Torturas e listas sujas: como a Mannesmann
aliou-se à ditadura para reprimir trabalhadores
“As fábricas foram
ocupadas pela polícia da ditadura e aqui na Mannesmann houve tiros, emboscada e
bombas, na madrugada de 1º de outubro [de 1968] e depois continuamos
trabalhando com fuzil nas costas.”
Foi dessa maneira, com
título escrito a caneta e o texto datilografado, que o Badoque,
jornal clandestino de cópias mimeografadas feito por operários da fábrica da
siderúrgica Mannesmann, da Cidade Industrial, em Belo Horizonte, narrou a
repressão à greve dos metalúrgicos daquele ano, a primeira desde o golpe
militar de 1964.
Bodoque, conhecido
também como estilingue, é um instrumento de caça que serve para caçar pássaros.
No caso, o sonho de seus criadores era derrubar o ministro Jarbas Passarinho,
titular da pasta do Trabalho no governo de Costa e Silva e um dos signatários
do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.
É de Passarinho a
frase “às favas todos os escrúpulos de consciência” durante a reunião do
Conselho de Segurança Nacional na qual foi decidida a implementação do ato
institucional que agravou a repressão da ditadura.
Os trabalhadores já
haviam conseguido uma vitória parcial em abril daquele mesmo ano. Em Minas
Gerais, a greve por um aumento salarial de 25% começou na Belgo-Mineira e se alastrou com a adesão dos operários da Mannesmann e
outras grandes empresas, devido ao arrocho desde 1964. Como movimentos
grevistas se alastraram por todo o país, para acalmar a opinião pública, Costa
e Silva cedeu e determinou aumento de 10% para todos os trabalhadores. Em
outubro, a greve de ocupação se deu por ocasião do dissídio dos metalúrgicos.
Apenas na Mannesmann,
mais de 50 grevistas foram presos. Nas celas, torturas e outros abusos. Se
fazer greve era risco de prisão e de morte, distribuir panfletos e jornais de
trabalhadores também era.
Em 1972, Nilmário foi
preso em São Paulo pela equipe de Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. Foi
torturado, perdeu a audição no ouvido esquerdo e cumpriu a condenação pela
panfletagem, de três anos e dois meses.
Apesar de não ter
nenhum panfleto em mãos quando foi detido, Nilmário e mais dois companheiros,
José Benedito Nobre Rabelo e Leovegildo Pereira Leal, foram presos em flagrante
e acusados em um Inquérito Policial Militar (IPM) de violar a Lei de Segurança
Nacional. Um dos crimes pelos quais foram acusados foi o de terem incitado “a
luta pela violência entre as classes sociais”.
O IPM, disponível na
íntegra, no projeto Brasil Nunca Mais Digit@al, do Ministério Público Federal (MPF), narra que os jovens foram
denunciados por um vigia da Mannesmann após adentrarem uma estradinha que
ligava dois portões da sede da empresa em Belo Horizonte. Das cinco testemunhas
citadas no inquérito, quatro são da vigilância da companhia.
“Foi tudo muito
rápido. Entre o momento que fomos vistos pelo segurança e a prisão, por uma
viatura do Dops, passaram-se 30 ou 40 minutos. Eles tinham uma conexão direta
com o Dops, certeza”, afirma o ex-ministro. Na viatura, segundo ele, os
policiais tinham alguns panfletos, sujos de terra e amassados.
A segurança da
Mannesmann tinha contato direto com os agentes de repressão. É o que demonstram
diversas correspondências reunidas na pesquisa coordenada pela professora
doutora em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Tayara
Lemos, coordenadora do programa de extensão em direitos humanos da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). A Agência Pública teve acesso a um
resumo do relatório da pesquisa, encomendada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia
Forense da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e realizada com recursos obtidos pelo MPF em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a
Companhia Energética de São Paulo.
Antes, o MPF já havia
financiado outras dez pesquisas com recursos do TAC da Volkswagen. Na mesma
iniciativa, estão sendo investigadas também a Belgo-Mineira e a Embraer. O
resultado será anexado ao inquérito civil a respeito das violações de direitos
humanos envolvendo essas empresas, conduzido pelo MPF em Minas Gerais.
·
Passado marcado por nazismo e apoio ao
golpe
A Mannesmann foi
fundada na Alemanha, no século 19, após os irmãos Reinhard e Max Mannesmann
terem desenvolvido um método para fabricar tubos de aço sem costura. No país, a
empresa teve íntima ligação com o nazismo e um de seus diretores, Wilhelm
Zengen, era membro do Partido Nazista e foi preso por suas ligações com o
movimento.
Apesar de ter chegado
ao Brasil oficialmente em 1952, anúncios da Mannesmann são encontrados no
jornal da filial gaúcha do Partido Nazista do Brasil, o Für’s Dritte
Reich!, que, fundado em 1932, circulou livremente no Rio Grande do Sul até
o engajamento brasileiro na Segunda Guerra Mundial, dez anos depois.
Na década de 1960,
diretores da Mannesmann no Brasil filiaram-se ao Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (Ipes). Junto com o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(Ibad), o Ipes foi fundamental na divulgação de propaganda anticomunista e
antissocialista no Brasil difundindo desinformação, tendo sido fundamental na
articulação civil do golpe militar.
Em janeiro de 1964, os
diretores da empresa Edwin May e Waldir Soeiro Emrich estavam presentes na
famosa reunião entre a elite da indústria mineira e o general golpista Carlos
Luís Guedes, no edifício Acaiaca, no centro de Belo Horizonte. Guedes era adjunto
do general Olímpio Mourão Filho, da 4ª Região Militar, que saiu com as tropas
de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio de Janeiro em 31 de março daquele ano.
Na reunião, os
empresários, além de apoio tácito ao golpe, que já vinham demonstrando por meio
de expressivas doações ao Ipes, discutiram como seria a repressão às tentativas
de resistência ao golpe. Guedes conta em sua biografia que incentivou os empresários
a bancar ações contra o presidente João Goulart – e que tirassem dos próprios
bolsos, se preciso. A retribuição já veio em abril, com o fechamento dos
sindicatos.
O então presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem, um dos fechados à
época, Ênio Seabra, atualmente com 93 anos, era funcionário da Mannesmann e
simpatizante do grupo católico de oposição à ditadura Ação Popular. Ele foi
preso seis vezes entre 1968 e 1970 e torturado. Cassado, perdeu os direitos
políticos por dez anos. Em 1967, com o sindicato aberto, mas sob intervenção,
ele venceu, mas não levou as eleições da categoria, pois foi impedido de
assumir pela Delegacia Regional do Trabalho. Seabra ainda assim foi escolhido
pelos trabalhadores para liderar a greve de outubro de 1968 e acabou demitido
sob alegação de “justa causa”. Ele não conseguiu trabalhar na metalurgia até
ser anistiado, em 1979, quando foi reintegrado à Mannesmann.
“Muitos trabalhadores
foram para as listas sujas do Centro das Indústrias da Cidade Industrial [área
fabril na região metropolitana de Belo Horizonte] e aí o cara tinha que mudar
de profissão, abrir uma pequena serralheria ou vender lanche em porta de fábrica”,
conta Nilmário, que cobriu as greves do final dos anos 1970 e 1980 como
jornalista.
·
Parceria entre empresa e agentes da
repressão incluía privilégios junto ao estado
Também faz parte da
pesquisa sobre a Mannesmann outra prova da presença intensa de militares dentro
das fábricas: o acervo fotográfico de Mana Coelho, que também cobriu as greves
operárias dos anos 1970. As fotos hoje pertencem ao Museu Histórico Abílio Barreto,
em Belo Horizonte.
Na reprodução de um
ofício de 26 de julho de 1968, enviado ao secretário de Segurança Pública de
Minas Gerais, Joaquim Ferreira Gonçalves, é possível ler o relato da Mannesmann
sobre uma prisão dentro da empresa feita por funcionários do serviço de vigilância.
Eles alegaram ter “apreendido” Braz Teixeira da Cruz panfletando boletins
grevistas nos arredores da empresa. “A prisão [de Braz] foi articulada entre a
empresa e a repressão e ocorreu dentro da fábrica”, afirmou a professora Tayara
Lemos.
No documento, o mesmo
diretor da empresa, cujo nome foi omitido no relatório para não prejudicar o
andamento das investigações, segundo apurou a Pública, solicitou que a
Secretaria de Segurança reforçasse a segurança na Cidade Industrial. Em resposta,
Gonçalves atende ao pedido e determina que o Dops redobre a vigilância
“configurando o livre trânsito com o aparato repressor que o diretor possuía”,
afirma o relatório.
Outros pedidos de
policiamento em anos diversos foram encontrados nos documentos consultados,
especialmente em períodos de greves, endereçados ao Dops, aos ministros da
República e ao Serviço Nacional de Informações (SNI).
“Contando com a colaboração da Delegacia Regional do Trabalho, as greves eram
consideradas ilegais tão logo eram deflagradas independentemente se se davam de
acordo com a lei ou não, dando a aparência de legalidade à atuação da empresa e
do aparato repressor”, afirmam os pesquisadores no relatório.
Em maio de 1979,
preocupado com os movimentos de trabalhadores que eclodiam pelo país, o então
ministro do Trabalho Murillo Macedo escreveu um telegrama ao governador de
mineiro Francelino Pereira e ao coronel Amando Amaral, então secretário de
Segurança, solicitando que o estado tomasse providências solicitadas pela
Mannesmann, em especial seguranças para dois dos diretores da empresa. O
documento encaminha uma lista dos nomes das lideranças da greve. Para os
pesquisadores, o telegrama mostra “a cumplicidade do aparato estatal, na esfera
federal e estadual, com a empresa, empenhados em reprimir trabalhadores”.
·
História de greves teve mortes e vigilância
dentro de empresas
As greves de 1979
foram as maiores da história de Minas Gerais e dois trabalhadores foram mortos
em atos de repressão. Um trabalhador da Fiat, Guido
Leão, foi atropelado e morreu a caminho do hospital após ter corrido em direção
à rodovia Fernão Dias quando a cavalaria atacou o piquete dos grevistas na
porta da fábrica.
Já o tratorista
Orocílio Martins Gonçalves foi assassinado com um tiro no peito pela Polícia
Militar, enquanto protestava na gigantesca greve dos operários da construção
civil, que chegou a reunir mais de 10 mil trabalhadores nas ruas. Gonçalves
trabalhava para uma empresa que prestava serviços para a Mannesmann. O dia 31
de Julho, em que ele morreu, é o Dia do Trabalhador da Construção Civil em
Minas Gerais.
As correspondências
serviam também para enviar dados de recém-contratados pela Mannesmann ao Dops a
fim de levantar informações e eventuais fichas criminais. Em alguns desses
pedidos, relatam os pesquisadores, “a empresa enviava juntamente com o pedido uma
ficha do funcionário com a inscrição DRI – Serviço de Segurança – DIV de
Vigilância, demonstrando haver uma divisão de Vigilância e Informação na
Mannesmann”.
Os DRI/DIV surgem em
várias empresas e, em sua organização, geralmente contavam com a presença de
militares ou ex-militares contratados em funções de vigilância, trabalhadores
arregimentados como vigilantes e esquemas mais sofisticados, como policiais e agentes
da repressão disfarçados de operários.
·
Anos depois, legados e poucas respostas
“O empresário fez tudo
isso na ditadura. Financiou a repressão, tinha polícia interna, fazia lista
suja. E o que aconteceu nas vésperas da eleição de 2022? Mais de 400 empresas
foram denunciadas por assédio eleitoral, por exigirem o voto dos empregados em
Bolsonaro. Depois tem o 8 de janeiro, e quem financiou os atos? Os mesmos
empresários. Não é algo do passado. É importantíssimo discutir isso 60
anos depois”, afirma Nilmário Miranda, atual assessor especial de defesa da
democracia, memória e verdade do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
A Pública tentou
ouvir o procurador da República Ângelo Giardini de Oliveira, responsável pelo
inquérito civil da Mannesmann, mas ele disse que não havia recebido o relatório
final da pesquisa e, por isso, não poderia comentar.
A Mannesmann se
associou à francesa Vallourec em 1997 e, em 2005, todas as ações da empresa
foram incorporadas pelo grupo francês, que alegou em nota
à Pública que “as empresas do Grupo Vallourec possuem personalidade
jurídica e gestão absolutamente distintas das empresas do Grupo Mannesmann
(atualmente denominado Salzgitter Mannesmann)”.
A Vallourec afirma na
nota que “foi cientificada sobre o teor do inquérito civil instaurado pelo
Ministério Público Federal e, nada obstante a ausência de gestão do
empreendimento naquele momento histórico, tem contribuído, dentro de suas
possibilidades, com as informações solicitadas pelas autoridades”.
A empresa afirma que
“registra seu compromisso com a integridade e transparência e com o respeito às
pessoas, salientando que possui política e diretriz interna – materializadas no
Código de Ética, Manual de Compliance e Canal de Integridade”.
Ø
Funai defende anistia para todos os povos
indígenas do Brasil por danos causados pela ditadura militar
A presidenta da
Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, destacou nesta
terça-feira (2), a importância da reparação coletiva do Estado brasileiro aos
danos causados pela ditadura militar aos povos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso
do Sul, e Krenak, de Minas Gerais. E também a importância de mais povos
indígenas serem visibilizados, não apenas em relatórios, mas de maneira que a
política indigenista seja de fato implementada porque todos merecem justiça
social, ambiental e territorial.
A declaração foi feita
durante a abertura da primeira sessão de julgamento dos inéditos pedidos
coletivos de anistia dos povos Guarani Kaiowá e Krenak, pela Comissão de
Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). O colegiado
deferiu os requerimentos e foi feito um pedido formal de desculpas aos dois
povos por terem sido vítimas de perseguição e tortura no período do regime
militar.
“É importante para a
história de um país e para a história de um povo, quando se é reconhecido como
parte da sociedade para que não sejamos excluídos. A memória tem uma
importância muito grande para os povos indígenas porque, com ela, sabemos de
onde viemos e para onde queremos ir. Ela não é simplesmente apagada, mas serve
para corrigir erros e fazer acertos, principalmente, na administração de um
país”, enfatizou Joenia Wapichana.
Para Joenia, essa
justiça pode começar a partir de dados a serem acessados. Nesse sentido, ela
informou que a Funai, em uma estratégia com o Ministério dos Povos Indígenas
(MPI) e o Arquivo Nacional, está trabalhando em um projeto para que essa
memória seja preservada a partir de documentos públicos.
“Essa é uma estratégia
que mostra uma nova Funai. Uma gestão que, no passado, foi totalmente
contraditória aos princípios constitucionais. Essa nova Funai, com uma gestão
indígena, traz a participação não de povos, mas com os povos indígenas,
reconhecendo que não existe uma etnia ou um povo, mas existem vários povos e
várias línguas”, evidenciou a presidenta referindo-se também à mudança de nome
do órgão indigenista passando de Fundação Nacional do Índio para Fundação
Nacional dos Povos Indígenas. “A Funai está aqui ao lado dos povos indígenas
para juntos lutarmos pela justiça de todos”, complementou.
·
Sessão
Joenia Wapichana
compôs a mesa de abertura ao lado da presidenta da Comissão de Anistia do MDHC,
Eneá de Stutz; do assessor de Participação Social e Diversidade do MPI,
Jecinaldo Sateré, representando a ministra Sonia Guajajara; do assessor
especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do MDHC, Nilmário de
Miranda; e da deputada federal Célia Xakriabá (MG).
Ao abrir a sessão,
Eneá de Stutz fez uma fala dirigida aos indígenas presentes reconhecendo que o
território brasileiro pertence aos povos indígenas do Brasil. “Eu quero fazer
esse reconhecimento em nome do Estado brasileiro. E, nesse sentido, agradecer e
pedir permissão para continuar esta sessão de apreciação dos respectivos casos
como Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania. E
agradeço, mais uma vez imensamente, a história de luta, resistência e todos os
ensinamentos que, há mais de cinco séculos, vocês estão nos dando”, destacou.
No decorrer da sessão, Eneá formalizou o pedido de desculpas aos povos Guarani
Kaiowá e Krenak.
·
Anistia
Os pedidos de anistia
coletiva estão previstos no novo regimento interno da Comissão de Anistia do
MDHC, aprovado em 2023. O documento traz a possibilidade dos julgamentos
coletivos e a exigência do pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro em
casos de deferimento.
No requerimento
coletivo, não é possível ter reparação econômica. No entanto, os grupos
anistiados podem contar, além de um pedido de desculpas formal do Estado
brasileiro, com a retificação de documentos e acesso a tratamento de saúde pelo
Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, ou mesmo recomendação para
demarcação de territórios, como no caso de indígenas e quilombolas, entre
outras medidas.
Fonte: Por Marcelo
Oliveira, em Agência Pública/Ascom Funai
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