Portos no Rio Tapajós dobram em dez anos
com omissões no licenciamento ambiental
No começo deste mês,
um vídeo em que uma grande embarcação cargueira passa por cima de uma canoa de
pescadores no Rio Tapajós circulou em portais de notícias locais de Itaituba,
no Pará. O homem que está na canoa consegue se salvar ao mergulhar na água antes
do choque. A grande embarcação segue seu caminho como se nada tivesse
acontecido.
Para os moradores de
comunidades tradicionais da região, não foi um mero acidente. A cena foi o mais
recente exemplo de uma mudança drástica na dinâmica do rio nos últimos dez
anos, com explosão no número de portos e no volume de carga transportada.
Um levantamento feito
pela ONG Terra de Direitos divulgado nesta terça-feira (23) mostra
que atualmente existem 41 portos em projeto, construção ou em operação nos
municípios de Itaituba, Santarém e Rurópolis, às margens do Rio Tapajós
– o dobro do que havia em 2013, quando havia 20 portos em projeto ou em
operação. De acordo com o trabalho, há também outros quatro portos ainda sem
documentos registrados em órgãos oficiais.
O primeiro porto de
transporte de cargas da região foi instalado dez anos antes, em 2003, pela
Cargill. Do total, 18 são destinados ao escoamento de grãos, fertilizantes e
agrotóxicos, sendo cinco deles de empresas multinacionais. Outros 14 são
destinados a cargas perigosas, como combustíveis. As demais atividades são
relacionadas à construção e manutenção da estrutura logística para o
agronegócio.
Além do risco de
poluição do rio, as cargas representam outras ameaças, segundo o estudo. Grãos
transgênicos de milho e soja que caem das balsas já estariam afetando a
alimentação dos peixes e a saúde do rio, ameaçado também pelo mercúrio da
mineração ilegal.
<<<< Por
que isso importa?
- Trechos do Rio Tapajós entre os municípios de Itaituba,
Santarém e Rurópolis teve uma explosão de novos terminais de carga para o
escoamento de grãos, com impactos no desmatamento e na vida das pessoas
que dependem do rio
- Comunidades originárias e quilombolas não foram consultadas
ou tiveram sua vontade ignorada
O levantamento
identificou problemas no licenciamento dos terminais de carga. Dos 41
portos identificados, apenas 11 tinham seus estudos de impacto ambiental
disponíveis. Em nove deles, o estudo estava disponível no site da Secretaria
Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidades (Semas) e outros dois foram
obtidos via Lei de Acesso à Informação.
Dos 27 portos em
operação, apenas cinco tinham a documentação completa: estudo de impacto
ambiental, licença prévia, licença de instalação e licença de operação, e 17
estão com licença de operação sem apresentar licença prévia ou licença de
instalação. Quando o estudo foi concluído, em outubro de 2023, ao menos dez dos
portos em operação estavam com suas licenças de operação vencidas.
A falta de estudos de
impacto ambiental é um problema desde a origem, afirma Ivete Bastos, presidenta
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares
de Santarém. Ela lembra que o porto da Cargill foi inaugurado em 2003 sem a
apresentação do documento. “O estudo só foi apresentado 12 anos depois, em uma
audiência sem a participação da sociedade civil”, afirma.
De acordo com a
advogada Bruna Balbi, coordenadora do Programa Amazônia da Terra de Direitos, a
situação mostra, no mínimo, a falta de transparência no processo de
licenciamento. “É grave se os documentos não existirem, mas também se eles não
são acessíveis para a população nem mesmo com pedidos pela lei de acesso”,
diz.
Ela aponta também a
aprovação de licenciamentos corretivos como um problema no processo de
liberação dos portos. “É uma regularização do que não seguiu os procedimentos
corretos, tem casos até de portos licenciados para cargas não-perigosas e que
passaram a operar cargas perigosas”, exemplifica. Para ela, nestes casos, fica
evidente a estratégia de conseguir a liberação primeiro e depois ir adaptando o
projeto a seus reais objetivos.
·
Avanço do agronegócio
Bruna explica
que a expansão dos portos na região faz parte do desenvolvimento do Arco
Norte, um projeto de escoamento de grãos pela Amazônia,
do qual também fazem parte as obras de ampliação do asfaltamento da BR-163 e
construção da ferrovia Ferrogrão.
O objetivo é que a
rota seja uma alternativa para que a produção do norte do Mato Grosso não tenha
mais que seguir para os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR) para ser
exportada. “Existe uma pressão para que a produção de grãos fique cada vez mais
próxima dos portos, o que aumenta a especulação e o desmatamento na região do
Pará onde estão essas estruturas de transporte”, afirma.
Ela cita o artigo
“Dinâmica da Produção de Alimentos na Região de Santarém, dos pesquisadores
Herberto Gabriel Ferreira Neto, Cássio Alves Pereira e Everaldo Nascimento de
Almeida, que mostra a concentração do agronegócio nos municípios do entorno do
Tapajós, com o crescimento da produção de soja e milho entre 2001 e 2016.
No período, a produção
de milho passou de 5,2 toneladas para 59,9 toneladas. A soja foi de 75
toneladas para 121.116 toneladas. Os mesmos 15 anos marcaram também uma redução
da produção de frutas como banana, laranja e limão. Como o plantio de grãos é
altamente mecanizado, o aumento de sua produção em relação a outros produtos
também reduz a necessidade de mão-de-obra no campo, o que aumenta o êxodo rural
na região.
Outro problema é o
desmatamento em si. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais
(Inpe), Itaituba foi o 10º município com maior desmatamento na Amazônia entre
2008 e 2023. No total, foram suprimidos no município 2.533,49 km2 de
floresta ao longo do período.
Já a plataforma
MapBiomas, que destrincha as mudanças do uso do solo em todo o país desde 1985,
aponta que a partir da chegada do primeiro porto, em 2003, a área de
agropecuária em Itaituba saltou de 3% do território para 7% em 2022.
Em Rurópolis, o avanço
foi ainda maior: de 12,79% para 27,33% no mesmo período. Em Santarém, esse
movimento começou um pouco antes, já diante da expectativa da construção do
primeiro porto. A agropecuária respondia por 5% do território naquele ano e
passou de 6,9% em 2022.
No ano passado, a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB) já haviam lançado um relatório em que apontam que o impacto do avanço do
agronegócio na região também aparece no espaço urbano, com a circulação de
dezenas de milhares de caminhões por mês para o embarque e desembarque nos
portos dos três municípios. O crescimento desordenado da população e o aumento
no número de registros de ocorrências policiais mais do que dobrou em Itaituba
entre 2010 e 2022.
“No momento da
construção [dos portos], ainda existe a contratação de mão-de-obra local, para
os trabalhos braçais. Depois, o porto contrata pessoas mais qualificadas vindas
de fora, e a comunidade local não consegue emprego”, afirma Frede Vieira, da
coordenação do MAB. O aumento da exploração sexual de mulheres e crianças é
outro problema ligado à migração e à presença de homens solteiros em
deslocamentos.
·
Destruição de sítios arqueológicos e falta
de consentimento
A destruição de sítios
arqueológicos, o assoreamento de igarapés e o aumento no número de conflitos
agrários na região são as outras consequências citadas no estudo da CPT. A
líder indígena Auricélia Arapiun, da direção da Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab), afirma que há estudos que indicam que o porto
da Cargill foi construído em cima de um cemitério indígena.
Não é um problema
isolado. Em Rurópolis, três sítios arqueológicos também são ameaçados com a
possibilidade de instalação de portos. Segundo o Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico (Iphan), apenas o Sítio Santarenzinho, um dos locais onde
estão previstos terminais, abriga mais de 50 mil vestígios e artefatos
arqueológicos e três cemitérios indígenas do povo Munduruku.
A situação reforça as
falhas no licenciamento ambiental. Um dos pontos é a falta da consulta prévia,
livre e informada para as comunidades tradicionais e originárias afetadas, como
determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da
qual o Brasil é signatário desde 2002. O objetivo é permitir que elas possam
manter seu modo de vida típico se assim desejarem.
Os locais onde foram
construídos os portos atingem aldeias dos povos Munduruku, Kumaruara,
Apiaká e Tupinambá, quilombolas do território Murumuru, além de comunidades
tradicionais de ribeirinhos, que sobrevivem da pesca. “O acesso ao rio deixou
de ser livre e os peixes, além de estarem mais escassos, muitas vezes não
apresentam a mesma condição de consumo que tinham em outro momento”, diz
Auricélia. Ela também aponta as invasões de territórios por produtores de soja
e milho e a seca nos igarapés.
A Terra de Direitos
tem participado como autora, no assessoramento a outras entidades e como amicus
curiae em ações civis públicas do Ministério Público Estadual do Pará
e Federal que contestam as licenças dos portos e apontam uma série de
irregularidades nos processos. Também contesta a alteração feita no Plano
Diretor de Santarém em 2018, que permitiu a instalação de novos portos sem a
consulta a comunidades tradicionais locais.
Nos casos do Embraps,
em Santarém, e Rio Tapajós Logística, em Itaituba, a Justiça suspendeu o
licenciamento ambiental dos portos por considerar que o impacto em comunidades
indígenas e quilombolas não foi considerado.
A reportagem procurou
a Semas e as empresas citadas, mas não obteve respostas até o fechamento desta
reportagem. Caso haja manifestações, o texto será modificado para acrescentar
as informações.
O relatório completo
está disponível no site: https://portos.terradedireitos.org.br/. Nele, é possível ver todos os portos com suas informações ano
a ano, acompanhar detalhes sobre os estágios de licenciamento, a movimentação
média anual de cada um deles, além de seus impactos.
O site também reúne
dados sobre queimadas e desmatamento acumulados e a progressão dos danos
ambientais diretamente relacionados ao corredor logístico. São unidades de
conservação (UCs), projetos de assentamento, terras indígenas, territórios
quilombolas, tradicionais e áreas privadas que perderam sua cobertura vegetal
por causa da instalação dos portos.
Fonte: Por Leonardo
Fuhrmann, da Agencia Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário