quinta-feira, 30 de maio de 2024

Gestão de filas e transparência de dados podem melhorar cena do câncer no Brasil

O câncer é um desafio para toda a sociedade. A disparidade e a heterogeneidade nos tratamentos oncológicos no Brasil – como retratado na primeira reportagem sobre o 14º Fórum Nacional Oncoguia – são uma das consequências da fragmentação dos dados de saúde. Para muitos brasileiros, a falta de informações disponíveis – e a dificuldade de compreensão das que existem – é um dos principais obstáculos na jornada pelo SUS. Mesmo após conseguir agendar uma consulta, há longas filas de espera que frequentemente excedem os tempos estabelecidos por lei. A necessidade de uma gestão de filas mais eficiente e a transparência de dados foram debatidos no evento promovido pelo Oncoguia em 8 e 9 de maio.

“O que sabemos sobre os dados relacionados ao câncer no Brasil? Não conseguimos discutir, tomar decisões ou dar o próximo passo sem um mínimo conhecimento do contexto em que estamos inseridos”, indaga Luciana Holtz, presidente e fundadora do Oncoguia.

Os dados são indispensáveis no cenário oncológico, pois auxiliam no diagnóstico, tratamento, prevenção e rastreamento do câncer. Compreender esses números é essencial para criar políticas públicas e orientar a tomada de decisões. Marion Piñeros, cientista da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), órgão ligado à Organização Mundial da Saúde, destacou o papel central dos registros de câncer: “Com a incidência de câncer nos continentes, conseguimos dados comparáveis de incidência em populações específicas, explorando as variações no risco e carga de câncer nestes locais”.

Por isso, ela considera que o Instituto Nacional de Câncer (INCA) e os governos estaduais desempenham um papel importante, como na divulgação de estimativas. Segundo Piñeros, as projeções são de extrema importância e sua qualidade depende das informações e do apoio de todos os setores para facilitar processos e obter dados de qualidade. Aline Leal Gonçalves Creder Lopes, tecnologista da Coordenaria-Geral da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (CGCAN) do Ministério da Saúde, afirmou durante o fórum que a pasta tem trabalhado pensando nas fragilidades que existem e na sustentabilidade dos registros. “Nós, da esfera federal, usamos justamente as incidências que são publicadas pelo INCA. Um gestor que faz uma gestão inteligente precisa usar os dados”, contou.

·        Registros de câncer no RCBP e RHC

Dentro desse contexto, os registros de câncer e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) são componentes essenciais da vigilância que subsidiariam as iniciativas de controle da doença. Os Registros de Câncer de Base Populacional (RCBP) e o Registro Hospitalar de Câncer (RHC) são centros de coleta, armazenamento, processamento e análise – de forma sistemática e contínua – de informações sobre pacientes ou pessoas com diagnóstico confirmado de câncer. Os RCBP estão estabelecidos em 33 cidades, sendo que 31 delas têm pelo menos um ano de informação consolidada.

Mas apesar de os RCBP serem reconhecidos mundialmente como o padrão ouro para a vigilância do câncer nas populações e considerados parte fundamental de qualquer programa de controle da doença, Luis Felipe Leite Martins, chefe da divisão de Vigilância e Análise de Situação do INCA, disse que o Brasil enfrenta desafios significativos em sua implementação e manutenção. Parte disso ocorre porque os RCBP não possuem financiamento estabelecido, dependendo da vontade da administração local para mantê-los operando com condições que permitam produzir dados de qualidade.

Ele reiterou que o Brasil, seguindo o exemplo de outros países, deveria estabelecer uma legislação específica de vigilância através dos registros: “Precisamos de uma política robusta e do apoio das ONGs para promover a descentralização. Essa política vai fortalecer os registros e ressaltar sua importância. Estamos vivendo em uma era abundante de dados, com painéis e informações disponíveis. Nossa fonte de dados precisa ser de alta qualidade.”

Além desse desafio, Martins aponta que outro é a necessidade de que os gestores de saúde tenham ciência não apenas do número de mortes por câncer, mas também da incidência da doença e da sobrevivência dos pacientes. E, para Aline Leal, um terceiro desafio está no fato de que é preciso integrar os sistemas, mas que a linguagem dos sistemas são antigas e, por isso, estão sendo revistas. Ela afirmou ainda que o setor privado tem uma resistência à disponibilização desses dados.

·        Regulação eficiente para gestão de filas de exames e consultas

O compartilhamento de dados em todo o ecossistema de saúde representa um desafio significativo não apenas na oncologia, mas nesta área, em especial, o tempo de espera é um fator preponderante. “Não é difícil dar transparência numa fila de espera. É simplesmente compartilhar o que se sabe. O problema é conseguir gerenciar todas as informações com as pactuações necessárias, enxergando os prestadores necessários”, avaliou Tiago Farina Matos, conselheiro estratégico de advocacy do Oncoguia. “Dar transparência é o primeiro passo para avançar em direção a uma regulação mais eficiente.”

Holtz mostrou preocupação diante do difícil cenário. Ela disse que apesar de conhecermos alguns dados, não sabemos como os pacientes estão enfrentando essa jornada, uma vez que, após o início dos sintomas e da suspeita de câncer, os pacientes enfrentam diversos obstáculos para realizar exames necessários para confirmar diagnóstico e estadiamento. Os pacientes relatam principalmente demora excessiva para realização dos exames, com violação frequente dos 30 dias.

Para Carmen Zanotto, secretária de saúde de Santa Catarina, SC, “quem não tem dado, não consegue fazer planejamento”. Ela apresentou que o estado tem um olhar específico para os procedimentos da oncologia. Diante disso, criaram um painel de controle de monitoramento de cirurgias, onde constam as unidades de saúde habilitadas para tratamento oncológico em Santa Catarina. Para fazer isso, primeiro começaram a compreender como acontecia o acesso dos pacientes: “Não bastava ficar olhando para a fila de pacientes cirúrgicos oncológicos. Nós tínhamos que garantir a linha de cuidado dos pacientes que tinham suspeita de câncer”.

Ela disse que a pasta trabalhou em conjunto com hospitais que atendem Cacon e Unacons para garantir o acesso a fazer a biópsia. Assim, o paciente deixou de retornar para a sua cidade e dentro da linha de suporte passou a ser cuidado pela instituição. Zanotto também mostrou a distribuição de pacientes na fila de cirurgia oncológica por unidade habilitada e o tempo de espera na fila, que busca garantir o acesso em no máximo 60 dias.

Por outro lado, Elaine Giannotti, assessora técnica do COSEMS/SP, destacou que a fila em si não é um problema. É, na verdade, uma forma de organizar a demanda e um processo civilizatório para organizar qualquer coisa. “O problema é quando não conhecemos essa fila”, afirmou. Segundo Giannotti, todos os países com sistemas universais têm filas: “Qual é o nosso problema no SUS com a fila? É que, de fato, não fizemos gestão. Essa fila não está sendo olhada. É um amontoado de nomes no sistema. Elas precisam ser identificadas”.

Para ela existem dois jeitos de olhar fila: um é administrativo, outro é clínico, e que é importante pensar também em linhas de cuidado. Além disso, pontuou outros desafios: transformar a prática regulatória em uma regulação que produza cuidado e fazer com que a integração entre atenção básica e especializada não seja mais um desafio para o SUS. Pascoal Marracini, presidente da Associação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Combate ao Câncer (ABIFICC), acrescentou mencionou que outro desafio é o teto financeiro. Um exemplo disso é quando um hospital tem capacidade para realizar 500 consultas por mês, mas o estado só paga por 200, dentro do referido teto.

·        As novidades na oncologia

Se por um lado há inúmeros desafios para resolver, por outro a ciência e a tecnologia não param de evoluir. Ao mesmo tempo que esses avanços podem ajudar, podem também aumentar a sobrecarga. O uso da tecnologia, incluindo a inteligência artificial, e as inovações da radiologia oncológica e da radioterapia são exemplos de soluções que abrem novos horizontes, mas que precisam de estrutura e profissionais. Clóvis Klock, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), lembra que a especialidade desempenha papel fundamental na oncologia: o profissional atua como protagonista da medicina personalizada, auxiliando o oncologista no desenvolvimento do melhor tratamento para cada paciente.

Houve também o avanço da patologia digital após a regulamentação da telepatologia em 2019. Hoje, já há a utilização da inteligência artificial, que ajuda na redução do tempo de análise de casos, no controle de qualidade com a redução de erros no diagnóstico e no aumento da produtividade médica. No entanto, um ponto de atenção é que há apenas 1,4 patologistas para cada 100 mil habitantes, enquanto o ideal seria de 4 a 5 para essa mesma proporção populacional. Clóvis reiterou que um dos desafios junto ao SUS é buscar uma nova maneira de remuneração, melhorar as residências médicas, estabelecer parcerias público-privadas nos hospitais universitários e promover a utilização da telepatologia e inteligência artificial no SUS.

As novidades envolvendo a cirurgia oncológica também foram discutidas no fórum. Rodrigo Pinheiro, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO), trouxe o impacto da inteligência artificial nas cirurgias oncológicas: “Aumentaram as capacidades humanas em todos os sentidos, capacidade de raciocínio, visão e movimentos”. Uma das novidades compartilhadas são as cirurgias fluorescentes e cirurgias radioguiadas, que permitem redução em um terço no tempo de internação média, redução de complicações pós-operatórias e redução de filas. “Por que não discutimos a incorporação dessas tecnologias nas cirurgias? Fazer uma cirurgia de 2 cm é melhor do que 40 cm”, disse.

Fernando Moura, oncologista clínico do Centro de Oncologia do Hospital Israelita Albert Einstein e membro do comitê científico do Oncoguia, comentou sobre o gap no SUS e na rede privada ao mencionar as novidades na oncologia. Segundo ele, hoje já é possível fazer um exame de predição genética e biopsia líquida. Além disso, na parte de tratamentos Moura falou da imunoterapia, anticorpos monoclonais de droga-conjugada (ADCs), radioteranostica, terapia celular em tumores sólidos, terapia oncolítica viral, vacina mRNA, esferoides e organoides. “Precisamos ofertar para todo mundo. É qualidade de vida. Não tem como não indicar a incorporação”, comentou.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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