Fortalecer o crime, corromper polícias e
lotar cadeias: as ideias dos governadores do Sul e Sudeste para a segurança
NA SEMANA EM que
os brasileiros souberam que o crime organizado e o estado brasileiro atuaram em
conjunto para matar Marielle Franco,
governadores do Sul e do Sudeste foram à Brasília para apresentar ao governo
federal e ao Congresso um conjunto de propostas para a área da segurança
pública.
Enganou-se quem achou
que teríamos novas propostas para reformar as polícias e o sistema carcerário e
aumentos de investimentos em inteligência e prevenção. Muito pelo contrário.
Absolutamente todos os itens propostos pelos governadores estão norteados pela
velha lógica de sempre: a repressão, o punitivismo e o fortalecimento de um
estado policialesco.
Trata-se da mesma
fórmula que vem fracassando há décadas e que nos trouxe ao atual estado de
calamidade na segurança pública. Não há uma ideia sequer que leve em conta, por
exemplo, que as polícias estão contaminadas pelo crime organizado.
Para emprestar um
verniz moderno e civilizado para um pacote de ideias velhas e apodrecidas, o
governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, foi o escalado para explicar as
quatro principais propostas. No Twitter, ele apresentou um resumo delas.
Vejamos a primeira:
“queremos o fim do prende e solta. Estamos propondo uma revisão nos requisitos
da legislação para concessão de liberdade provisória em audiências de custódia
no caso de crimes graves e quando há reincidência”. Não há nenhum dado científico
que embase essa proposta. Pelo contrário, os números mostram que mais se prende do que se solta em audiências de custódia.
Cecília Olliveira,
jornalista do Intercept Brasil e fundadora do Instituto Fogo
Cruzado, comentou: “Só 35% dos
homicídios são investigados. Dava pra começar uma nova política de segurança
com essa ideia: elucidando crimes. Aí talvez a gente soubesse se o ‘prende e
solta’ é msm o problema. Se prisão fosse solução, viveríamos na Suíça. Temos a
3ª maior população carcerária do mundo”.
O que não falta no
Brasil é gente sendo encarcerada. Em 2000, o país tinha mais de 232 mil presos. Hoje, 24
anos depois, esse número aumentou em quase 400%.
Qual foi o resultado dessa política? A expansão e o fortalecimento do crime
organizado, que fez do sistema carcerário uma espécie de categoria de base em
que se recruta novos talentos para o time.
A segunda proposta:
“atualizar a legislação sobre os requisitos para abordagens. Queremos reforçar
aos policiais a prerrogativa de realizar abordagens conforme circunstâncias
suspeitas. E também deixar expresso na legislação que é vedada a atuação com base
em preconceitos”.
A ideia é
contraditória e ridícula. Para o professor de
Processo Penal e Direitos Humanos, Caio Paiva, “autorizar a polícia a se valer
indistintamente da suspeita e do tirocínio não combina com proibir preconceito
na abordagem”. Ora, a abordagem com base em preconceito já é vedada pela
legislação, mas isso nunca foi um empecilho para que jovens pretos e pobres da
periferia fossem parados na rua apenas por serem jovens pretos e pobres de
periferia. Na prática, a proposta só reforça o direito do policial abordar
qualquer um, mesmo que não haja suspeita fundada. Nada de novo no front.
A terceira proposta:
“permitir acesso pelas forças policiais às informações de monitoramento
eletrônico independente de autorização judicial, para melhorar a integração,
qualificar a atuação policial e as investigações”. É o liberou-geral para os
policiais investigarem ao seu bel-prazer.
A proposta prevê maior
liberdade de investigação para uma corporação que está em boa parte contaminada
por bandidos. Não é difícil imaginar o que faria Rivaldo Barbosa — o
delegado que ajudou a planejar o assassinato de Marielle— sem precisar de
autorização judicial para monitorar seus inimigos. Os outros Rivaldos Barbosas
espalhados pelo país também fariam o diabo com essa carta branca. O crime
organizado agradece aos governadores.
A quarta proposta é o
cúmulo do ridículo: “tornar qualificado o crime de homicídio quando for
praticado por ou a mando de organização criminosa”. Os assassinatos cometidos
pelo crime organizado já são considerados hediondos em praticamente todos os
casos. A proposta simplesmente ignora o código penal, mas dialoga bem com uma
população embriagada pelo populismo punitivo como solução.
Como se vê, os
governadores não têm a mínima ideia do que estão falando. Eles encontraram uma
forma de se eximir de suas responsabilidades e jogar a bucha no colo do
Judiciário e do Legislativo.
As propostas estão
baseadas na mesma cartilha enxuga-gelo que adotamos nos anos 1980, que ajudou a
lotar as cadeias de pretos e pobres, fortalecer o crime organizado e corromper
as polícias. De lá pra cá, o crime organizado tomou conta de todos os estados
do país e se internacionalizou. Hoje as facções estão infiltradas em
prefeituras, câmaras municipais, financiam candidatos e nomeiam secretários.
Nenhuma das propostas apresentadas fere essa estrutura criminal – muito pelo
contrário.
Essas ideias
populistas caem com facilidade no gosto de uma população que foi educada por
professores como Datena, Alborghetti e Ratinho.
Estudiosos da áreas da
segurança pública não foram consultados pelos governadores. As propostas são
vazias, inócuas e baseadas no mais puro negacionismo científico, mas soam bem
aos ouvidos de boa parte dos eleitores que têm a segurança pública no topo das suas preocupações.
Baseado em achismos e
cálculo eleitoral, essas ideias populistas caem com facilidade no gosto de uma
população que foi educada nas últimas décadas por professores como Datena,
Alborghetti e Ratinho. Os programas policiais sensacionalistas martelaram durante décadas na
cabeça da população a máxima “bandido bom é bandido morto” — o que contribuiu
para banalizar os crimes cometidos pela polícia e pavimentar o caminho para
ascensão do bolsonarismo.
Os governadores
sulistas e sudestinos, todos homens brancos de direita, não propuseram nenhuma
medida que qualifique a investigação policial para prender os grandes líderes
das organizações criminosas, que muitas vezes moram em condomínios de luxo.
Pelo contrário, insistem em pesar a mão do estado sobre a cabeça de peixe
pequenos do crime nas ruas das periferias. Esse é o museu de grandes novidades
que foi apresentado ao país nesta semana. Ainda que alguns vistam sapatênis e
camisa polo, como Eduardo Leite, todos eles preferem fugir das evidências e
continuar bebendo confortavelmente o puro suco do bolsonarismo.
Agarram-se no velho
populismo penal e dobram a aposta no pânico moral em busca de votos em um ano
de eleição. Convenhamos, não podíamos esperar nada diferente de uma direita
tradicionalmente oportunista e que está ávida pelo espólio eleitoral de
Bolsonaro.
Ø Paes diz que foi um erro nomear Chiquinho Brazão, suspeito no
caso Marielle
O prefeito do Rio de
Janeiro, Eduardo Paes (PSD), afirmou neste sábado (30) que foi um erro ter
nomeado o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido) como secretário em
sua gestão, mesmo com a suspeita de envolvimento da família com a morte da
vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.
A fala do prefeito
também sinaliza um rompimento com o Republicanos, sigla que indicou Chiquinho
para o cargo. Nesta semana, ele exonerou aliados do deputado, o substituto
indicado pelo partido e nomeou uma pessoa de seu próprio grupo político.
"Foi um erro da
minha parte, na constituição da aliança, a gente colocar uma pessoa que tinha
sido suspeita. Eu posso aqui ter todas as desculpas do mundo, os seis anos [de
investigação sem conclusão], todo mundo já tinha sido acusado de tudo, mas
errei", afirmou o prefeito, após participar da primeira viagem no corredor
Transbrasil entre os terminais Deodoro e Gentileza.
Chiquinho e o irmão,
Domingos, conselheiro do TCE (Tribunal de Contas do Estado), foram presos sob
suspeita de serem os mandantes da morte da vereadora.
O deputado foi nomeado
em outubro, apesar das suspeitas sobre o irmão desde 2018 de envolvimento de
crime. De acordo com o prefeito, o nome foi indicado pelo Republicanos como
parte da aliança da sua pré-candidatura de reeleição.
Chiquinho foi
exonerado em fevereiro, uma semana após a divulgação sobre o acordo de delação
premiada do ex-PM Ronnie Lessa, acusado de ser o executor do crime.
"Mais importante
quando você erra é consertar o erro. Já tinha sido pedido que ele fosse
retirado da secretaria, e aqui não quero fazer pré-julgamento, mas, diante das
suspeitas e da prisão dele, eu pedi que fosse retirado da secretaria antes,
quando começaram a surgir os boatos", disse o prefeito.
Em seu lugar, o
Republicanos indicou a nomeação do deputado federal Ricardo Abrão, do mesmo
grupo político dos Brazão. Ele manteve 15 nomeados por Brazão no cargo, segundo
levantamento do vereador Pedro Duarte (Novo).
Após a prisão de
Brazão, o prefeito exonerou aliados do deputado, bem como o secretário
substituto. Em seu lugar, indicou Marli Peçanha, que estava no cargo desde o
início de seu mandato até a nomeação de Chiquinho.
Após a mudança, o
Republicanos passou a articular um desembarque da aliança de Paes para apoiar o
deputado federal Alexandre Ramagem (PL), indicado pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro na disputa. O prefeito sinalizou que não deve buscar a reconciliação.
"A gente nesse
momento entende que o Republicanos, com os quadros que dispunha aqui, não era
adequado. Queremos alianças, mas as alianças têm que ter um limite."
Ø O que dizem os deputados que adiaram votação sobre a prisão de
Chiquinho Brazão
A Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara adiou a votação do parecer sobre a
prisão preventiva do deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ),
apontado pela Polícia Federal (PF) como um dos mandantes da execução da
vereadora Marielle Franco, em 2018. O relatório do deputado Darci de Matos
(PSD-SC) é favorável à manutenção da prisão. Como os deputados Gilson Marques
(Novo-SC), Roberto Duarte (Republicanos-AC) e Fausto Pinato (PP-SP) pediram
vista, o parecer será votado em abril.
Na prática, o pedido
dos três parlamentares adia em duas sessões da CCJ a votação do parecer.
Aprovado na CCJ, o relatório segue para o plenário da Casa, onde deve obter ao
menos 257 votos que autorizem a prisão do parlamentar.
Ao Estadão, os
deputados afirmam que o pedido não se dá pelo mérito do caso Marielle, e sim
por razões regimentais. Para os deputados, não houve tempo hábil para a análise
do relatório da PF. Segundo os três, a Câmara não precisa agir imediatamente,
pois Chiquinho Brazão já está preso. A aprovação da CCJ a toque de caixa,
afirmam os parlamentares, poderia abrir margem para a defesa de Brazão alegar
que garantias processuais não foram seguidas. Veja abaixo o que dizem os
parlamentares.
·
Roberto Duarte (Republicanos-AC)
Roberto Duarte disse
que não houve tempo hábil para a apreciação do processo. Segundo o deputado,
até terça-feira, 26, peças essenciais para a análise do caso, como o relatório
da PF e os mandados que autorizaram as medidas cautelares do domingo, 24, ainda
não haviam sido disponibilizadas no sistema eletrônico da CCJ.
Além disso, Duarte
afirmou que o rito adotado pode estar sendo "problemático" sob o
aspecto da tipologia penal, ou seja, o crime que está sendo atribuído a Brazão.
Segundo o deputado, se a acusação associada ao foro privilegiado for a de
obstrução de justiça, não há amparo legal para a detenção, pois, segundo a
Constituição, parlamentares só podem ser presos em flagrante ou por crimes
inafiançáveis.
"Com a máxima
vênia ao STF, nem a Constituição, nem a legislação por ela recepcionada
entendem o crime de obstrução de Justiça como crime inafiançável", diz
Duarte. "Esse tipo de falha pode derrubar um inquérito bem fundamentado, e
precisamos agir tecnicamente", completa o deputado.
·
Gilson Marques (Novo-SC)
Para Gilson Marques, o
tempo corre em desfavor de Chiquinho Brazão, preso preventivamente - por tempo
indeterminado - em decisão já referendada pela Primeira Turma do STF. "Não
tenho sensibilidade nenhuma em termos de agilizar o processo", disse.
"Pedindo vista, você atrasa a análise, que, aliás, precisa ser feita com
calma", disse.
Para Gilson, uma
votação apressada é de interesse de Brazão, ao passo que, nessa marcha, a
defesa poderia argumentar que nem todas as garantias processuais foram
cumpridas. "Se fosse votado ontem, a toque de caixa, sem apresentar os
documentos necessários e sem análise, a primeira coisa que os advogados iam
fazer é alegar cerceamento da ampla defesa", afirmou.
·
Fausto Pinato (PP-SP)
Fausto Pinato afirmou
que a semana já teria os trabalhos encurtados por ter o feriado da Semana
Santa, com os deputados retornando às bases. A abreviação dos trabalhos na Casa
acabou apressando a análise da CCJ sobre o caso e, segundo Pinato, o parecer de
Darci de Matos não estava pronto para ir ao plenário. "Se eles colocam
para votar, do jeito que estava ali, poderia perder a votação", afirmou.
Segundo a PF, o caso
Marielle foi "sabotado" durante anos por envolvidos que estavam em
posições de comando na Polícia Civil do Rio de Janeiro, e a PF passou, em 2023,
a auxiliar o caso, com a abertura de inquérito. Para Pinato, não há razão para
liquidar em um único dia um caso que demandou tanto tempo de investigação, até
mesmo pela prisão preventiva já estar em vigor. "(A investigação da PF)
demorou um ano e pouco. Por que temos que julgar no dia, passando por cima do
regimento?", disse o deputado.
·
Assessoria do deputado diz que prisão é
arbitrária
A assessoria do
deputado Chiquinho Brazão afirmou que o parlamentar é inocente e a prisão é
arbitrária. "É estarrecedor que o deputado federal Chiquinho Brazão, um
cidadão inocente e um parlamentar no exercício de seu mandato, tenha sido preso
de forma arbitrária em pleno domingo", disse assessoria por nota,
divulgada pela Agência Brasil.
"O próprio
relatório policial confessa a mais absoluta ausência de provas contra o
deputado. Além de altamente desnecessária, visto que o deputado sempre esteve à
disposição das autoridades, a medida é absurda e se baseia apenas em presunções
e nas declarações de um criminoso confesso que busca diminuir sua pena",
afirmou.
Fonte: Por João Filho,
em The Intercept/FolhaPress/Agencia Estado
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