segunda-feira, 1 de abril de 2024

Orbán: o ditador amigo de Bolsonaro que quer adotá-lo

Milhares de pessoas protestaram em Budapeste na terça-feira (26), em uma área próxima ao Parlamento. Pediam a renúncia do primeiro-ministro Viktor Orbán e de seu procurador-geral. A manifestação foi organizada após a divulgação de um áudio feito por um ex-funcionário e ex-aliado do governo, Péter Margyar, em um diálogo com sua esposa e ex-ministra da Justiça, Judit Varga, apontando para uma tentativa de adulteração de documentos para acobertar um caso de corrupção envolvendo Pál Vílner, ex-secretário de Estado do Ministério da Justiça.

As manifestações são incomuns na Hungria atual, país em cuja embaixada Jair Bolsonaro se hospedou entre os dias 12 e 14 fevereiro e para o qual, suspeita-se, poderia pedir asilo político caso avancem os processos que podem condená-lo à prisão. Mas o que haveria por trás desta preferência húngara do ex-presidente? E por que Orbán desponta, nos últimos meses, como alguém relevante, na caterva de líderes da “nova” ultradireita?

A história começa em 2010. Ao longo dos últimos 14 anos, Viktor Orbán construiu uma espécie de “fascismo soft”, para usar a expressão de Zack Beauchamp, repórter sênior do Vox. “A oposição não foi esmagada – mas não consegue respirar”, relata o professor assistente de Política Comparada na Universidade de Georgetown atualmente bolsista visitante na Universidade de Harvard, Gábor Scheiring (confira entrevista concedida por ele ao Outras Palavras). Um conjunto de mudanças institucionais fechou o regime, submetendo o sistema eleitoral, o Judiciário e a mídia ao controle autoritário do primeiro-ministro e de seu partido, o Fidesz. Uma atividade intensa nas redes sociais, com ampla divulgação de fake news, ampliou este controle e laços especiais da presidência com certos empresários garantiram o financiamento do esquema – em troca de favores.

Como resultado, Orbán conseguiu formatar um modelo autoritário com aparência aparentemente legal, algo que não é exatamente novo e que vem se tornando tendência em diversas partes do mundo. Um sistema que, embora sem recorrer a um Estado policial, “visa acabar com a dissidência e assumir o controle de todos os aspectos importantes da vida política e social”, segundo Beauchamp. É este governante que troca elogios com Bolsonaro e talvez o inspire. Vale conhecer ponto por ponto o sistema político que ele construiu.

·        Virando à (extrema) direita

Nem sempre Viktor Orbán esteve no espectro da extrema direita, diferentemente de outras lideranças do campo que chegaram ao poder nos últimos anos. Em 1998, quando foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, governou como um conservador relativamente convencional, postura que mudou após o Fidesz perder as eleições de 2002 para uma aliança comandada pelo Partido Socialista.

Assim como acontece com extremistas derrotados em diversos lugares, Orbán e seus seguidores nunca aceitaram a derrota de 2002 como legítima, acusando seus oponentes de fraude eleitoral. Em entrevistas, atribuiu ainda sua derrota aos meios de comunicação e à influência do capital internacional. “Orbán mudou visivelmente depois de 2002”, conta a ex-companheira de militância do primeiro-ministro húngaro, Zsuzsanna Szelényi, em Tainted Democracy. Após o resultado, foi criada uma rede de grupos de campanha (chamados “cívicos”) para promover os ideais do Fidesz, particularmente sobre questões de identidade nacional e religiosa.

“Depois de também perder a eleição subsequente em 2006, Orbán deixou de lado seus colegas mais moderados. Quando o governo liderado pelos socialistas após a eleição de 2006 cometeu um erro político – um discurso do primeiro-ministro vazou, no qual ele admitiu que o partido mentiu durante a campanha sobre a situação da economia – Orbán lançou um ataque político agressivo para removê-lo do poder”, lembra Szelényi em artigo publicado em 2015. “Ele polarizou o discurso público, retratando a coalizão do governo liberal de esquerda como o adversário da nação e promoveu agitação para mobilizar constantemente as ruas.” Embora seus esforços para remover a coalizão governista do poder não tenham tido sucesso àquela altura, o governo foi obrigado a ir para a defensiva.

Seguindo a mesma toada, ao realizar um discurso em 2009 em uma reunião a portas fechadas, Orbán anunciou a necessidade de “estabilidade política” na Hungria, pedindo a criação de um “campo político central” que governaria o país por até 20 anos, suprimindo na prática o bipartidarismo dominante até então.

·        Controle da mídia

“O primeiro movimento que o Fidesz fez após a vitória eleitoral em 2010 foi adotar a legislação da mídia. Naquela época, Orbán disse que essa medida era uma ‘correção’ para o viés esquerdista na mídia do país. As disposições legais então recém-adotadas, vagas e ambíguas, exigindo, entre outras coisas, que o conteúdo da mídia fosse ‘equilibrado’ e não incitasse o ódio ‘contra qualquer maioria’, visando a intimidação de jornalistas independentes”, contava, em 2017, o diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade (CMDS) da Escola de Políticas Públicas (SPP)da Central European University, Marius Dragomir.

Mas a estratégia era mais ampla e contava com a participação de empresários próximos de Orbán. Algumas fusões de grupos de comunicação foram negadas pelo Conselho de Mídia, enquanto outras eram estimuladas pelo governo, de acordo com o grau de “amizade” dos interessados com o Fidesz. Em agosto de 2017, os últimos cinco jornais independentes que haviam na Hungria foram comprados por oligarcas aliados do governo.

À época, a ONG Repórteres Sem Fronteiras criticou as negociações. “Essas últimas aquisições de apoiadores do partido no poder são mais uma confirmação do desejo do governo de controlar a mídia”, pontuava a entidade. “Este golpe para a independência da imprensa regional é o mais perturbador no período que antecede as eleições parlamentares.” Eleições estas vencidas pelo Fidesz.

Em 2018, no entanto, o plano deliberado de promover a concentração de mídia pró-governo atingiu seu ápice quando os investidores favoráveis a Orbán “doaram” 467 meios de comunicação, muitos dos quais originalmente adquiridos com empréstimos de bancos estatais, para a Central European Press and Media Foundation (Kesma), sob controle efetivo do governo. Isso facilitou a gestão financeira e o controle de conteúdo em relação aos meios de comunicação pró-governo. A formação da holding em um único dia foi tão bizarra que obrigou o governo a emitir um decreto classificando tais transações como de “importância estratégica nacional”, evitando qualquer questionamento em relação à lei da concorrência.

A publicidade estatal também foi direcionada de forma a sufocar os independentes. A emissora pró-governo TV2 recebeu 67% da publicidade estatal no setor de televisão, no ano de 2018, enquanto a independente RTL Klub, de alcance similar, recebeu apenas 1%, segundo relatório divulgado em 2019.

·        Mudando as regras do jogo

Uma reforma eleitoral promovida após a vitória do Fidesz em 2010 praticamente inviabilizou a vitória da oposição em vários locais do país. Na Hungria, os parlamentares são eleitos em sistema distrital misto e o partido refez os desenhos dos distritos adotando o chamado gerrymandering, comum em algumas unidades federativas dos Estados Unidos, que realizam o chamado redistritamento após a divulgação dos censos. Muitas vezes governadores adaptam os territórios para favorecer o partido no poder, mas se nos EUA há duas legendas em disputa, o redesenho húngaro foi dominado unicamente pelos interesses de Orbán.

No sistema húngaro são dados dois votos, um para um representante do seu círculo eleitoral de origem e outro para um partido. Em 2014, após as mudanças, o Fidesz obteve 45% dos votos mas levou dois terços dos assentos, enquanto outros três partidos conseguiram 51% e ficaram com um terço. A legislação nova deu mais assentos no Parlamento aos círculos eleitorais (106) do que àqueles eleitos por lista (93). Isso deu mais peso aos distritos remodelados, ajudando na formação de um resultado absolutamente desproporcional em favor do partido governista, que teve 45% dos votos nos círculos eleitorais individuais em 2014 e ainda assim obteve 88% dos assentos.

Em uma análise publicada depois dos resultados daquela eleição, o economista Paul Krugman dissecou os dados e concluiu que a “maioria absoluta” conquistada então “veio de uma variedade de truques legais contidos nas leis que foram escritas pelo Fidesz, para o Fidesz”.

Ainda havia mais alterações sob medida para favorecer os que estavam e ainda estão no poder. “Outra mudança complicada feita pelo Fidesz foi dar dupla cidadania aos húngaros étnicos que nunca viveram na Hungria. Com a nova Constituição de Orbán, cerca de 600 mil húngaros étnicos que são altamente favoráveis à direita receberam o direito de voto, ao mesmo tempo em que foi muito mais difícil para os cidadãos húngaros que vivem no exterior participarem das eleições”, explicou a secretária do Tribunal Constitucional Federal Alemão e editora associada do Verfassungsblog, Anna von Notz, em artigo publicado após a terceira vitória do partido governista húngaro em 2018.

Ela pontua que a mudança mais impressionante foi a chamada “compensação vencedora”. Em sistemas eleitorais mistos, muitas vezes um voto para um único candidato que perde o distrito é usado para complementar os totais na lista do partido. No caso húngaro, foi criado um sistema do avesso. Além de ganhar o mandato individual, os votos excedentes em relação àquilo que o candidato precisava para ganhar vão para a lista. Ou seja, o partido que venceu o distrito (que, como vimos foi redesenhado em favor do Fidesz) ganha mais votos no cálculo da lista partidária.

“A fraude eleitoral pode não acontecer apenas no dia da eleição. Nas autocracias modernas, assim como as ferramentas da repressão são muito mais sofisticadas do que nas ditaduras clássicas, as formas de manipular a eleição não consistem apenas em falsificar os resultados. A situação eleitoral é pré-organizada para produzir o resultado que os incumbentes querem: é isso que é uma eleição manipulada”, apontam os pesquisadores Bálint Magyar e Bálint Madlovics, do Instituto de Democracia CEU, em seu relatório sobre as eleições húngaras de 2022.

·        Justiça de mãos atadas

Sistemas de Justiça em geral costumam ser alvo de partidos e regimes de extrema direita. Buscando ampliar seu raio de ação sem qualquer constrangimento legal, o objetivo é cercear a ação do Judiciário ou mesmo dominá-lo. Foi o que aconteceu na Polônia sob o governo do Partido Lei e Justiça (PiS), que promoveu, entre outras reformas no setor, normas dando ao Legislativo o poder de nomear integrantes do Conselho Nacional do Judiciário, órgão de supervisão dos magistrados, assim como a prerrogativa de escolher e destituir presidentes do Supremo Tribunal.

Na Hungria, o modelo de nomeação de juízes constitucionais, que incluía tanto o governo quanto a oposição, foi substituído por um novo processo assegurando que a vontade do partido no poder iria prevalecer. A mudança foi feita logo em 2010, quando Orbán assumiu, e foi aprovado ainda um aumento no número de titulares do Tribunal Constitucional, que passou de 11 para 15. Outra alteração se deu na escolha do presidente da Corte, que antes era definida por seus próprios integrantes e passou a ser feita por uma maioria de dois terços no Parlamento.

Com a redução do limite para aposentadoria compulsória de 70 para 62 anos, em 2013, o Fidesz já tinha a maioria dos membros do Tribunal. “É revelador, por exemplo, que dos 26 casos iniciados pela oposição e decididos entre 2014 e 2020, o Tribunal Constitucional constatou violações parciais da Constituição em apenas 2 casos, enquanto todas as outras moções foram completamente mal sucedidas”, aponta o pesquisador de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas e especialista sênior em Estado de Direito da União das Liberdades Civis para a Europa, Viktor Z. Kazai, em artigo.

Kazai destaca ainda que, nos últimos sete anos e meio, a presidência da Corte ficou nas mãos de Tamás Sulyok, hoje presidente do país escolhido pelo Parlamento, após a renúncia de Katalin Novak, evidenciando a ligação política entre o Fidesz e o magistrado. “E é um sinal claro da falta de independência e autonomia do Tribunal o fato de este ter quase invariavelmente decidido a favor dos partidos governantes em casos politicamente sensíveis.”

Inúmeras outras mudanças foram feitas para ampliar o domínio do governo sobre o Judiciário. Em 2018, o Parlamento aprovou um projeto dando ao ministro da Justiça a palavra final sobre a nomeação, promoção e salário dos juízes. Por conta destas iniciativas, instituições da União Europeia implementaram processos contra o governo húngaro que bloquearam recursos para o país, existindo até mesmo a possibilidade de a Hungria perder seus direitos de voto na UE.

Sob pressão, Orbán promoveu em 2023 novas reformas buscando atender parte das demandas do bloco em relação à independência do sistema de Justiça. Mesmo consideradas insuficientes, as alterações fizeram com que a Comissão Europeia desbloqueasse em janeiro 10,2 bilhões de euros do Fundo de Coesão, destinado a ajudar os países a manter sua infraestrutura nos padrões da União Europeia. Trata-se de uma ajuda fundamental para a Hungria, que terminou o ano de 2023 com uma inflação de 17% e perspectiva de contração do PIB de 0,8%.

·        Modelo exportação?

Nos discursos do Fidesz e de seu líder Viktor Orbán, por conta das restrições e dos processos em curso sobre o governo húngaro, o inimigo de ocasião hoje é a União Europeia. Mas, como em todo espectro da extrema direita, este é um papel que muda conforme os ventos políticos. Os comunistas já foram os inimigos principais, assim como os social-democratas, ONGs, George Soros, imigrantes… A estratégia clássica utilizada para manter sua base mobilizada.

As redes sociais na Hungria também são um instrumento importante para difundir o discurso de ódio e fake news. A organização Human Rights Watch entrevistou especialistas em privacidade e proteção de dados, integridade eleitoral e campanhas políticas, além de empresas envolvidas em campanhas baseadas em dados para analisar a campanha eleitoral de 2022. Segundo eles, as plataformas de mídia social desempenharam um papel importante, embora complexo, nas eleições de 2022.

“Por um lado, os anúncios políticos online criaram novas oportunidades para as campanhas da oposição chegarem aos eleitores num ambiente onde estes estão em grande parte excluídos dos espaços publicitários tradicionais. Por outro lado, uma vez que as leis nacionais que regulam os limites de despesas de campanha não estão sendo aplicadas aos anúncios online, a disponibilidade de publicidade no Facebook, em particular, beneficiou tremendamente o Fidesz, que com os seus recursos descomunais gastou mais do que a oposição”, diz a entidade.

A investigação também descobriu algo grave, a coleta de dados por parte do governo para uso político-eleitoral. “A Human Rights Watch descobriu que o governo reaproveitou os dados coletados de pessoas que se inscreveram para a vacina contra a covid-19, solicitaram benefícios fiscais ou se registraram para ser membros de uma associação profissional, para espalhar as mensagens de campanha do Fidesz. Por exemplo, as pessoas que enviaram seus dados pessoais a um site administrado pelo governo para se registrar para a vacina contra a covid-19 receberam mensagens políticas destinadas a influenciar as eleições em apoio ao partido no poder.”

O modelo Orbán conseguiu até agora ser vitorioso com essa mescla de mobilização permanente em defesa de valores tradicionais, medidas autoritárias e de controle que minam qualquer oposição, conseguindo chegar a uma parcela da população empobrecida pela adoção de medidas neoliberais e privatizantes na primeira década dos anos 2000.

“O Fidesz formou um pequeno grupo de capitalistas próximos do governo, ao mesmo tempo que prossegue com uma política muito antissindical”, disse ao Le Monde o economista da Universidade de Viena Joachim Becker. Como o capital quase nunca se importa com o grau de democracia de um país, Orbán conseguiu atrair investimentos da Audi, BMW e Opel, que criaram fábricas no país, gerando empregos importante no contexto húngaro pós-crise de 2008.

“Uma das partes mais desconcertantes de observar o fascismo húngaro soft de perto é que é fácil imaginar o modelo sendo exportado. Enquanto o regime de Orbán surgiu da história e da cultura política únicas da Hungria, seu manual para repressão sutil poderia, em teoria, ser administrado em qualquer país democrático cujos líderes tenham tido o suficiente da oposição política”, pontua Zack Beauchamp. Evitar a exportação do “modelo Orbán” para o resto do mundo implica em discutir os mecanismos da democracia e o que ela oferece à boa parte do excluídos social e economicamente, hoje seduzidos pelas promessas e soluções simples dos extremistas.

¨      O que mantém a ultradireita húngara no poder

Após a revelação de que Jair Bolsonaro havia permanecido por dois dias na embaixada da Hungria no Brasil em fevereiro, o nome do primeiro-ministro do país, Viktor Orbán, passou a fazer parte do noticiário nacional. No poder desde 2010, ele foi o responsável por promover uma série de medidas autoritárias que minaram o regime democrático húngaro e que, ao mesmo tempo, fizeram dele uma espécie de referência para a extrema direita mundial.

Em 9 de março, por exemplo, ele encontrou o ex-presidente dos Estados Unidos e novamente candidato Donald Trump. O bilionário não poupou elogios ao colega europeu em um discurso feito na Flórida. “Não há ninguém melhor, mais inteligente ou melhor líder do que Viktor Orbán. Ele é fantástico”, celebrou, pontuando ainda que “se trata de “uma figura incontroversa porque disse: ‘É assim que vai ser’, e ponto final, certo? “Ele é o chefe e… ele é um grande líder, um líder fantástico. Na Europa e em todo o mundo, eles o respeitam”.

Trump, Bolsonaro e outros sonham com o modelo implementado por Orbán, no qual ele dominou o sistema de Justiça, submeteu a mídia e criou mecanismos que favorecem sua permanência no poder sob as vestes de um processo eleitoral programado para dar a vitória ao seu partido, o Fidesz. Mas, do ponto de vista internacional, ele também alcançou relevância por fazer um trabalho voltado para a propagação de seu ideário.

“Orbán fabrica consentimento investindo pesadamente em grupos de reflexão e fundações iliberais e em qualquer coisa que produza conteúdo cultural alinhado com o seu poder. Desde que se tornou uma persona non grata na Europa e nos EUA (sob Obama e Biden), percebeu a importância da organização internacional e do fortalecimento da contracultura iliberal”, explica o professor assistente de Política Comparada na Universidade de Georgetown, no Catar, atualmente bolsista visitante na Universidade de Harvard, Gábor Scheiring. “Ele investe vastas somas no financiamento de uma rede internacional de institutos de pesquisa iliberais e convida novos pensadores de direita de todo o mundo para visitarem a Hungria. Se juntarmos tudo isto, temos uma figura que se destaca internacionalmente muito acima do que seria seu tamanho real.”

LEIA A ENTREVISTA:

·        Você foi eleito deputado ao mesmo tempo em que começou o governo de Orbán. Durante o seu mandato, foi possível identificar em que momento ficou evidente que seria um governo autoritário? Ou foi um acúmulo de medidas?

Após alguns meses, ficou claro que Orbán não tinha interesse no parlamentarismo tradicional. O parlamento tornou-se uma máquina de carimbar e os deputados que representavam o partido de Orbán não tinham poder. O seu papel foi duplo: votaram e atacaram a oposição, mas nunca desafiaram a máquina centralizada do poder.

Após um ano, ficou claro que não só o parlamentarismo, mas também a democracia liberal estava em perigo. O governo subjugou o Tribunal Constitucional e desde cedo povoou a radiodifusão pública com pessoas leais a ele. Um ano e meio depois das eleições decisivas de 2010, Orbán reescreveu a lei eleitoral para dificultar muito o trabalho da oposição. Às vésperas do Natal, em 23 de dezembro de 2011, o parlamento estava em sessão, prestes a votar uma série de leis iliberais, incluindo a lei eleitoral, e nos acorrentamos ao edifício do parlamento, protestando contra o retrocesso democrático.

·        No seu artigo você destaca que, assim como Trump fez nos EUA, Orbán conquistou um grupo de trabalhadores que perderam renda e status com a globalização. Além do discurso, é possível ver iniciativas efetivas do atual governo húngaro para garantir o apoio a esses segmentos?

Certamente, os discursos populistas autoritários não são suficientes para estabilizar o iliberalismo no poder. Orbán e o seu partido foram mais inovadores do que a oposição no seu esforço para organizar uma grande parte da Hungria provincial que foi deixada para trás pela era de transição liberal. Muitas cidades que anteriormente eram redutos regionais da esquerda se tornaram gradualmente desiludidas com o funcionamento da economia. No entanto, a esquerda nunca prestou muita atenção a isto, nem na sua oferta política nem no esforço organizacional. Assim, Orbán e a direita radical Jobbik puderam se organizar em antigas cidades industriais e outras zonas da Hungria fora das cidades maiores e mais cosmopolitas.

Uma vez eleito, seu governo introduziu várias iniciativas destinadas a atrair os eleitores da classe média baixa e da classe trabalhadora. Um extenso programa de obras públicas e a limitação do preço da energia e dos combustíveis são algumas das iniciativas mais populares que se enquadram nesta estratégia. Na maioria dos casos, o design e a aparência eram mais importantes do que entregar uma solução real. No entanto, estas iniciativas funcionaram e permitiram que Orbán e o seu governo demonstrassem o quanto se importavam, em contraste com a oposição liberal de esquerda.

·        Que tipo de mudanças institucionais foram feitas na Hungria para garantir a permanência de Orbán no poder?

Desde que assumiu o cargo em 2010, Viktor Orbán conduziu a Hungria para se tornar o primeiro Estado não democrático da União Europeia, abraçando com orgulho o termo “Estado iliberal”. A cooptação de mecanismos democráticos é a marca do mandato de Orbán.

Um pilar fundamental do seu regime autoritário é a extensa rede de meios de comunicação de direita, que amplifica a narrativa do governo. O círculo de Orbán construiu um ambiente midiático conservador que domina o discurso público e apoia as agendas governamentais. Por meio da manipulação e da permissão do registo eleitoral fora do distrito, o Fidesz distorceu o processo eleitoral a seu favor.

Além disso, Orbán encheu o Ministério Público de aliados, protegendo as ações do governo do escrutínio. Um ataque significativo à independência judicial sob o seu governo garantiu que os vereditos estejam alinhados com os interesses governamentais. Em suma, ao corroer sutilmente a democracia a partir do seu interior, Orbán evita a opressão aberta ao mesmo tempo que sufoca a oposição, tornando difícil à dissidência encontrar o seu lugar num espaço democrático restrito.

·        No panorama político global, você vê Orbán como uma espécie de articulador da extrema direita global, já que se tornou um símbolo importante deste grupo político em vários países?

Concordo que Orban se tornou uma figura chave na extrema direita global. Primeiro, ele está no poder há mais tempo do que qualquer outro líder europeu. Fora da Europa, também é difícil encontrar líderes semelhantes com um período tão longo à frente do governo. Erdogan é o que mais se aproxima de Orbán em seu estilo político e estratégia de construção de hegemonia, e não é de admirar que os dois sejam melhores amigos, inspirando-se e aprendendo um com o outro. Em segundo lugar, o poder de Orbán está seguro, sem desafios internos significativos, e por isso tem se concentrado cada vez mais na política externa.

Terceiro, ele sabe que o poder estável exige hegemonia, que depende do consentimento. Orbán fabrica consentimento investindo pesadamente em grupos de reflexão e fundações iliberais e em qualquer coisa que produza conteúdo cultural alinhado com o seu poder. Desde que se tornou uma persona non grata na Europa e nos EUA (sob Obama e Biden), ele percebeu a importância da organização internacional e do fortalecimento da contracultura iliberal. Ele investe vastas somas no financiamento de uma rede internacional de institutos de pesquisa iliberais e convida novos pensadores de direita de todo o mundo para visitarem a Hungria. Se juntarmos tudo isto, temos uma figura que se destaca internacionalmente muito acima do que seria seu tamanho real.

·        Em relação ao episódio envolvendo Bolsonaro na embaixada da Hungria no Brasil, você consegue perceber muitos pontos em comum entre ele e Orbán? Você acredita que o governo húngaro correria o risco de causar um incidente diplomático para, em caso de um pedido de prisão, concederasilo político ao ex-presidente brasileiro?

Não sou especialista em política brasileira, mas parece haver diversas semelhanças. Os dois homens partilham mais ou menos a mesma ideologia iliberal, visando a ordem mundial liberal global e os seus aliados internos. Ambos conseguiram montar uma coligação eleitoral difícil de eleitores da classe média e da classe trabalhadora. Bolsonaro está numa posição diferente porque a esquerda brasileira tem sido uma das organizações políticas mais bem organizadas na esquerda em nível internacional, mesmo que tenha se tornado mais fraca nos últimos anos. Isso garante que Bolsonaro tenha mais dificuldade em atrair eleitores deixados para trás. A esquerda é um fracasso desastroso na Hungria, por isso Orbán tem uma base social mais ampla.

Em relação ao asilo, é difícil saber o que vai acontecer. Bolsonaro deixou a embaixada húngara e promete ficar e lutar. Vamos ver o que acontece se as coisas realmente começarem a esquentar para ele. Orbán já esteve nas manchetes ao conceder asilo a líderes de extrema-direita processados. Por exemplo, quando Nicola Gruevski, o primeiro-ministro iliberal deposto da Macedônia do Norte, enfrentou acusações no seu país natal, fugiu para a Hungria. Gruevski foi condenado por um tribunal da Macedónia do Norte a sete anos de prisão em 2018 por branqueamento de capitais, mas nessa altura já tinha fugido do país com a ajuda de diplomatas húngaros. Agora é um feliz empresário na Hungria, onde obteve asilo. A nova liderança da Macedônia do Norte tentou extraditá-lo, mas até agora não teve sucesso.

·        Com base na experiência húngara, é possível pensar em estratégias que poderiam ser adotadas por partidos de esquerda, centro-esquerda e até mesmo o que chamamos aqui de “centro democrático” para enfrentar a extrema direita?

A esquerda e o “centro democrático” precisam levar a sério os desafios da globalização. Estes desafios aparecem de forma diferente em partes do mundo distintas; a classe média é uma grande questão em economias emergentes como o Brasil e a Índia. Anteriormente, a classe média fazia parte de uma coalizão social que apoiava governos democráticos de esquerda que construíram serviços públicos que também serviam a esta classe média. Contudo, mais recentemente, a classe média abandonou esta coalizão e quis aproveitar as oportunidades proporcionadas pelo capitalismo globalizado para acumular riqueza. Ser solidário com os trabalhadores e os pobres custa caro, por isso elegeram novos líderes não liberais. No Brasil, alguns segmentos da classe trabalhadora também mudaram de lado. Aqui, o enfraquecimento organizacional do Partido dos Trabalhadores e a ascensão de novos movimentos religiosos parecem ser o principal desafio estratégico.

Na Europa e nos EUA, os desafios da globalização significam que uma grande parte da classe média está se deslocando para a parte de baixo, enquanto a classe trabalhadora está perdendo de forma explícita. Os trabalhadores têm mudado de lado há décadas, principalmente devido a uma ruptura que surge entre eles e os partidos de esquerda. A esquerda tem se concentrado cada vez mais nos vencedores da globalização, nos eleitores instruídos que vivem nas grandes áreas urbanas e metropolitanas, negligenciando e até estigmatizando os trabalhadores fora destes centros cosmopolitas. A esquerda e o centro democrático precisam reaprender a ouvir este grupo para compreender o sofrimento dele, que é muito real e não apenas uma questão cultural imaginada.

Depois de compreenderem o que se passa com estas pessoas e oferecerem uma identidade política que os represente, terão de investir muito mais esforço na organização. A política midiática tem seus limites. Você precisa sair, estar presente, estar disponível e oferecer soluções localmente. A popularidade do Blairismo e do Clintonismo elevou a política midiática a um novo nível na esquerda. Este estilo de política depende exclusivamente de especialistas na concepção de mensagens e políticas; as pessoas não fazem parte da equação, a não ser como “massa” que consome os produtos criados por estas fábricas políticas. Mas, ao fazê-lo, esqueceram-se de como organizar as pessoas, ouvir as suas necessidades e oferecer uma representação crível. Esta é a verdadeira fonte do poder dos populistas autoritários – o fato de grandes partes do eleitorado se sentirem invisíveis, ouvidas e negligenciadas. Isso precisa mudar. Organize os que ficaram para trás, forneça soluções reais para os desafios da globalização e vença a insegurança econômica. Estes são os passos para vencer o populismo autoritário.

 

Fonte: Por Glauco Faria, em Outras Palavras

 

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