quarta-feira, 3 de abril de 2024

Torturas e listas sujas: como a Mannesmann aliou-se à ditadura para reprimir trabalhadores

“As fábricas foram ocupadas pela polícia da ditadura e aqui na Mannesmann houve tiros, emboscada e bombas, na madrugada de 1º de outubro [de 1968] e depois continuamos trabalhando com fuzil nas costas.”

Foi dessa maneira, com título escrito a caneta e o texto datilografado, que o Badoque, jornal clandestino de cópias mimeografadas feito por operários da fábrica da siderúrgica Mannesmann, da Cidade Industrial, em Belo Horizonte, narrou a repressão à greve dos metalúrgicos daquele ano, a primeira desde o golpe militar de 1964.

Bodoque, conhecido também como estilingue, é um instrumento de caça que serve para caçar pássaros. No caso, o sonho de seus criadores era derrubar o ministro Jarbas Passarinho, titular da pasta do Trabalho no governo de Costa e Silva e um dos signatários do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.

É de Passarinho a frase “às favas todos os escrúpulos de consciência” durante a reunião do Conselho de Segurança Nacional na qual foi decidida a implementação do ato institucional que agravou a repressão da ditadura.

Os trabalhadores já haviam conseguido uma vitória parcial em abril daquele mesmo ano. Em Minas Gerais, a greve por um aumento salarial de 25% começou na Belgo-Mineira e se alastrou com a adesão dos operários da Mannesmann e outras grandes empresas, devido ao arrocho desde 1964. Como movimentos grevistas se alastraram por todo o país, para acalmar a opinião pública, Costa e Silva cedeu e determinou aumento de 10% para todos os trabalhadores. Em outubro, a greve de ocupação se deu por ocasião do dissídio dos metalúrgicos.

Apenas na Mannesmann, mais de 50 grevistas foram presos. Nas celas, torturas e outros abusos. Se fazer greve era risco de prisão e de morte, distribuir panfletos e jornais de trabalhadores também era.

Em 1972, Nilmário foi preso em São Paulo pela equipe de Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. Foi torturado, perdeu a audição no ouvido esquerdo e cumpriu a condenação pela panfletagem, de três anos e dois meses.

Apesar de não ter nenhum panfleto em mãos quando foi detido, Nilmário e mais dois companheiros, José Benedito Nobre Rabelo e Leovegildo Pereira Leal, foram presos em flagrante e acusados em um Inquérito Policial Militar (IPM) de violar a Lei de Segurança Nacional. Um dos crimes pelos quais foram acusados foi o de terem incitado “a luta pela violência entre as classes sociais”.

O IPM, disponível na íntegra, no projeto Brasil Nunca Mais Digit@al, do Ministério Público Federal (MPF), narra que os jovens foram denunciados por um vigia da Mannesmann após adentrarem uma estradinha que ligava dois portões da sede da empresa em Belo Horizonte. Das cinco testemunhas citadas no inquérito, quatro são da vigilância da companhia.

“Foi tudo muito rápido. Entre o momento que fomos vistos pelo segurança e a prisão, por uma viatura do Dops, passaram-se 30 ou 40 minutos. Eles tinham uma conexão direta com o Dops, certeza”, afirma o ex-ministro. Na viatura, segundo ele, os policiais tinham alguns panfletos, sujos de terra e amassados.

A segurança da Mannesmann tinha contato direto com os agentes de repressão. É o que demonstram diversas correspondências reunidas na pesquisa coordenada pela professora doutora em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Tayara Lemos, coordenadora do programa de extensão em direitos humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A Agência Pública teve acesso a um resumo do relatório da pesquisa, encomendada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e realizada com recursos obtidos pelo MPF em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Companhia Energética de São Paulo.

Antes, o MPF já havia financiado outras dez pesquisas com recursos do TAC da Volkswagen. Na mesma iniciativa, estão sendo investigadas também a Belgo-Mineira e a Embraer. O resultado será anexado ao inquérito civil a respeito das violações de direitos humanos envolvendo essas empresas, conduzido pelo MPF em Minas Gerais.

·        Passado marcado por nazismo e apoio ao golpe

A Mannesmann foi fundada na Alemanha, no século 19, após os irmãos Reinhard e Max Mannesmann terem desenvolvido um método para fabricar tubos de aço sem costura. No país, a empresa teve íntima ligação com o nazismo e um de seus diretores, Wilhelm Zengen, era membro do Partido Nazista e foi preso por suas ligações com o movimento.

Apesar de ter chegado ao Brasil oficialmente em 1952, anúncios da Mannesmann são encontrados no jornal da filial gaúcha do Partido Nazista do Brasil, o Für’s Dritte Reich!, que, fundado em 1932, circulou livremente no Rio Grande do Sul até o engajamento brasileiro na Segunda Guerra Mundial, dez anos depois.

Na década de 1960, diretores da Mannesmann no Brasil filiaram-se ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes). Junto com o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), o Ipes foi fundamental na divulgação de propaganda anticomunista e antissocialista no Brasil difundindo desinformação, tendo sido fundamental na articulação civil do golpe militar.

Em janeiro de 1964, os diretores da empresa Edwin May e Waldir Soeiro Emrich estavam presentes na famosa reunião entre a elite da indústria mineira e o general golpista Carlos Luís Guedes, no edifício Acaiaca, no centro de Belo Horizonte. Guedes era adjunto do general Olímpio Mourão Filho, da 4ª Região Militar, que saiu com as tropas de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio de Janeiro em 31 de março daquele ano.

Na reunião, os empresários, além de apoio tácito ao golpe, que já vinham demonstrando por meio de expressivas doações ao Ipes, discutiram como seria a repressão às tentativas de resistência ao golpe. Guedes conta em sua biografia que incentivou os empresários a bancar ações contra o presidente João Goulart – e que tirassem dos próprios bolsos, se preciso. A retribuição já veio em abril, com o fechamento dos sindicatos.

O então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem, um dos fechados à época, Ênio Seabra, atualmente com 93 anos, era funcionário da Mannesmann e simpatizante do grupo católico de oposição à ditadura Ação Popular. Ele foi preso seis vezes entre 1968 e 1970 e torturado. Cassado, perdeu os direitos políticos por dez anos. Em 1967, com o sindicato aberto, mas sob intervenção, ele venceu, mas não levou as eleições da categoria, pois foi impedido de assumir pela Delegacia Regional do Trabalho. Seabra ainda assim foi escolhido pelos trabalhadores para liderar a greve de outubro de 1968 e acabou demitido sob alegação de “justa causa”. Ele não conseguiu trabalhar na metalurgia até ser anistiado, em 1979, quando foi reintegrado à Mannesmann.

“Muitos trabalhadores foram para as listas sujas do Centro das Indústrias da Cidade Industrial [área fabril na região metropolitana de Belo Horizonte] e aí o cara tinha que mudar de profissão, abrir uma pequena serralheria ou vender lanche em porta de fábrica”, conta Nilmário, que cobriu as greves do final dos anos 1970 e 1980 como jornalista.

·        Parceria entre empresa e agentes da repressão incluía privilégios junto ao estado

Também faz parte da pesquisa sobre a Mannesmann outra prova da presença intensa de militares dentro das fábricas: o acervo fotográfico de Mana Coelho, que também cobriu as greves operárias dos anos 1970. As fotos hoje pertencem ao Museu Histórico Abílio Barreto, em Belo Horizonte.

Na reprodução de um ofício de 26 de julho de 1968, enviado ao secretário de Segurança Pública de Minas Gerais, Joaquim Ferreira Gonçalves, é possível ler o relato da Mannesmann sobre uma prisão dentro da empresa feita por funcionários do serviço de vigilância. Eles alegaram ter “apreendido” Braz Teixeira da Cruz panfletando boletins grevistas nos arredores da empresa. “A prisão [de Braz] foi articulada entre a empresa e a repressão e ocorreu dentro da fábrica”, afirmou a professora Tayara Lemos.

No documento, o mesmo diretor da empresa, cujo nome foi omitido no relatório para não prejudicar o andamento das investigações, segundo apurou a Pública, solicitou que a Secretaria de Segurança reforçasse a segurança na Cidade Industrial. Em resposta, Gonçalves atende ao pedido e determina que o Dops redobre a vigilância “configurando o livre trânsito com o aparato repressor que o diretor possuía”, afirma o relatório.

Outros pedidos de policiamento em anos diversos foram encontrados nos documentos consultados, especialmente em períodos de greves, endereçados ao Dops, aos ministros da República e ao Serviço Nacional de Informações (SNI). “Contando com a colaboração da Delegacia Regional do Trabalho, as greves eram consideradas ilegais tão logo eram deflagradas independentemente se se davam de acordo com a lei ou não, dando a aparência de legalidade à atuação da empresa e do aparato repressor”, afirmam os pesquisadores no relatório.

Em maio de 1979, preocupado com os movimentos de trabalhadores que eclodiam pelo país, o então ministro do Trabalho Murillo Macedo escreveu um telegrama ao governador de mineiro Francelino Pereira e ao coronel Amando Amaral, então secretário de Segurança, solicitando que o estado tomasse providências solicitadas pela Mannesmann, em especial  seguranças para dois dos diretores da empresa. O documento encaminha uma lista dos nomes das lideranças da greve. Para os pesquisadores, o telegrama mostra “a cumplicidade do aparato estatal, na esfera federal e estadual, com a empresa, empenhados em reprimir trabalhadores”.

·        História de greves teve mortes e vigilância dentro de empresas

As greves de 1979 foram as maiores da história de Minas Gerais e dois trabalhadores foram mortos em atos de repressão. Um trabalhador da Fiat, Guido Leão, foi atropelado e morreu a caminho do hospital após ter corrido em direção à rodovia Fernão Dias quando a cavalaria atacou o piquete dos grevistas na porta da fábrica.

Já o tratorista Orocílio Martins Gonçalves foi assassinado com um tiro no peito pela Polícia Militar, enquanto protestava na gigantesca greve dos operários da construção civil, que chegou a reunir mais de 10 mil trabalhadores nas ruas. Gonçalves trabalhava para uma empresa que prestava serviços para a Mannesmann. O dia 31 de Julho, em que ele morreu, é o Dia do Trabalhador da Construção Civil em Minas Gerais.

As correspondências serviam também para enviar dados de recém-contratados pela Mannesmann ao Dops a fim de levantar informações e eventuais fichas criminais. Em alguns desses pedidos, relatam os pesquisadores, “a empresa enviava juntamente com o pedido uma ficha do funcionário com a inscrição DRI – Serviço de Segurança – DIV de Vigilância, demonstrando haver uma divisão de Vigilância e Informação na Mannesmann”.

Os DRI/DIV surgem em várias empresas e, em sua organização, geralmente contavam com a presença de militares ou ex-militares contratados em funções de vigilância, trabalhadores arregimentados como vigilantes e esquemas mais sofisticados, como policiais e agentes da repressão disfarçados de operários.

·        Anos depois, legados e poucas respostas

“O empresário fez tudo isso na ditadura. Financiou a repressão, tinha polícia interna, fazia lista suja. E o que aconteceu nas vésperas da eleição de 2022? Mais de 400 empresas foram denunciadas por assédio eleitoral, por exigirem o voto dos empregados em Bolsonaro. Depois tem o 8 de janeiro, e quem financiou os atos? Os mesmos empresários. Não é algo do passado. É importantíssimo discutir isso 60 anos depois”, afirma Nilmário Miranda, atual assessor especial de defesa da democracia, memória e verdade do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

A Pública tentou ouvir o procurador da República Ângelo Giardini de Oliveira, responsável pelo inquérito civil da Mannesmann, mas ele disse que não havia recebido o relatório final da pesquisa e, por isso, não poderia comentar.

A Mannesmann se associou à francesa Vallourec em 1997 e, em 2005, todas as ações da empresa foram incorporadas pelo grupo francês, que alegou em nota à Pública que “as empresas do Grupo Vallourec possuem personalidade jurídica e gestão absolutamente distintas das empresas do Grupo Mannesmann (atualmente denominado Salzgitter Mannesmann)”.

A Vallourec afirma na nota que “foi cientificada sobre o teor do inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal e, nada obstante a ausência de gestão do empreendimento naquele momento histórico, tem contribuído, dentro de suas possibilidades, com as informações solicitadas pelas autoridades”.

A empresa afirma que “registra seu compromisso com a integridade e transparência e com o respeito às pessoas, salientando que possui política e diretriz interna – materializadas no Código de Ética, Manual de Compliance e Canal de Integridade”.

 

Ø  Funai defende anistia para todos os povos indígenas do Brasil por danos causados pela ditadura militar

 

A presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, destacou nesta terça-feira (2), a importância da reparação coletiva do Estado brasileiro aos danos causados pela ditadura militar aos povos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, e Krenak, de Minas Gerais. E também a importância de mais povos indígenas serem visibilizados, não apenas em relatórios, mas de maneira que a política indigenista seja de fato implementada porque todos merecem justiça social, ambiental e territorial.

A declaração foi feita durante a abertura da primeira sessão de julgamento dos inéditos pedidos coletivos de anistia dos povos Guarani Kaiowá e Krenak, pela Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). O colegiado deferiu os requerimentos e foi feito um pedido formal de desculpas aos dois povos por terem sido vítimas de perseguição e tortura no período do regime militar.

“É importante para a história de um país e para a história de um povo, quando se é reconhecido como parte da sociedade para que não sejamos excluídos. A memória tem uma importância muito grande para os povos indígenas porque, com ela, sabemos de onde viemos e para onde queremos ir. Ela não é simplesmente apagada, mas serve para corrigir erros e fazer acertos, principalmente, na administração de um país”, enfatizou Joenia Wapichana.

Para Joenia, essa justiça pode começar a partir de dados a serem acessados. Nesse sentido, ela informou que a Funai, em uma estratégia com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o Arquivo Nacional, está trabalhando em um projeto para que essa memória seja preservada a partir de documentos públicos.

“Essa é uma estratégia que mostra uma nova Funai. Uma gestão que, no passado, foi totalmente contraditória aos princípios constitucionais. Essa nova Funai, com uma gestão indígena, traz a participação não de povos, mas com os povos indígenas, reconhecendo que não existe uma etnia ou um povo, mas existem vários povos e várias línguas”, evidenciou a presidenta referindo-se também à mudança de nome do órgão indigenista passando de Fundação Nacional do Índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas. “A Funai está aqui ao lado dos povos indígenas para juntos lutarmos pela justiça de todos”, complementou.

·        Sessão

Joenia Wapichana compôs a mesa de abertura ao lado da presidenta da Comissão de Anistia do MDHC, Eneá de Stutz; do assessor de Participação Social e Diversidade do MPI, Jecinaldo Sateré, representando a ministra Sonia Guajajara; do assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do MDHC, Nilmário de Miranda; e da deputada federal Célia Xakriabá (MG).

Ao abrir a sessão, Eneá de Stutz fez uma fala dirigida aos indígenas presentes reconhecendo que o território brasileiro pertence aos povos indígenas do Brasil. “Eu quero fazer esse reconhecimento em nome do Estado brasileiro. E, nesse sentido, agradecer e pedir permissão para continuar esta sessão de apreciação dos respectivos casos como Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania. E agradeço, mais uma vez imensamente, a história de luta, resistência e todos os ensinamentos que, há mais de cinco séculos, vocês estão nos dando”, destacou. No decorrer da sessão, Eneá formalizou o pedido de desculpas aos povos Guarani Kaiowá e Krenak.

·        Anistia

Os pedidos de anistia coletiva estão previstos no novo regimento interno da Comissão de Anistia do MDHC, aprovado em 2023. O documento traz a possibilidade dos julgamentos coletivos e a exigência do pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro em casos de deferimento.

No requerimento coletivo, não é possível ter reparação econômica. No entanto, os grupos anistiados podem contar, além de um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro, com a retificação de documentos e acesso a tratamento de saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, ou mesmo recomendação para demarcação de territórios, como no caso de indígenas e quilombolas, entre outras medidas.

 

Fonte: Por Marcelo Oliveira, em Agência Pública/Ascom Funai

 

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