domingo, 26 de maio de 2024

DIREITOS HUMANOS: Número de feminicídios indígenas cresce 500% em 10 anos

Os casos de feminicídio de mulheres e adolescentes indígenas no Brasil aumentaram alarmantes 500% entre 2003 e 2022. As vítimas são predominantemente jovens, solteiras e com menor escolaridade.

As informações são do Relatório Técnico sobre Homicídios contra Mulheres e Adolescentes Indígenas no Brasil, desenvolvido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com o Ministério dos Povos Indígenas.

No total, foram registrados 394 homicídios de mulheres e adolescentes indígenas. A região Centro-Oeste teve o maior número de mortes, com 157 casos e uma taxa de 9,7 por 100 mil. Mato Grosso do Sul lidera com 149 homicídios.

“A violência contra as mulheres indígenas dentro do nosso território não é cultural, o machismo e o patriarcado penetraram nossas estruturas sociais e se fortaleceram com a colonização”, explica Amauê Jacinto, indígena guarani Nhandewa, diretora executiva da Associação de Mulheres Indígenas Organizadas em Rede (Amior).

“Além disso, nunca houve um trabalho eficaz de prevenção e combate a essas ações. A negligência do estado criou um campo fértil para essas violências. As mulheres indígenas estão sozinhas”, afirma.

Embora a violência de gênero seja amplamente discutida na sociedade, pouco se fala sobre as agressões vivenciadas pelas mulheres indígenas, tanto dentro quanto fora das aldeias. O relatório revela que estas mulheres estão expostas a diversas formas de violência, incluindo física, psicológica, ameaças e humilhações.

Além disso, 28,7% dos homicídios ocorreram no domicílio, indicando desafios relacionados às dinâmicas familiares. Outros 18,8% dos casos ocorreram no hospital, indicando que uma parcela significativa dos óbitos ocorre após a vítima buscar assistência.

Amauê destaca que não são raros os relatos de mulheres que sofreram abuso sexual dentro de suas próprias casas por familiares próximos, como pai, tio ou padrasto. Muitas carregam até hoje o trauma e o medo dos abusos, mas relatam dificuldades em falar sobre o assunto e denunciar, frequentemente por estarem sozinhas e vulneráveis durante o abuso.

“A violência sexual ainda é um tabu nas comunidades indígenas, o que faz com que muitas vítimas não denunciem por medo de serem mal faladas ou por receio das ameaças que sofrem”, diz ela.

•        Ameaças e tentativa de assassinato

Em 2020 Amauê Jacinto denunciou violências cometidas pela liderança da comunidade em que vivia, em São Jerônimo da Serra, no norte do Paraná. Como resultado, foi ameaçada e expulsa de seu território.

Meses depois, Amauê acolheu em sua casa um grupo de mulheres e crianças indígenas vítimas de violência. Identificada como liderança das mulheres, sofreu uma emboscada seguida de tentativa de assassinato, supostamente organizada pelos agressores que havia denunciado.

“Eu estava gestante e tive minha casa cercada por mais de 30 pessoas, eles gritavam que iriam entrar e me matar”, relembra emocionada. “A intenção era matar mesmo. Essa é uma das consequências que sofremos quando denunciamos as violências no território”, afirma.

Amaue passou a integrar o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Ela e as demais mulheres e crianças vítimas de violência perderam o acesso ao território e precisaram migrar.

A migração de mulheres indígenas para áreas urbanas, em busca de sobrevivência, reflete não apenas as dificuldades enfrentadas em suas Terras Indígenas (TI), mas também a perda de vínculo com sua cultura e identidade.

“Para o indígena, perder o acesso ao território é difícil porque temos que viver em uma realidade e estrutura social totalmente diferente. Estamos expostos a uma sociedade racista, sabemos que não teremos as mesmas oportunidades e não vamos conseguir nos consolidar”, diz Amauê.

Há três anos refugiada em um território não indígena, Amauê cria sua filha sem acesso à sua terra. “Minha perspectiva é que, nesta geração, eu não consiga voltar para uma terra indígena. Talvez minha família consiga, mas eu não. A violência é muito estrutural, e cada vez que defendo mulheres, arrumo mais inimigos”, diz.

•        Dificuldade para denunciar

Ao longo da história do Brasil, as mulheres indígenas foram sistematicamente invisibilizadas. Ainda hoje, enfrentam desafios únicos em suas relações sociais e na luta contra a violência de gênero, quando comparadas às mulheres não indígenas.

“A sociedade não se comove com as mulheres indígenas, os movimentos e organizações não se mobilizam. Parece haver um grande acordo entre estado, movimentos indígenas e organizações para não se falar ou debater sobre isso”, afirma Amauê Jacinto.

Assim como muitas mulheres em situação de violência doméstica, as mulheres indígenas encontram diversas dificuldades para denunciar seus agressores. Isso se deve ao medo, vergonha, temor de represálias familiares ou à falta de conhecimento sobre como realizar a denúncia e buscar ajuda.

“Existe toda uma estrutura machista que faz com que as mulheres sejam oprimidas, fiquem com muito medo e não denunciem os crimes cometidos. Se uma mulher faz a denúncia, ela sabe que a violência pode ser ainda maior”, diz Amauê.

As mulheres indígenas também enfrentam desafios adicionais como o isolamento das comunidades, que limita o seu acesso às informações sobre seus direitos. Muitas vezes, as delegacias e outros serviços públicos ficam distantes, e as mulheres vítimas de violência não têm recursos financeiros ou meios para acessá-los.

Elas também enfrentam barreiras linguísticas, pois muitas não falam português, e os órgãos estatais não estão preparados com tradutores e intérpretes para fazer a tradução linguística e intercultural.

Além disso, a Associação de Mulheres Indígenas Organizada em Rede (Amior) ressalta que as instituições que lidam diretamente com essas comunidades, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), muitas vezes hesitam em interferir nos casos de violência, citando a autodeterminação dos povos como uma barreira, enquanto as mulheres indígenas enfrentam restrições em relação a seus corpos-territórios, às suas liberdades e ao acesso aos direitos básicos.

“Quando procurei uma delegacia para fazer a denúncia, sofri racismo e eles sequer aceitavam meu relato. Queriam que eu falasse com a Funai porque era problema interno e eles não poderiam fazer nada. Todos os órgãos citavam a Funai e, mesmo quando procurei a organização, não queriam fazer algo”, relata Amauê.

Em carta-compromisso divulgada pela Amior, a organização ressalta que “a autodeterminação dos povos, embora seja um princípio importante, não pode servir de justificativa para violações dos direitos humanos, como a violência contra mulheres e crianças”.

Para a associação, as violências doméstica, intrafamiliares e/ou sexual contra mulheres e crianças não se enquadram nestas garantias de direito à autodeterminação dos povos; são crimes que atentam contra a dignidade humana, passíveis de penalidades aplicadas pelo direito criminal do estado brasileiro.

“Existem casos em que as pessoas conseguem vencer todos esses obstáculos e alcançar a justiça, principalmente em crimes hediondos. Quando não há uma penalidade equivalente dentro do território, a justiça brasileira age. Tivemos casos de condenação por feminicídio e estupros coletivos. Mas, para cada caso condenado, existem tantos outros que estão sendo abafados”, afirma Amauê.

·        Ausência de dados

A obtenção de números e dados sobre violência contra mulheres indígenas é uma tarefa complexa, frequentemente dificultada pela ausência de registros oficiais e pela cultura do silêncio prevalente em muitas comunidades.

A falta de estatísticas precisas sobre a violência contra a mulher, além da desinformação sobre seus direitos legais, como a Lei Maria da Penha, representa um dos principais desafios nesses territórios.

Transformar essa realidade é essencial, com a implementação de medidas efetivas para proteger essas mulheres e assegurar que seus direitos sejam respeitados. É necessário romper o ciclo de violência, proporcionando suporte emocional e jurídico às vítimas e garantindo que os agressores sejam responsabilizados por seus atos.

Além das violências físicas sofridas pelas mulheres indígenas em seus territórios, há outras formas de violência, como casamentos forçados, abuso sexual, doação de filhos sem consentimento da mãe, despejo da propriedade e restrição de acesso a propriedades. Essas práticas ilegais, que afetam negativamente a vida das mulheres indígenas, frequentemente não são quantificadas.

A subnotificação e a falta de enfrentamento eficaz agravam a situação, resultando em taxas crescentes de feminicídios em comunidades indígenas brasileiras, como é o caso no Paraná.

“O estado tem que fazer um levantamento sério do que está acontecendo nas comunidades, precisam entrar nos territórios e enxergar de verdade o que está acontecendo, para que não haja casos subnotificados”, afirma Amaue.

•        Observatório da Violência contra as Mulheres Indígenas no Paraná

A Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), através do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), lançou o Observatório da Violência contra as Mulheres Indígenas no Paraná.

A criação do observatório representa o início de uma articulação permanente da defensoria para desenvolver respostas às situações de violência de gênero enfrentadas por mulheres indígenas, tanto dentro quanto fora de seus territórios.

“Normalmente, não atuamos em casos individuais, mas temos recebido um número expressivo de denúncias, e as mulheres indígenas nos procuraram para idealizar o observatório de violência contra as mulheres indígenas”, afirma Mariana Nunes, coordenadora do Nudem.

“Buscamos garantir o protagonismo dessas mulheres, com uma intervenção que visa o apoio, respeitando suas cosmovisões e sem ignorar a violência grave e sistemática que enfrentam”, explica a defensora.

A carência de dados sobre as violências foi o impulso para a criação do observatório, que terá a função de registrar casos já relatados informalmente, envolvendo diversos tipos de violência: física, sexual, patrimonial, política, obstétrica, simbólica e psicológica. O observatório também responde à demanda das mulheres indígenas por maior representação nas instâncias de poder e tomada de decisão.

Uma das primeiras medidas adotadas pelo Nudem foi a criação de um formulário para receber as denúncias formalmente. Disponível no site da Defensoria Pública, o formulário coleta dados sobre violências cometidas contra mulheres indígenas no Paraná, com o objetivo de subsidiar a elaboração de políticas públicas específicas para a prevenção e combate à violência de gênero contra essas mulheres. Será possível registrar a denúncia tanto como vítima quanto como testemunha.

•        Como a ativista Amaue Jacinto luta pelo fim da violência de gênero nos territórios indígenas

"A violência contra as mulheres indígenas dentro dos seus próprios territórios não é algo cultural nosso, ela foi trazida para dentro das nossas estruturas sociais pela colonização” diz Amaue Jacintho, indígena guarani Nhandewa. Desde 2020, ela denuncia casos de violência e, por isso, foi expulsa do seu território. Atualmente integra o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.

Estudante de Ciências Sociais, Amaue cada vez mais se destaca como liderança em busca de justiça e paz para as mulheres indígenas.

Ela é nascida e criada na Terra Indígena (TI) Yvyporã Laranjinha, no norte do Paraná, mas foi morar na Terra Indígena São Jerônimo em razão de seu casamento. Passados dois meses, Amaue e o marido alugaram uma casa na cidade de São Jerônimo da Serra em razão da proximidade com a família e para que o companheiro pudesse conseguir um emprego, já que eles conheciam muitas pessoas na região.

Nesse período, por duas vezes, integrantes do grupo de João Cândido da Silva foram até a casa da indígena. Após as intercorrências, Amaue registrou um Boletim de Ocorrência por ameaça na Delegacia de Polícia de São Jerônimo da Serra, Norte do Paraná

•        O começo da luta

Com o isolamento social provocado pela pandemia em 2020, ainda mais acentuado nas comunidades indígenas, Amaue começou a presenciar casos de violência dentro da TI São Jerônimo, no norte do Paraná. Fez então uma publicação em suas redes sociais.

Segundo ela, o cacique do seu território não viu com bons olhos e não quis dialogar. Assim, ela, seu marido e filhos foram expulsos da TI. Após um ano em que já estava morando na cidade, um grupo de mulheres com seus filhos foram até Amaue pedir abrigo porque estavam sofrendo violência.

"Elas estavam sofrendo violência por esse mesmo cacique. E o que aconteceu foi que acabamos indo para Londrina ocupar a Funai para ficar lá protegidas. Depois, não tinha estrutura para se manter lá, e cada uma tomou seu rumo. Mas nenhuma voltou para seu território,” conta.

Ao retornar para a cidade que fica próxima a aldeia, houve tentativas de agressão a ela por homens mandados pelo cacique, segundo Amaue. Ela chegou a registrar um Boletim de Ocorrência por ameaça na Delegacia de Polícia de São Jerônimo da Serra.

Nesta época viviam a desestruturação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ocasionada pelo governo Bolsonaro, o que dificultou ainda mais a situação dela e todas as outras mulheres. Segundo ela, é necessário que órgãos com Funai autorizem, por exemplo, a entrada da polícia nos territórios.

·        Aumento de casos de violência contra a mulher indígena

Amaue hoje vive em um assentamento do MST com seu marido e filhos e tem cada vez mais lutado e denunciado estes casos. “A principal pauta na atualidade das mulheres indígenas que vivem em território é o combate à violência de gênero, a nossa principal luta. A gente tem índices alarmantes que estão sempre acima da média nacional e, aqui pelos últimos meses, a gente também tem tido um avanço do suicídio entre mulheres indígenas. A gente sabe que o suicídio é multifatorial, mas também sabemos que um dos fatores principais é a violência que acarreta vários prejuízos para a vida das mulheres, não só psicológico, físico, mental, mas até mesmo no fato territorial,” cita.

Entre 2000 e 2020, houve um aumento de 167% nos números de feminicídio de mulheres indígenas, segundo o Instituto Igarapé. Só no Mato Grosso do Sul, estado com a maior população indígena do país, os casos de violência contra mulher indígena cresceram 495% em um período de seis anos. Contudo, ainda há indícios de subnotificação nos casos: entraves como a distância entre as comunidades e delegacias, a língua – 17,5% dos indígenas do Brasil não falam português – e a discriminação frequentemente impedem mulheres de registrarem denúncias.

•        A violência de gênero é colonial

Amaue ainda pondera que o machismo, um dos fatores que geram a violência de gênero, não foi sempre parte da estrutura das comunidades indígenas, mas foi trazido pela colonização. “A gente foi atravessado pela colonização, pelo patriarcado, que é essa forma ocidental de se organizar."

"Esse problema foi trazido para dentro das nossas estruturas sociais, e é um problema que a gente não tinha. As nossas estruturas sociais eram de respeito à vida, se a gente respeita as águas do rio, a árvore, os animais, como que a gente não vai respeitar a vida das nossas mulheres. Os nossos pilares estruturais sociais são de igualdade, coletividade, respeito à vida e não à toa que a gente é o grupo humano que mais preserva biodiversidade no planeta, 5% da população do planeta que são os povos indígenas preservam 80% da biodiversidade do planeta. Esta é a nossa essência que precisamos retornar”, diz.

Neste mês da mulher, entre as mobilizações que serão realizadas em todo o país, esta pauta será debatida e colocada, segundo Amaue, pelas lideranças indígenas mulheres. “Eu tenho muita esperança que possamos conseguir avançar. É, antes de tudo, muito importante que as mulheres indígenas sejam chamadas para falar e serem ouvidas porque também a anos de descaso do Estado. Nossa luta é territorial e nacional.”

 

Fonte: BdF Paraná

 

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