quarta-feira, 29 de maio de 2024

Brazilcore: estilo da periferia rumo às grandes passarelas

"Quem foi que disse que a bandeira não é nossa?", escreve Abacaxi sob uma de suas fotos no Instagram. Na imagem, é possível ver modelos com camisas, saias e biquínis com as cores do Brasil, agitando a bandeira brasileira e vestindo a coleção Brasil do estilista carioca.

Jeanderson Martins, mais conhecido como Abacaxi, lançou sua marca, a Piña, no meio do mandato de Jair Bolsonaro (2019 - 2022), em um momento em que a bandeira do Brasil era considerada um símbolo político do ex-presidente populista de direita e de seus apoiadores. "Quando o Bolsonaro assumiu o cargo, a gente não via mais a galera vestindo a bandeira do Brasil. Foi isso que ele arrancou da gente", diz Abacaxi em entrevista à DW no Rio de Janeiro. "Dentro da periferia, a gente não via mais, como a gente via antes, a galera vestindo a roupa do Brasil."

É exatamente isso que ele agora quer mudar. Com sua marca, Abacaxi quer recuperar o significado da bandeira brasileira e suas cores como um símbolo de identidade nacional.

Até pouco tempo atrás, a camisa da seleção brasileira era sinônimo de orgulho nacional, acima de preferências partidárias. Até Bolsonaro entrar em cena e instrumentalizar a bandeira para seus próprios fins. Agora, Abacaxi quer levar o visual do Brasil de volta às favelas cariocas.

No mais tardar depois do beijo que Madonna deu em uma bailarina trans em seu show histórico no Rio de Janeiro no início deste mês, ficou claro que a bandeira pertence a todos os brasileiros – não só aos apoiadores conservadores do ex-presidente.

Inspirada por Madonna, até mesmo a Marcha do Orgulho Trans de São Paulo está falando sobre um "renascimento" das cores nacionais e está convocando todos os participantes a usarem a bandeira durante o desfile.

Muito antes de Madonna, estrelas internacionais, como Anitta, Lady Gaga e as modelos Hailey Bieber e Emily Ratajkowski, já estavam posando com camisetas do Brasil, disseminando a tendência que é conhecida fora do Brasil como "Brazilcore".

Depois que a modelo e influenciadora Hailey Bieber postou uma foto com uma camiseta do Brasil em 2022, mais e mais vídeos de #Brazilcore apareceram no TikTok, nos quais os influenciadores explicam como combinam roupas e adereços do Brasil.

Não demorou muito para que a edição francesa da bíblia da moda Vogue nomeasse o Brazilcore como a "principal tendência" do verão. Assim, um visual que há muito era considerado estética das classes mais baixas se tornava socialmente aceitável.

Para Abacaxi, esse visual é arte. O jovem estilista de 24 anos tem orgulho de sua identidade e de suas origens. Ele diz ser uma "cria da favela". Abacaxi vem de Vila Kennedy, bairro da Zona Oeste do Rio que muitos da elite carioca só conhecem das manchetes. Sua biografia no Instagram diz: "De VK para o mundo".

Ele ganhou o apelido de uma amiga, depois de ter comido tanto abacaxi para curar uma dor de cotovelo, que acabou ganhando uma dor de estômago. Daí vem também o nome de sua marca, Piña, que é como a fruta é chamada em espanhol.

Abacaxi já se interessava por moda na escola. Durante as aulas, ele desenhava roupas, da forma mais discreta possível. "Foi com uns 14 anos que comecei a me interessar pela moda. Eu tinha uma amiga na escola que desenhava muito vestido de noiva. Sempre fui muito agarrada com mulher, uma criança queer. Comecei a desenhar também, comecei a gostar disso. Só que tive que fazer tudo isso meio que escondido, porque era uma criança discriminada e excluída na escola", diz.

Aos 15 anos, Abacaxi começou a frequentar festas funk no subúrbio do Rio. "Lá no baile do viaduto de Madureira, eu me apaixonei por moda, muito. Senti a obrigação de me vestir bem lá. Então, quando eu saí da igreja, com uns 14 anos, eu me aprofundei na moda. Nesse período eu comecei querer fazer os meus próprios looks", lembra o estilista. Ele começou a vender suas roupas em uma loja de roupas de segunda mão em uma favela, a Loja do Abacaxi.

Os visuais para festa logo se transformaram em sua primeira coleção própria. Com o aumento da demanda, sua prima o ajudou nas costuras. Aos 18 anos, Abacaxi começou a trabalhar como estilista para uma grife brasileira. Em 2020, durante a pandemia de covid-19, fundou sua marca, e a Loja do Abacaxi se tornou a Piña.

"Em 2014, eu abri um brechó com as roupinhas que eu fazia. Eu pegava roupas de outros brechós, customizava e botava no meu brechó para vender um pouco mais caro", lembra. "Com o tempo, eu mudei para uma lojinha, e minha prima começou a costurar comigo. Convidei uma blogueira para ser a garota propaganda da marca. Fiz uma primeira coleçãozinha e vendia na loja."

•        "Coragem de mostrar quem somos"

Abacaxi agora quer fazer mais do que "apenas" reivindicar de volta a bandeira brasileira: ele quer trazer respeito à estética das favelas. "Muitas pessoas acham minha aparência vulgar", diz ele. "É por isso que quero que as pessoas entendam ainda mais que a estética das favelas é arte. Para mim, o que acontece aqui é a maior arte."

"Planos e desejos para o futuro que eu tenho é fazer muita Fashion Week com a Piña, levando a estética para o mundo, porque muitos olham e falam que é vulgar. Mas muitos esquecem que a favela é onde existe a maior das artes", afirma. "Então, eu quero que a Piña atinja bastante espaço no mundo da moda, que a galera comece a respeitar e ver que de fato, estética de periferia é arte."

Os desejos de Abacaxi vão se tornando mais reais a cada dia. Famosos brasileiros como a cantora Anitta, a coreógrafa Arielle Macedo e a rapper Mc Soffia já estão usando suas criações. Abacaxi agora pode viver de seu trabalho. Mas para ele, o Brazilcore é mais do que apenas uma tendência da moda. "A estética Brasil para mim é vontade e coragem de mostrar quem somos e de onde somos."

 

•        Brasileiro dirige único teatro negro da Alemanha

"Ainda tenho um milhão de coisas para fazer", diz Wagner Carvalho, diretor artístico do teatro Ballhaus Naunynstrasse em Berlim, poucas horas antes da estreia da noite.

Wagner não é somente responsável pela direção artística da casa – o único teatro negro da Alemanha, segundo o jornal alemão taz. Na falta de mão de obra, é Wagner quem também faz transferências bancárias, escreve candidaturas para bolsas, prepara orçamentos e, quando é preciso, passa o aspirador de pó nas salas do prédio antigo do bairro de Kreuzberg. "Às vezes até incomoda", diz, sorrindo.

A importância das questões financeiras da casa é destacada por um calendário de editais na parede, que se estende por inúmeros post-its. O Ballhaus Naunynstrasse, um teatro pequeno que existe num antigo salão de bailes desde 1982, depende de recursos externos para sobreviver.

"O histórico dessa casa é um histórico de muita conquista", comenta Wagner. "Às vezes acontece de a gente ter muitos projetos financiados. E tem vezes que não temos dinheiro, e aí, a gente tem que se virar."

•        De Belo Horizonte a Berlim

Foi esse talento de saber "se virar" que trouxe Wagner para o teatro e de Belo Horizonte para Berlim, nos anos 1990. O mineiro começou a fazer teatro e dançar balé com 12 anos de idade. Aos 20 anos, já dirigia o Núcleo de Estudos Teatrais, uma escola de teatro livre em Belo Horizonte. Em função desse trabalho, Wagner ganhou uma bolsa para estudar alemão no Instituto Goethe.

Ainda na ditadura militar, Wagner percebeu que, para ele, o teatro é político. "O teatro me trouxe a consciência política e a consciência de existência enquanto homem negro na sociedade brasileira", afirma.

Seu processo de politização começou com o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, cuja obra aspira à transformação social e à igualdade através do teatro. Foi por causa dele que Wagner viajou à Alemanha pela primeira vez, em 1991, com uma bolsa do Instituto Goethe. "Eu vim para a Alemanha para conhecer Brecht", conta.

•        Teatro pós-migrante

Em 1992, Wagner decidiu que queria ficar na Alemanha. Nos primeiros anos, ele dava aulas de dança, canto e teatro, enquanto estudava teatro na Universidade Livre de Berlim. Em 2003, organizou o primeiro festival de dança contemporânea brasileira em Berlim, o Brasil Move Berlim.

Começou a trabalhar como freelancer no Ballhaus Naunynstrasse em 2009, que na época era dirigido por Shermin Langhoff. Um ano antes, Shermin tinha introduzido um novo conceito artístico na casa, pelo qual ela hoje é conhecida na cena cultural alemã: o teatro pós-migrante.

"O teatro pós-migrante é o teatro onde a gente coloca em cena histórias que não foram contadas anteriormente, sob uma perspectiva não branca", explica Wagner.

"O termo chama atenção para o que já está aqui há décadas – que é o caso das histórias de descendentes de imigrantes turcos, curdos, armênios, etc. –, para que haja a possibilidade de sair do papel de antagonista e assumir o papel de protagonista, dizendo: 'nós estamos no palco contando as nossas histórias.' Isso é o que transforma."

•        Um projeto premiado em tempos de insegurança

Desde que Carvalho assumiu a direção do teatro em 2013, o programa da casa tem focado em histórias principalmente negras e queers. Perspectivas que ainda são raras na Alemanha: Carvalho e a afro-alemã Julia Wissert, que desde 2020 dirige o Teatro Dortmund, são até hoje os únicos diretores de teatro negros no país em um mercado onde homens brancos ainda são a maioria, segundo o jornal alemão Die Zeit.

É por isso que Wagner entende o Ballhaus Naunynstrasse também como um espaço de resistência. O slogan na sua camisa, título de um festival de teatro que acontece uma vez por ano na casa, confirma isso: Black Berlin Black – Resistência.

O esforço de Wagner para manter um espaço dedicado às experiencias marginalizadas vem sendo reconhecido. O Ballhaus Naunynstrasse, escolhido como espaço que "honra a democracia”, ganhou no início do ano um prêmio nacional de teatro, o Theaterpreis des Bundes, dotado com 200 mil euros. Em abril, Wagner entrou na lista dos 100 personagens mais influentes na cena cultural de Berlim do jornal alemão Tagesspiegel.

Para Wagner, os prêmios são muito significativos, pois vêm em tempos que pessoas marginalizadas estão cada vez mais ameaçadas na Alemanha, devido ao contexto político. Pesquisas atuais mostram que o apoio ao partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) está crescendo, chegando a 19% das intenções de voto nas pesquisas mais recentes.

•        "Nosso teatro é diverso"

Os prêmios também mostram a importância de uma sociedade diversa, defende Wagner. "É necessário que tenha um espaço como esse para ressaltar histórias de pessoas que foram excluídas do papel de protagonistas de suas próprias histórias e de outras histórias durante séculos."

O diretor sonha com um teatro em que qualquer pessoa possa assumir qualquer papel, independente da aparência. "O meu desejo, o desejo da casa, é de se tornar supérflua, no sentido de que não será mais necessário dizer que estamos fazendo teatro pós-migrante. Estamos fazendo teatro – qualquer pessoa pode fazer teatro", diz.

Na noite em que falou à DW, dia de Iemanjá, Wagner trouxe para o público berlinense a obra Caminho das águas, da coreógrafa baiana Fernanda Costa. O público observava de cima as dançarinas, que se moviam ao som das ondas sob luzes azuis e um palco decorado com panos brancos.

No final da peça, Carvalho, que segue o candomblé desde a infância, desceu ao palco para as palavras finais, endereçadas em inglês à plateia, junto com uma saudação em iorubá à orixá: "Hoje eu gostaria de dizer: Odoyá Iemanjá."

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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