Terra, direito fundamental dos povos
indígenas: não há marco temporal para o que é originário e inalienável
O Brasil se encontra,
mais uma vez, diante de um desafio e de uma oportunidade histórica para avançar
decisivamente na garantia da vida, dos territórios e dos direitos dos povos
indígenas, primeiros habitantes deste espaço que hoje temos como país.
A capacidade de
persistência dos mais de 300 povos indígenas que hoje existem no Brasil, após
um processo secular de imposição e de extermínio, e sua perspectiva ética de um
horizonte aberto a caminho de uma sociedade plural e do Bem Viver, representam
pilares fundamentais sem os quais não conseguiremos construir qualquer
perspectiva de futuro como sociedade.
Em 1988, o Brasil
constituiu nosso marco fundamental de convivência, com a promulgação da atual
Constituição Federal – e os povos indígenas contribuíram de forma decisiva para
a configuração deste marco. Aqueles que na época eram considerados pelo Estado
como incapazes e necessitados de tutela mostraram mais uma vez sua tenacidade
política e sua força de mobilização em todo o país. Arrancaram do Estado o
reconhecimento mínimo de seu direito a ser e a viver, de suas formas próprias
de organização social, de suas línguas, costumes e tradições e de seu direito
originário às terras que tradicionalmente ocupam.
Entretanto, ao longo
destes 35 anos, o Estado avançou muito pouco na efetivação destes direitos.
Hoje, comunidades inteiras permanecem despojadas de seus territórios, acampadas
na beira de estradas, sob a lona preta e à mercê de todo tipo de violências. A
maior parte das terras indígenas ainda não está demarcada e muitas daquelas que
já foram homologadas continuam sofrendo com a invasão e a exploração ilegal e
predatória de seus bens.
Ao longo destas
décadas, grupos de grande poder econômico e político nunca deixaram de agir
para derrubar, reduzir, limitar e impedir a efetiva garantia dos direitos
conquistados pelos povos indígenas, particularmente seus direitos territoriais.
E a última tentativa destes grupos para derrubar os direitos dos povos
indígenas é o que veio a ser chamado de “marco temporal”.
Segundo esta tese, que
se mostra imoral e falaciosa, só teriam direito a seus territórios aqueles
povos indígenas que conseguirem demonstrar que se encontravam fisicamente
naquele lugar na data de 5 de outubro de 1988 ou que estavam litigando, física
ou juridicamente, a posse dessa terra.
Aqueles que defendem
essa tese ignoram todo o processo de extermínio e de esbulho dos territórios
que se deu antes dessa data. Não só ignoram, mas pretendem, com o marco
temporal, legitimar uma declaração de impunidade com relação a todas as
atrocidades e violências cometidas historicamente contra os povos indígenas até
outubro de 1988.
Eles buscam apagar da
memória o fato de que a mobilização dos povos indígenas em todo o país durante
o processo constituinte, em defesa de seus direitos, é sinal inequívoco de que
os povos estavam, sim, pleiteando naquele momento a devolução de seus territórios
roubados e o reconhecimento de seus direitos originários.
Em setembro de 2023,
no âmbito do Recurso Extraordinário 1.017.365, dotado de repercussão geral
(Tema 1031), o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou por ampla maioria que
o marco temporal não existe e é inconstitucional. Neste julgamento, o STF mostrou
a determinação devida na fidelidade ao desejo dos constituintes e, também, na
compreensão do desafio que estava em jogo. No entanto, o marco temporal voltou
recentemente à cena política através de uma lei ordinária aprovada pelo
Congresso Nacional.
Com a promulgação da
Lei 14.701, em dezembro de 2023, o Congresso Nacional retrocedeu todos os
passos que até o momento tínhamos conseguido dar neste tema como sociedade. De
forma impositiva, esta Lei pretende fixar o chamado marco temporal como
parâmetro para a demarcação de terras indígenas no Brasil, o que significa, na
prática, inviabilizar a garantia desses territórios, anistiar as atrocidades do
passado e impedir a possibilidade de futuro como país.
Mais do que isso
ainda: a lei abre os territórios indígenas a interesses econômicos de terceiros
e retoma uma perspectiva colonial que atribui ao Estado o poder de julgar e
definir os caminhos de vida que só aos povos pertencem. Na contramão do
consenso estabelecido na Constituição Federal de 1988 e em expressa contradição
com a decisão do STF, o Congresso Nacional afrontou a vida dos povos indígenas
e faz retroceder o Brasil às épocas mais escuras e violentas de sua história.
Que interesses
particulares se escondem por trás desta decisão? A serviço de quem se legisla
quando as leis são injustas e imorais? A quem interessa apagar a memória da
violência e do esbulho, do extermínio e da opressão? Não existe marco temporal
algum para direitos que são originários e imprescritíveis, fundamentais e
inalienáveis.
A luta dos povos
indígenas por seus territórios supera, eticamente, a ideia mesquinha da terra
como propriedade e como recurso a ser explorado, parâmetro do modelo
capitalista de produção e de consumo. Por isso é uma luta necessária e
incontestável, imprescindível para todos nós. Uma luta que nasce e se nutre de
uma profunda e densa dimensão espiritual, expressada de formas diversas por
cada povo.
A segurança dos
territórios indígenas está intrinsecamente relacionada com a preservação da
vida, da biodiversidade e das condições de futuro para todos. É o singular e
profundo vínculo e sentido de pertença dos povos a seu território, como
condição primordial de ser, que se configura como paradigma ético fundamental,
alternativo e necessário.
Hoje temos, como
sociedade, um único caminho possível para avançar em direção a um horizonte
ético e político de justiça e de garantia para a vida de todas e todos. Esse
caminho passa, necessariamente, pela demarcação e homologação dos territórios
indígenas, conforme o previsto na Constituição Federal; sem atalhos, sem
arranjos, mas com determinação política. E isto obriga ao conjunto do Estado,
aos Três Poderes, cada um em suas responsabilidades e atribuições. Na garantia
dos territórios, livres de qualquer interferência e invasão, reside também o
reconhecimento dos projetos de vida dos povos indígenas, na sua diversidade e
pluralidade, de seus sistemas culturais próprios e de sua plena autonomia.
Para isso, é
fundamental que as instituições do Estado assumam sua responsabilidade e sua
missão institucional, garantindo os direitos originários dos povos indígenas e
declarando de forma iminente a inconstitucionalidade da Lei 14.701. É este o
único caminho para retomar a senda de uma sociedade fundamentada no respeito,
no diálogo, na justiça e no direito.
É imprescindível que
avancemos, como país, no caminho das políticas de restauração, de Memória,
Verdade e Justiça. É urgente reconhecer – e não apagar – os crimes e
atrocidades cometidas contra os povos indígenas deste país.
É essencial, enfim,
que o Brasil caminhe no reconhecimento da contribuição imensurável que os povos
indígenas, como sujeitos coletivos de direitos e detentores de sistemas
culturais próprios e de horizontes éticos insubstituíveis, representam para a
preservação da vida e para a defesa de uma democracia sempre mais radical, a
caminho do Bem Viver para todas e todos.
Funai solicita Força de Segurança
Nacional para TI Uru-Eu-Wau-Wau
A Fundação Nacional
dos Povos Indígenas voltou a solicitar o apoio da Força Nacional de Segurança
Pública para atuar na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, no Estado de Rondônia.
Mesmo homologada desde 1991, a reserva, com 1,8 milhão de hectares, enfrenta
conflitos e seguidas invasões de terras por não indígenas.
Em janeiro deste ano,
os agentes foram autorizados a participar de uma operação em conjunto com a
Política Federal e a Funai, que cumpriu dois mandados de busca e apreensão
expedidos pela 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Ji-Paraná, para
retirada de invasores. As investigações apontaram que os invasores desmataram
uma área nos municípios de Governador Jorge Teixeira e Theobroma, para cometer
crimes relacionados a contrabando de produtos veterinários.
Segundo a indigenista
Ivaneide Bandeira Cardozo, conhecida como Neidinha Surui, que atua em Rondônia
há 50 anos, logo após a atuação das forças federais na região, os invasores
voltaram a ocupar áreas da TI.
Neidinha explica que a
pressão sobre os indígenas da região ficou mais acirrada após a condenação de
João Carlos da Silva, em 16 de abril, pelo assassinato do professor e líder
indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau. “Eles estão brabos porque os indígenas estão protegendo
suas terras e não deixando eles avançarem. Principalmente na região do
Burareiro onde eles (os invasores) ficam fazendo campanha pela redução do que
já está demarcado e destinado aos indígenas”, diz.
O conflito na região
ocorre desde que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
sobrepôs parte da TI homologada com o Projeto de Assentamento Dirigido (PAD),
ainda no governo militar, em 1975. A indigenista explica que a Justiça já reconheceu
o erro e determinou que os assentados sejam indenizados e retirados. “O maior
problema não são os agricultores que serão retirados e sim os grileiros que se
aproveitam da situação para invadir e desmatar principalmente pra criar gado”,
explica.
Uma decisão do Supremo
Tribunal Federal em março deste ano, sobre a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 709, determinou o cumprimento pelas autoridades federais
de segurança pública da desintrusão de sete terras indígenas, entre elas a TI Uru-Eu-Wau-Wau.
A TI Uru-Eu-Wau-Wau
fica localizada em uma região que abrange 12 municípios do estado de Rondônia,
onde vivem os povos os Jupaú (ou Uru-eu-wau-wau), os Oro Win, os Amondawa e os
Cabixi, além de outros quatro povos isolados. Por manter povos ainda sem contato,
a Funai atua na TI por meio da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE). De
acordo com Neidinha, o órgão enfrenta dificuldades de atuar na região. “Eles
não têm estrutura para apoiar os indígenas e enfrentar os invasores”, afirma.
O Ministério da
Justiça e Segurança Pública autorizou o emprego da Força Nacional de Segurança
Pública na TI nesta segunda-feira, por meio de uma portaria publicada no Diário
Oficial da União. E durante esta tarde, a Funai se reunirá com as lideranças daTI
Uru-Eu-Wau-Wau para tratar das reivindicações para a região.
Mais de 75% do garimpo na Amazônia está a
menos de 500 metros de corpos d’água
Garimpo e água
convivem lado a lado na Amazônia. Dados divulgados na última 6ª feira (19/4)
pelo MapBiomas indicam que 77% das áreas de garimpo na região amazônica estão a
menos de 500 metros de algum corpo d’água. Dos 241 mil hectares garimpados na
Amazônia brasileira (que, sozinhos, representam 92% de todo o garimpo no país),
186 mil hectares ficam a menos de meio quilômetro de algum curso d’água.
De acordo com o
MapBiomas, 10% da área garimpada na Amazônia (25,1 mil hectares) estão dentro
de Terras Indígenas, onde a atividade é ilegal. Os territórios mais afetados
são as TI Kayapó, Munduruku e Yanomami. Como em outras áreas garimpadas na
Amazônia, a maior parte desses pontos de retirada ilegal de metal também está
localizada nas proximidades de corpos d’água, muitos utilizados por comunidades
indígenas para pesca e abastecimento.
Na Terra Kayapó, a
área garimpada compreende 13,79 mil ha, dos quais 9,6 mil (70%) ficam a menos
de 500 metros de corpos d’água. Já na Terra Munduruku, o garimpo ocupa 5,46 mil
ha, com 2,16 mil ha (39%) próximos de água. Por fim, a Terra Yanomami, que vive
uma grave crise humanitária causada pelo garimpo ilegal, conta com 3,27 mil ha
de terreno garimpado, dos quais 2,1 mil estão a, no máximo, meio quilômetro de
distância de cursos d’água.
O levantamento do
MapBiomas também identificou 201 pistas de pouso em Terras Indígenas
amazônicas, o que também indica a forte presença do garimpo nessas áreas. A TI
Yanomami concentra a maior parte (75), seguida por Raposa Serra do Sol (58),
Kayapó (26), Munduruku (26) e Parque do Xingu (21).
Essas pistas também
estão próximas aos pontos de garimpo nas Terras Indígenas. No caso da TI
Yanomami, um terço das pistas (28) estão a menos de 5 km de alguma área de
garimpo. A proporção é parecida na TI Kayapó, onde 34% (9) das pistas se
localizam nas proximidades do garimpo. Já na TI Munduruku, 80% das pistas (17)
se encontram na mesma condição.
“As Terras Indígenas
são as áreas mais preservadas da Amazônia. Ainda assim, no seu interior, a
concentração de garimpos próximos a cursos d’água é extremamente preocupante,
uma vez que populações indígenas e ribeirinhas usam quase que exclusivamente
dos rios e lagos para sua subsistência alimentar”, observou Cesar Diniz,
coordenador técnico do mapeamento de mineração no MapBiomas. “A contaminação
dos rios e lagos representa para ribeirinhos e indígenas a fome, a sede e
graves riscos à saúde”.
Fonte: Cimi/Agencia
Brasil/ClimaInfo
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