Roberto Amaral: Entre a tutela e o golpismo
Comemora-se decisão do
STF que, por unanimidade, pulverizou a interpretação castrense (que falava para
além do texto) do malfadado art. 142 da Constituição Cidadã do dr. Ulisses,
redigido pelo senador Fernando Henrique Cardoso, embora ditado pelo general
Leônidas Pires Gonçalves, bedel da constituinte, cumprindo com rigor o dever
que o castro se auto-atribuíra, de reduzir a termos aceitáveis pelos fardados
as aspirações políticas e sociais “mais avançadas” dos constituintes de 1988,
que chegavam a Brasília embalados pelas bandeiras progressistas da longa luta
contra o regime de 1º de abril de 1964. Já nos havíamos libertado da ditadura
tout court, mas persistia a supervisão política da caserna no novo regime, como
parte do acordo que permitira a anistia capenga, a implosão do colégio
eleitoral, a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney. Assim tinha
início o governo da Nova República, no qual se projetava o regime decaído, mas
não derrotado, tanto que pudera ditar as condições de sua retirada de cena,
“lenta e gradual”, processo continuado
que parece não ter fim, como sugerem o patrocínio castrense da ascensão
política e do regime Bolsonaro, a
intentona frustrada de 8 de janeiro de 2023 e o comando da Defesa no governo
Lula.
Havia, porém, o que
celebrar, em 1985 e em 1988, e o ganho essencial terá sido a convocação da
constituinte, após os infames Atos Institucionais e a Carta de 1967, outorgada
pela ditadura. Uma constituinte sem poder originário, é verdade; limitada,
condicionada, apenas consentida, mas, ao fim e ao cabo, autorizada a promover a
reorganização política do país, transitando do autoritarismo larvar para um
misto de aspirações que conjugavam o sonho da recuperação da liberdade perdida
com a utopia da erradicação da pobreza, jamais permitida pela classe dominante.
O outro lado da
democracia, conquistada mediante tratativas entre o poder real e a expectativa
de poder, era a formalização da tutela dos fardados sobre a ordem civil (uma
narrativa que nasce com a República), mediante a incorporação, no regramento
constitucional negociado, daquele
dispositivo que condenaria a República a sobreviver, insegura, sob o
guante da espada de Dâmocles, a permanente ameaça de intervenção militar para garantir “a lei e a
ordem”, ou seja, o statu quo, a imobilidade social. É a história do art. 142 da
Constituição, dispositivo que, a rigor, nada acrescentava ao ordenamento
jurídico, pois a vontade das forças independe do texto constitucional para
efetivar-se, como ensina a história dos últimos 135 anos, desde os golpes
fundadores de Deodoro e Floriano à intentona do ano passado.
O golpe de Estado é a
força que não pode ser contida pela ordem legal. Tratam-se de entidades em
conflito. Não cuida, pois, de sua autorização, nem os militares a pediam com a
fabricação do art. 142. O grave não era,
nem é, o próprio texto enxertado (que,
por sinal, foi conservado pelo STF), mas, a partir dele, a interpretação capiciosa da caserna e dos
juristas de japona, lendo o texto do constituinte de 1988 como concedente de um
certo “poder moderador” de que os militares se dizem naturalmente titulares.
Primeiro, o castro
abraçou a ideia de construir um país digno de si mesmo, isto é, moderno como
ele se julgava. Para funcionar, o país tinha de mudar, e essa mudança era
ditada pela visão que a caserna alimentava
de modernidade, desapartada do progresso social. Na sequência, os
fardados, regressando dos palcos da Itália, seguindo cursinhos nas escolas de
formação de oficiais mantidos pelos EUA para adestrar os oficiais das nações do
capitalismo periférico, tomou partido na Guerra Fria, e renunciou a qualquer sonho de soberania nacional. Uma
conquista dos engalanados que muito incomodava a república, assim impedida de
ser, caminhar com suas próprias pernas e segundo sua própria existência, pois
agredida pela presença de um colonial poder moderador, ao fim e ao cabo uma
servidão dentre tantas quantas avançavam sobre os direitos da cidadania.
Mais forte do que
qualquer regra escrita, a tutela é doutrina que remonta ao Império. O 142 (hoje
juridicamente esvaziado sem haver sido, antes, revogado) passou a ameaçar, mais
e mais, pela interpretação emprestada. O poder moderador arguido pela caserna
de há muito fôra reconhecido e sancionado pelo processo histórico, pela sua
efetividade, derivada da aceitação nacional de suas seguidas intervenções na
vida política e institucional.
O golpe de 1964 não se
efetivou por meio dos atos institucionais: estes é que derivaram da voz dos
tanques, a fonte do direito da ditadura.
Tratava-se, em 1988, de engalanar o poder exorbitante das fileiras com a fantasia
da legitimidade de um quarto poder, o poder armado e porque armado
auto-constituído, imperando sobre os três únicos poderes (executivo,
legislativo e judiciário) conhecidos pelo sistema republicano. De fato, o art. 142 sempre foi apenas isso: uma
tentativa de estabelecer como regra constitucional condições permissivas do
exercício fático da tutela militar sobre os demais poderes, no limite da
legalização do golpe de Estado. Legalização de resto impossível, pois a
natureza insanável do golpe de Estado é a violência legal.
O fato objetivo é
este: juridicamente, o poder moderador foi revogado (mais precisamente, foi
dado como inexistente) sem que o Supremo tivesse alterado o texto do art. 142;
para tanto limitou-se a negar interpretação vulgar e estamental. Mas,
evidentemente, não nos livrou de futuras intervenções militares, sob tais ou
quais arguições. Estas poderão amanhã ser frustradas dependendo do socorro do
processo social.
Há que aplaudir ação
do STF, a quem já devíamos a resistência à intentona de janeiro de 2023, e a
quem devemos o esforço por julgar e condenar os golpistas, muitos militares de
alto coturno, useiros e vezeiros de crimes políticos, e sempre protegidos pela
impunidade que abraça os enfileirados.
Mas é de lamentar a inanição social, a anomia que paralisa o movimento popular.
Um comentarista
desprevenido revelou, em texto recente, seu desencanto com a corrigenda
interpretativa da alta corte, ao descobrir que o simples esvaziamento do
art.142 não nos livraria, amanhã, de um golpe de Estado. De igual, não cuidou o
articulista que a simples menção constitucional não era suficiente para a
tutela. Esta era alimentada pelo papel desempenhado no país pelos fardados; da
mesma forma, a tutela militar sobre o poder civil não cessará por obra e graça
do esvaziamento do indigno 142, mas, tão-só, como consequência do eventual
progresso da vida social: a tutela e o golpismo serão evitados na medida em que
se organize e fortaleça o poder popular.
O que poderá impedir a
curatela militar e eventuais intervenções no processo político é, só e tão só,
a organização dos movimentos sociais, um desafio que se oferece à conjuntura,
quando a história do presente registra o esvaziamento dos partidos e do movimento
social.
Denise Assis: Lula entre sustos e acertos
Ao mirarmos para o
enfrentamento do Congresso ao Executivo, devemos ter em mente um nome: o do
general Luiz Eduardo Ramos. É dele o legado da bagunça nas emendas e a estrada
larga para os desmandos e chantagens. Foi ele o criador da “engenharia” do
orçamento secreto, enquanto inquilino da pasta da Secretaria Geral da
Presidência, no desgoverno anterior.
Para os que não se
lembram, ou não ligam o nome à pessoa, trata-se daquele general que precisou
sair de quatro, do Planalto, escondido por vasos de samambaias, durante a
pandemia, para tomar vacina. Não queria perder o título – àquela altura
honorífico -, de negacionista, mas tampouco arriscar a pele para a Covid-19,
que grassava em torno de si, onde “vacina” significava omissão e palavrão.
Como desgraça pouca é
bobagem, enquanto o general Ramos saiu de cena, de fininho, antes que pudesse,
tal como seus pares, ser arrolado em processos do golpe, outra figura de triste
lembrança em Brasília, voltou a circular na cena política. Eduardo Cunha, o
criador das pautas-bomba, tem dado expediente no Congresso, no gabinete da
filha que, apesar de eleita, parece delegar ao pai as atividades do mandato.
Juntando-se a desgraça
das manobras nas emendas, com a fórmula de obstáculos financeiros criados por
Cunha, temos aí um pedregulho para o governo ultrapassar. Com habilidade e
experiência, o presidente Lula já contornou a questão das emendas colocando-as
nas mãos do desafeto do presidente da Câmara, Alexandre Padilha. Lira
corcoveou, estrebuchou, mas o máximo que conseguiu foi uma visita/surpresa do
ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, e um papo amistoso
com o seu interlocutor mais viável, no momento, o ministro da Casa Civil, Rui
Costa.
Lira tem demonstrado
que não está morto, mas não desfruta mais do absolutismo de antes. Meio
desidratado, mas ainda com um ano pela frente, em que terá de se dividir entre
fazer a campanha do sucessor, e as eleições municipais – quando precisará
empurrar a parentalha/candidata – em seu reduto eleitoral, ele sabe que perdeu
parte das asas e seu voo está mais curto.
Para contornar as
ameaças de CPIs - vindas do presidente da Câmara, que já andou espalhando que
não falou a sério, e até desistiu de brincar disso -, o presidente Lula se reuniu nesta sexta-feira,
19, com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e os líderes
do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), no Senado, Jaques
Wagner (PT-BA), e na Câmara, José Guimarães (PT-CE.
O presidente procurou
dar ao encontro, ares de mais um, de rotina, mas ficou evidente que se trata de
uma tentativa de alinhar com os seus, os últimos acontecimentos desta semana na
relação com o Congresso. Ele que esteve fora, em visita oficial à Colômbia,
quis conversar também com os ministros mais próximos: da Casa Civil, Rui Costa,
e da Comunicação Social da Presidência, Paulo Pimenta.
O encontro é, na
verdade, a busca de saídas para a redução da fervura entre os poderes e traçar
estratégias que possam barrar as propostas desfavoráveis ao governo, como a da
Emenda à Constituição (PEC) do Quinquênio, aprovada na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado nesta semana, e que está pronta para
começar a tramitar no plenário da Casa. Uma “pauta-bomba” em andamento no
Congresso, de R$ 70 bilhões, que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
entrará em campo para desarmar.
A semana foi pródiga
em dificuldades desse nível. Uma delas, o retrocesso proposto por requerimento
de autoria da deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que susta a regulamentação da
lei da igualdade salarial. O requerimento chegou a entrar na pauta do plenário,
mas acabou sendo retirado, após acordo do governo com Arthur Lira (PP-AL), em
almoço com Rui Costa, na quarta-feira (17).
Fonte: Brasil 247
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