tudo o que não fizer parte do estatuto e do contrato da prestadora de serviços é irregular e não pode acontecer.  Assim como irregulares também são as atividades das facções criminosas, que só nasceram e cresceram em nosso País por conta da leniência do Estado, seguidamente enfraquecido por leis que os falsos democratas caçadores de votos geraram ao longo das últimas três décadas.

O PCC (Primeiro Comando da Capital), fundado no chamado “massacre do Carandiru”, ocorrido em 02 de outubro de  1992, tinha por objetivo proteger os encarcerados. Mas, com o passar do tempo, expandiu sua atividade para fora das prisões e hoje é reconhecido como a maior facção do crime organizado, ao lado do carioca CV (Comando Vermelho) que, segundo fontes policiais, são as principais entre 70 organizações criminosas em operação no país (e até no exterior). Tudo se consolidou por falta de controle. Exatamente o que se deu em relação ao transporte coletivo de São Paulo e de outras atividades que agora o Ministério Público identifica como infiltradas na região metropolitana.

O crime organizado só cresceu e hoje domina vastas áreas do território nacional em razão da política de segurança pública equivocada que, em diferentes épocas, chegou a impedir as forças policiais de subirem ao morro e irem aos bairros periféricos dominados, sob o falso argumento de que o choque causava mortes. Hoje, as próprias facções, milícias e assemelhados guerreiam entre si, as mortes ocorrem mesmo sem a presença policial e, mesmo assim, não se encontra formas que possam levar o Estado a recuperar sua autoridade nesses territórios ocupados. Nosso País carece de métodos de administração e controle e, principalmente, que esses procedimentos sejam rigorosamente cumpridos. Além do Ministério Público, os Tribunais de Contas, Comissões de Etica e todos os controladores públicos têm de atuar. Só assim cumprirão suas finalidades e justificarão a existência de seus postos de trabalho…

 

Fonte: Agencia Estado/Diário do Poder

 

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