terça-feira, 30 de abril de 2024

Feminicídio infantil, um mal endêmico na América Latina

Apesar da maior conscientização sobre igualdade de gênero, feminicídios persistem no continente, vitimando também adolescentes.Há alguns dias, a sociedade mexicana foi abalada pelo esfaqueamento de uma estudante de 13 anos no distrito de Iztapalapa, na capital do país. As autoridades classificaram o caso como tentativa de feminicídio, depois que a menina sobreviveu ao ataque do ex-namorado, também adolescente, segundo informado pela família da vítima nas redes sociais. O garoto de 14 anos, que havia sido detido, foi liberado sob a tutela dos pais, conforme prevê a lei mexicana.

Assim como ocorre com mulheres adultas, meninas e adolescentes que são assassinadas por motivações misóginas também têm seus casos classificados como feminicídio. “Na verdade, o feminicídio infantil é frequentemente tido como o assassinato de meninas menores de idade por causa de seu gênero”, afirma Daniela Castro, acadêmica da Unidade de Economia Política do Desenvolvimento da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).

Diretora da fundação colombiana Justiça Para Todas, María Vega explica que o feminicídio é uma “forma extrema de violência” e “dominação”, perpetrada em “violação flagrante dos direitos das mulheres e meninas”.

•        Fenômeno persiste, mas faltam dados precisos

Os casos de violência contra o gênero feminino não são isolados, mas existem aos milhares na América Latina.

“As informações disponíveis mostram a persistência do feminicídio, apesar da maior conscientização pública, dos avanços na medição dos casos e da resposta do Estado”, diz o último boletim publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Segundo o relatório, em 2022, pelo menos 4.050 mulheres (4.004 na América Latina e 46 no Caribe) de 26 países da região foram vítimas de feminicídio. O Brasil lidera a lista em números absolutos (ver gráfico), mas é Honduras que tem a taxa mais alta. Esses números, no entanto, não são comparáveis com os dos outros anos devido a mudanças no registro de casos em alguns países, alerta a Cepal, o que afeta a interpretação do número real de feminicídios. O mesmo acontece com os números sobre o feminicídio infantil.

“Nem todos os países informam o número de vítimas de feminicídio desagregado por faixa etária, o que impede uma análise exaustiva desse fenômeno”, disse Ana Güezmes, diretora da Divisão de Assuntos de Gênero da Cepal.

Com base nesse estudo, oito países (El Salvador, Panamá, Nicarágua, Costa Rica, Paraguai, Guatemala, Chile e Uruguai) contabilizaram 310 vítimas de feminicídio, 13 das quais tinham entre 0 e 14 anos de idade. A Guatemala registrou 6 vítimas nessa faixa etária, seguida pelo Uruguai, com 4, e pelo Panamá, com 2.

Por outro lado, destaca-se a faixa etária de 15 a 29 anos, com 107 vítimas entre esses oito países, sendo Guatemala, Paraguai, El Salvador e Chile as nações com o maior número de vítimas.

No grupo formado por Argentina, Colômbia, Equador e Peru – que utilizam uma faixa etária diferente para medir os feminicídios – 41 meninas e adolescentes entre 0 e 18 anos foram vítimas desse tipo de homicídio em 2022.

Prisão preventiva como último recurso para menores infratores

O caso da estudante de Iztapalapa, assim como outros na região, despertou atenção para o arcabouço legal aplicado a casos de menores de idade culpados de feminicídio.

De acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o próprio marco da ONU sobre Direitos da Criança, menores de 18 anos devem ser considerados inimputáveis – isentos de penas de prisão. Assim, mesmo após um crime de feminicídio, esse jovens devem receber medidas alternativas, como a custódia permanente ou a alocação do menor com uma família.

“Somente como último recurso, e a curto prazo, a prisão preventiva seria aplicada”, disse à DW Miguel Barboza, pesquisador sênior do Programa de Estado de Direito da Fundação Konrad Adenauer para a América Latina.

Barboza pondera, porém, que nem todos os sistemas de justiça criminal da América Latina operam segundo esse entendimento – algo que ele considera “bastante problemático”.

Crítica semelhante é feita por Amalia Alarcón, gerente regional da ONG Plan International: “A teoria diz que a justiça juvenil deve ter um enfoque de reabilitação, com foco na reintegração da criança que comete o crime, mas isso não acontece nos sistemas juvenis na região.”

“Mesmo assim, houve um progresso muito grande, como medidas alternativas à prisão preventiva, determinação de padrões de comportamento e fornecimento de serviços psicológicos”, pondera Barboza.

Segundo o pesquisador, o problema é que nem todos os países tipificam o feminicídio da mesma forma e que há, inclusive, “resistências” e “desconhecimento” por parte das instituições.

De acordo com a Cepal, o crime de feminicídio é previsto por lei em 18 países da América Latina, dos quais 13 têm leis abrangentes para lidar com esse tipo de violência.

No Brasil, a lei 13.104/15, também conhecida como Lei do Feminicídio, foi publicada em 9 de março de 2015, incluindo no Código Penal o feminicídio como uma nova modalidade de homicídio qualificado. Além disso, esse tipo de crime foi incluído na Lei dos Crimes Hediondos. Já a Lei Maria da Penha, de 2006, prevê punição para atos de violência doméstica contra a mulher e cria mecanismos para coibir esse tipo de crime.

•        Ação precoce

Para Castro, da UNAM, o combate ao feminicídio passa necessariamente pela prevenção, “com políticas para erradicar a violência de gênero, incluindo programas educacionais e campanhas de conscientização”.

“O feminicídio é um crime cuja frequência vai aumentar, especialmente levando-se em conta as características das novas gerações, com as novas tecnologias”, avalia Barboza, da Fundação Konrad Adenauer. “É um crime que não é menos grave, mas também não é um crime que faz menos parte do acervo de crimes tipificados em nível regional.”

•        Pais e mães tóxicos usam manipulação emocional e depreciação com filhos

Ao mesmo tempo em que se populariza a educação positiva entre novos pais e mães nas redes sociais, mais filhos relatam que tiveram familiares "tóxicos" durante sua criação.

O termo "tóxico", que foi escolhido como palavra do ano pelo dicionário Oxford em 2018, é usado de forma popular para identificar situações de violência psicológica em diversos relacionamentos, inclusive o parental.

Nele, xingamentos, gritos, manipulação emocional, falas depreciativas e chantagens são comuns, segundo a psicóloga da família Manuela Moura, professora do Cefac Bahia (Centro de Estudos da Família da Bahia).

"Durante muito tempo a gente encarou agressão familiar como algo que tinha cunho físico. Depois a gente percebeu que existem outras modalidades de violência que não deixam marcas visíveis", diz a psicóloga.

Segundo ela, muitas vezes as crianças submetidas a esse tipo de criação se tornam adultos que não acreditam que podem ser amados.

Ainda na infância, há relatos de depressão desenvolvida em meio à violência familiar, afirma a psicóloga Belinda Mandelbaum, coordenadora do Lefam (Laboratório de Estudos da Família), da USP (Universidade de São Paulo).

A criança não identifica a violência psicológica por não ser explícita, diz Moura. "O problema é que o sujeito realmente acredita que ele vale pouco. Ele só vai perceber [a violência] quando tiver condição de enxergar os pais como pessoas com qualidades e defeitos, o que geralmente ocorre na adolescência".

COMO IDENTIFICAR UM PAI OU MÃE TÓXICOS

Nem toda desavença se enquadra como violência familiar. Alguns casos podem ser mal-estar provocados pelas diferenças entre as pessoas, como é comum em todos os tipos de relacionamento.

Um alerta que pode diferenciar algo natural de um ambiente tóxico, porém, é o medo, diz a psicóloga Moura.

"Medo de falar, de dizer o que pensa, de sustentar suas opiniões, de se vestir como quer", afirma. "Ou quando você se vê induzido a fazer algo que não quer, em nome da garantia do amor da figura parental".

A OMS (Organização Mundial da Saúde) define violência intrafamiliar como "toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outra pessoa da família".

Já a violência psicológica é definida como "toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobrança exagerada, punições humilhantes e utilização da pessoa para atender às necessidades psíquicas de outrem".

QUAL A HORA DE SE AFASTAR?

Antes de pensar em cortar relações, as especialistas recomendam que seja avaliado se a situação familiar é uma dinâmica constante ou um momento específico que ela está atravessando -como luto ou separação. No segundo caso, aconselham esperar o período passar.

Caso seja constante e os pais não estejam abertos a uma reparação, pode ser a hora de se afastar, diz Moura. "Em alguns momentos, a gente precisa entender que não dá. O amor não é garantido só porque é pai ou mãe".

Ela alerta, porém, que muitas vezes a pessoa pode até mudar de país, mas a dinâmica familiar continua com ela. "Não necessariamente a distância física garante proteção, porque você passou anos da sua vida se relacionando dessa maneira", diz a professora do CEFAC.

Segundo ela, a ruptura com o ambiente familiar tóxico está mais no processo de autoconhecimento do que no afastamento físico, apesar de a distância diminuir o contato com o sofrimento.

É POSSÍVEL HAVER RECONCILIAÇÃO?

Depois de afastamento e processo de autoconhecimento, é possível se reaproximar de pais considerados "tóxicos", mas isso não depende apenas do filho.

"Isso está muito direcionado à capacidade de reparação da família, do familiar perceber e refazer sua posição. Essa pessoa também precisa mudar. O filho se reaproxima se aquele outro não for o mesmo que era", diz Moura.

Mandelbaum afirma que os agressores também precisam de tratamento, porque muitas vezes foram vítimas na infância, e não devem ser demonizados.

 

Fonte: Revista Planeta

 

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