quarta-feira, 3 de abril de 2024

O que foi a Operação Brother Sam, apoio dos EUA ao golpe de 64

Às 11h30 do dia 31 de março de 1964, acontecia na Casa Branca, em Washington, uma reunião tensa. Autoridades americanas discutiam o envio de apoio aéreo e naval àqueles que, no Brasil, conspiravam para a derrubada do governo de João Goulart (1919-1976), o Jango.

O contexto era o da Guerra Fria, em que tanto Estados Unidos quanto União Soviética disputavam zonas de influência pelo mundo. O agravante: apesar de Jango jamais ter se alinhado ao socialismo, havia um receio – em parte provocado por suas reformas de base – de que ele quisesse alinhar o Brasil ao bloco soviético.

Documentos então confidenciais do governo americano – revelados pela primeira vez em pesquisa acadêmica da historiadora americana Phyllis R. Parker e publicados no Brasil apenas em 1977 – mostravam que Washington já monitorava as movimentações políticas brasileiras desde 1961.

Às 13h50 daquele último dia de março, o comando militar dos EUA decidiu enviar ao Brasil um porta-aviões e dois destróieres, além de um grupo de apoio de helicópteros embarcados em outro navio, acompanhado de quatro destróieres. Ficou acertado que a força-tarefa sairia de um porto da Virgínia às 7h do dia seguinte e chegaria ao Brasil – na região do porto de Santos – entre 10 e 14 de abril.

Batizada de Operação Brother Sam, esta foi a estratégia militar oferecida pelos americanos a quem planejava a destituição de Jango e a implementação do golpe de 1964, de fato ocorrido em 31 de março.

"Foi uma operação naval que o governo dos EUA montou para ajudar na derrubada de João Goulart. Montaram uma frota com navios de guerra, porta-aviões, cargueiros trazendo petróleo e munições", resume o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Eram provisões para ajudar o lado dos golpistas. Se ocorresse uma guerra civil no Brasil provavelmente haveria intervenção norte-americana. Eles não estavam mandando uma frota aqui à toa."

Além de armas, também consta que os navios trariam gás lacrimogêneo, que poderia ser usado para conter multidões em protestos e rebeliões. Na avaliação do pesquisador, "a participação norte-americana no eventual conflito teria um impacto muito grande".

A ideia da operação era garantir que, em caso de resistência de Jango e seus apoiadores, o golpe tivesse armas para conter revoltosos e, por fim, conseguisse derrubar o governo. As munições se justificavam pelo receio de que a população contrária à intervenção militar, em geral alinhada à esquerda, contasse com treinados guerrilheiros armados prontos para o conflito. Os navios petroleiros também tinham seus motivos: temia-se que o comando da Petrobras, como forma de resistência, cortasse o fornecimento de combustíveis ao país.

Todo o planejamento da Brother Sam ocorreu por meio de telegramas entre o governo americano e a embaixada dos EUA no Brasil. Em 1º de abril, a Casa Branca queria saber se "o impulso continuaria do lado anti-Goulart sem incentivo oculto ou ostensivo de nossa parte". Então embaixador no Brasil, o diplomata Lincoln Gordon (1913-2009) respondeu que "o impulso claramente pegou". Horas mais tarde, Gordon acrescentou que a "rebelião democrática" estava "95% vitoriosa".

Era a senha para o desmonte da operação. Mas autoridades americanas demonstraram cautela, sobretudo receosas de que faltasse petróleo disponível no Brasil. A ordem para dissolver a força-tarefa só foi dada às 20h do dia 2, e os navios então iniciaram um retorno aos EUA. Segundo documentos revelados apenas nos anos 1970, a operação custou 2,3 milhões de dólares aos cofres americanos.

Professor na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o historiador Daniel Aarão Reis acrescenta que "eles não vinham propriamente para invadir o Brasil, mas para dar uma cobertura política e diplomática aos golpistas".

"Tanto os agentes da CIA [o serviço de inteligência americano] quanto os políticos brasileiros conservadores esperavam que haveria muita resistência [ao golpe] e cogitavam a hipótese de uma guerra civil, que não aconteceu", ressalta Reis.

"Basicamente foi uma operação de apoio, de sustentação ideológica, política e, principalmente, militar dos EUA ao golpe civil-militar de 1964", analisa o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré. "Ela se configurou, sim, como participação americana no golpe, tendo em vista principalmente o contexto da Guerra Fria que o mundo vivia naquele momento."

Conforme lembra o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Unesp, "o fantasma do comunismo" assombrava a política americana desde os anos 1950. E isso se agravou após a revolução cubana, em 1959, e a aproximação da ilha à política ideológica soviética.

No governo de John Kennedy (1917-1963), começou-se a alardear "a necessidade de novas estratégias, amparadas em ações coordenadas e informações racionalmente seguras", para conter o avanço da esquerda no mundo, explica Martinez. "Se as reformas sociais eram o apelo do discurso comunista na América Latina, caberia aos EUA antecipar a realização destas, afastando os perigos da tentação política e ideológica das opções concorrentes e ameaçadoras dos interesses e dos valores norte-americanos", avalia o professor.

Pelas dimensões continentais, pela localização estratégica e pelo peso econômico e político, o Brasil estava nesse radar. E o resultado, pontua Martinez, "foi a montagem de estruturas, equipes, orçamentos e ações voltadas para prevenção, monitoramento e articulações políticas, econômicas e militares em tempo real ou imediato".

"Buscava-se antecipar a presença e a participação dos EUA nos momentos vividos e atentamente observados e diante das perspectivas indicadas pela massa de dados, informações, estatísticas, análises, relatos, comparações e projetos em todos os países latino-americanos", contextualiza.

"Para tanto foram adotadas medidas para expandir e organizar a atuação de assessores, acadêmicos, jornalistas, adidos culturais, econômicos, políticos e militares instalados em consulados, embaixadas, universidades, empresas e a sociedade civil em diferentes países na América Central, do Sul e o Caribe."

Repercussão do apoio americano

O historiador Motta avalia que o apoio americano teve um papel importante na opinião pública, como se o governo dos EUA estivesse de alguma forma legitimando o golpe.

"As pessoas ficaram sabendo disso, que os Estados Unidos tinham mandado uma frota. E entenderam que isso tinha uma importância tremenda, que quem tinha o apoio americano tinha um trunfo enorme. É possível que isso tenha desanimado o presidente João Goulart a resistir ao golpe, por saber que haveria uma intervenção norte-americana para ajudar os golpistas", comenta ele.

Durante muito tempo, contudo, a participação dos americanos no golpe era desacreditada e tratada como uma espécie de "narrativa conspiratória da esquerda". Quando esses documentos vieram à pública, portanto, houve um ganho historiográfico importante.

"Revelou-se que os americanos operaram, ajudaram a planejar o golpe no Brasil. O que era 'ilusão da esquerda' está documentado. Diante das ameaças de resistência, os Estados Unidos enviaram dois porta-aviões em uma possível invasão ao Brasil", diz o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

O historiador Reis frisa que o episódio não deve ser entendido com "aquela visão simplista muito comum de que 'tudo começou em Washington', como se o golpe de Estado fosse uma expressão brasileira de um golpe arquitetado nos Estados Unidos". "Nada mais falso do que isso. Evidentemente que os golpistas buscaram apoio do governo norte-americano, mas a ideia partiu daqui", afirma o historiador.

Mesmo com a operação abortada, ficou o registro. Em 1964, os EUA deixaram de ser Tio Sam e se apresentaram como "brother" do Brasil – tudo em nome de um interesse ideológico comum.

 

       Golpe: debate deve ir além da academia, diz responsável por arquivos

 

Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, a diretora de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo (DPT) do Arquivo Nacional, Gabrielle Abreu, promete expandir, para além das universidades, as parcerias do projeto Memórias Reveladas, que reúne os arquivos sobre os anos de chumbo no Brasil (1964-1985), envolvendo também escolas de educação básica, meios de comunicação e movimentos sociais. 

Empossada no início deste mês, a mestre em história comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ressaltou que é comprometida com a luta pela memória sobre a ditadura civil-militar brasileira e que o período é chave para compreender o presente e o futuro do país.

“Esse é um tema muito caro para mim, é a agenda da minha vida”, revelou a historiadora. Gabrielle atuou nos últimos anos na área de Memória e Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, organização não-governamental que leva o nome do jornalista da TV Cultura assassinado pela ditadura.

Criado em 2009, o projeto Memórias Reveladas coloca à disposição do país os arquivos que contam a história das lutas de resistência à ditadura militar durante as décadas de 1960 a 1980. A historiadora afirmou que o projeto foi esquecido pelo governo Bolsonaro e reconhece que falta pessoal, já que apenas dois servidores estão lotados no programa. Por outro lado, lembrou que o projeto virou uma Divisão, ganhando importância institucional dentro do Arquivo Nacional.

Entre as iniciativas previstas para este ano está a retomada do Prêmio Memórias Reveladas, que valoriza iniciativas que promovam a memória sobre a ditadura brasileira. A última edição do prêmio foi de 2017.

Segundo Gabrielle, o objetivo é “premiar produções acadêmicas, artigos científicos sobre a temática, mas também projetos educacionais, valorizando o que tem sido feito no chão da escola sobre esse tema, e também produtos comunicacionais”.

Devido à proximidade temporal da última ditadura, a diretora destacou que ela ainda produz efeitos no presente. “A maneira como os ditadores, os militares especialmente, conduziram esse processo faz com que hoje a gente ainda viva com muitas reverberações desse período”, avaliou.

>>>> Confira a entrevista completa:

•        Qual a importância de revelar as memórias sobre a ditadura civil-militar (1964-1985)?

Gabrielle Abreu: É importante uma compreensão total da nossa história, enquanto nação, algo que no Brasil é muito negligenciado. Infelizmente, somos um país com pouco apreço à nossa memória, com dificuldades de conhecer a nós mesmos.

Nesse sentido, nenhum período se sobrepõe em relação a outro, mas eu acho que a história da ditadura militar brasileira acaba sendo um período muito chave para a compreensão dos acontecimentos mais recentes. Por isso, jamais, por parte da gestão do Arquivo Nacional, vai haver uma movimentação no sentido de esvaziar essa pauta dentro do órgão.

Tal como outros períodos históricos, é um período chave para uma compreensão do nosso presente, porque há muitas continuidades, muitos desdobramentos desse período. É um período chave para uma compreensão do presente e até mesmo do futuro.

•        Como é essa conexão da ditadura com o presente e o futuro?

Gabrielle Abreu: Não dá para abrir mão de uma reflexão crítica sobre o passado. E isso a partir de qualquer período histórico. Se a gente for pensar a linha do tempo histórico, a ditadura ocorreu muito recentemente. Dada essa proximidade temporal, a gente ainda vai viver certos efeitos dela.

A ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985 tinha um elemento muito específico se comparado aos outros regimes autoritários que ocorreram em países vizinhos ao Brasil no mesmo período. Aqui se tentou mascarar o caráter ditatorial e dar certa legitimidade ao regime.

As ditaduras não se sustentam só com repressão e violência. Parece paradoxal, mas existia também a construção de um conjunto de valores, de ideologias, que foram pensadas para dar musculatura a esse regime e fez com que ele vigorasse por tanto tempo, por 21 anos. A maneira como os ditadores, os militares especialmente, conduziram esse processo faz com que hoje a gente ainda viva com muitas reverberações desse período.

•        Você assumiu recentemente a Diretoria responsável pelo Memórias Reveladas. Quais novas ações e medidas serão tomadas para fortalecer esse projeto?

Gabrielle Abreu: O que está sendo pensado para o Memórias Reveladas já vinham sendo pensadas antes da minha chegada, obviamente, mas ganham um novo fôlego a partir da minha aproximação.

No finalzinho do ano passado, houve uma reestruturação e o Memórias Reveladas passou a ser uma divisão dentro da estrutura do Arquivo Nacional. Ele é reposicionado também na Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo (DTP), diretamente vinculada ao gabinete dessa diretoria, o que também fortalece institucionalmente o programa.

Nesse ano, temos os 15 anos de Memórias Reveladas no dia 13 de maio. Nosso intuito é que a gente possa reverberar as ações da divisão ao longo de todo o ano, pautando a memória da ditadura militar brasileira, a reflexão e o conhecimento das lutas por direitos e como os arquivos se relacionam com o fortalecimento democrático. A gente tem a previsão de realizar a 5ª edição do Prêmio Memórias Reveladas de maneira renovada, agregando a multiplicidade dos segmentos que têm refletido sobre o tema. O Prêmio, nos últimos anos, esteve focado em produções acadêmicas monográficas. A gente sabe que a universidade é um palco muito importante para esse tema. Isso é um fato. Mas existem outros setores, outros segmentos que também estão tratando da ditadura de forma muito central.

Eu estou falando das escolas, dos veículos de comunicação, da sociedade organizada, dos movimentos sociais, dos movimentos de vítimas do período. A gente quer colocar o Prêmio na rua dando conta dessa multiplicidade de vozes e formatos, especialmente nas escolas, na educação básica, em como podemos fortalecer esse tema nos currículos, por exemplo.

O Prêmio Memórias Reveladas vai premiar produções acadêmicas, artigos científicos sobre a temática, mas também projetos educacionais, valorizando o que tem sido feito no chão da escola sobre esse tema, e também produtos comunicacionais.

•        Os servidores do Arquivo Nacional têm reclamado da falta de estrutura para tocar o projeto, que teria sido abandonado pela gestão anterior, que era simpática à ditadura no Brasil. Apesar de você não estar na área no ano passado, mas caso já tenha sido possível se atualizar, como estava a situação do projeto e como recuperar ele?

Gabrielle Abreu: Quando a atual gestão do Arquivo Nacional assumiu o órgão, o que ocorreu foi um grande susto em relação ao estado que se encontrava o Memórias Reveladas. É como se o Memórias Reveladas sequer existisse. Ele não estava visível na estrutura regimental do Arquivo Nacional.

Agora, o Memórias Reveladas aparece no regimento, ganha nova musculatura, se tornando uma divisão. Com a minha aproximação, a gente começa a fazer uma movimentação interna de recomposição dessa equipe. Hoje, apenas dois servidores estão dedicados às atividades do Memórias Reveladas. Isso é muito pouco. Desde o meu 1º dia no órgão, trabalho para reforçar o expediente do Memórias Reveladas.

•        Nessa semana, um estudo inédito do pesquisador da UnB e ex-preso político Gilney Viana apontou 1.654 camponeses assassinados pela ditadura. O número é muito superior ao identificado pela Comissão Nacional da Verdade, que é de 434 vítimas fatais. Como o Memórias Reveladas dialoga com essas pesquisas feitas por particulares?

Gabrielle Abreu: Essa pesquisa do Gilney, essas novas estatísticas, só mostra o quanto esse ainda é um tema muito vivo e dinâmico. É muito importante que nós estejamos próximos da rede de pesquisadores que lidam com essa temática, fortalecendo essas pesquisas com a documentação que a gente mantém hoje no órgão. O principal objetivo é fortalecer essas pesquisas a partir da documentação que nós temos para que a gente um dia, quem saiba, possa chegar numa estatística, num dado mais fidedigno, mais próximo da realidade em relação a esse número, principalmente de vitimados pela ditadura militar.

 

Fonte: Deutsche Welle/Agencia Brasil

 

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