sábado, 27 de abril de 2024

Desenvolvimento de novas terapias para transtornos mentais esbarra na própria complexidade das condições

Nos últimos anos, a saúde mental assumiu um lugar de preocupação para diferentes atores do sistema de saúde – de gestores públicos ao RH de empresas. Isso porque estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que uma em cada oito pessoas vive com algum transtorno mental, totalizando quase 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo – a pandemia tratou de evidenciar ainda mais esse problema, desencadeando um aumento de 25% nos casos ansiedade e depressão, segundo a entidade.Mas, ao contrário de áreas da medicina como oncologia e doenças raras, que vivem um boom de novas soluções e tratamentos, as terapias para transtornos mentais não têm experimentado o mesmo nível de desenvolvimento.

A baixa disponibilidade de fármacos para o tratamento de transtornos psiquiátricos na comparação com outras condições foi destacada no “Plano de Ação Integral de Saúde Mental 2013-2030” produzido pela OMS. Embora reconheça a necessidade de explorar abordagens não farmacológicas, a entidade admite que essa lacuna impacta o tratamento adequado e o acesso à saúde daqueles pacientes que seriam beneficiados pelo uso de medicações.

“Nos últimos 15, 20 anos, tivemos pouca coisa realmente nova. Não que tenhamos parado de tentar, mas o desenvolvimento de uma nova substância é complexo e custoso”, argumenta Mario Rodrigues Louzã Neto, psiquiatra e coordenador do Programa Esquizofrenia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).

A carência de inovação no desenvolvimento de novas classes de medicamentos psiquiátricos foi rotulado até mesmo como um período de “abstinência” em artigo publicado em 2022 na renomada revista científica Science. A publicação aponta que um dos principais motivos para o aparente desinteresse de investimento em pesquisas de novas moléculas com foco na psiquiatria é a complexidade por trás da fisiopatologia dos transtornos. “A linguagem da doença psiquiátrica são os sintomas, a linguagem da farmacologia são as moléculas e, neste momento, não temos nenhum material que traduza esses sintomas em moléculas e que possa nos ajudar a combinar o medicamento certo com o paciente certo”, diz o texto.

<<<< Descoberta de genes e biomarcadores

Em outras áreas da medicina, a descoberta de biomarcadores para determinadas condições de saúde tem ajudado a ciência a desenvolver moléculas com atuações específicas. Na psiquiatria, de acordo com um artigo de revisão publicado na revista Front Psychiatry, diversos estudos nos últimos anos têm associado uma gama de genes a diversos transtornos psiquiátricos. No entanto, ainda não se sabe o papel exato de cada gene nos quadros psiquiátricos, uma vez que a natureza de tais condições é multifatorial e inclui fatores biopsicossociais.

“O cérebro é um órgão muito complexo, que vai se construindo ao longo do tempo e é extremamente plástico. Isso faz com que seja um órgão muito sujeito ao ambiente”, detalha Louzã Neto. “Na esquizofrenia, por exemplo, calculamos que há cerca de 300 genes envolvidos e cada microgene dá uma pequena chance de risco maior para esquizofrenia, mas ele sozinho não é capaz disso. Por isso, às vezes, pessoas que viveram exatamente as mesmas situações, desenvolvem condições diferentes, ou uma desenvolve e a outra, não.”

A evolução tecnológica em outras áreas, como os exames de imagem, que estão processando resoluções cada vez maior, tem contribuído na busca por novos entendimentos. Contudo, ainda há uma limitação do que é possível interpretar a partir dos resultados. Isso porque o campo observado é limitado; além disso, não é possível ignorar que, mesmo ao observar uma área específica do cérebro, as conexões neuronais envolvidas na manifestação de um transtorno mental são inúmeras.

O médico psiquiatra Alfredo Maluf Neto, coordenador da Psiquiatria do Hospital Israelita Albert Einstein, pontua que, no geral, a psicofarmacologia consiste em quatro classes de medicamentos: antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos e estabilizadores de humor. Hoje, segundo ele, já é comum ver um uso mais diversificado dessas classes entre diferentes condições psiquiátricas justamente pelo avanço da ciência. “Tudo isso é baseado em novos entendimentos, graças ao avanço de tecnologias como ressonância magnética, o que nos permite também novas abordagens terapêuticas utilizando os medicamentos já existentes.”

<<<< Substâncias psicoativas como terapias para transtornos mentais

Uma tendência que vem sendo observada nos últimos anos é o retorno à pesquisa sobre o efeito de substâncias psicoativas no tratamento de transtornos mentais. Dos anos 1990 em diante, o interesse voltou a crescer, muito graças ao trabalho desenvolvido pelo Centro Johns Hopkins para Pesquisa Psicodélica e da Consciência, como salientou outro artigo publicado na revista Frontiers in Psychology.

Nos últimos anos, por exemplo, o centro publicou diversos estudos apontando resultados positivos do uso da psilocibina, encontrada em uma classe de cogumelos alucinógenos, no tratamento de transtornos como depressão de difícil tratamento, ansiedade e abuso de substâncias. Em 2024, a Food and Drugs Administration (FDA), agência reguladora americana concedeu a designação de terapia inovadora para um análogo à psilocibina.

Outro exemplo é a ketamina, substância muito conhecida pela medicina por ser utilizada como anestésico desde a década de 1960, mas que ganhou força recentemente após disseminação de uso para transtornos mentais nos Estados Unidos. No Brasil, o uso do medicamento também tem se popularizado nos consultórios psiquiátricos após a aprovação pela Anvisa, em 2020, do cloridrato de escetamina, terapia desenvolvida a partir da ketamina com aplicação intranasal.

Para Louzã, o avanço das substâncias psicoativas como um todo é interessante, mas deve ser avaliado com cautela e com foco na produção de um volume maior de evidências científicas. “Precisamos investigar mais, produzir estudos de qualidade antes de podermos de fato indicar essa abordagem. É uma área em aberto para se investigar com seriedade, não é uma coisa assim tão trivial.”

<<<< Psiquiatria de precisão como aliada do acesso

Além do investimento em pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de novas intervenções medicamentosas para o tratamento de doenças psiquiátricas, o futuro da psicofarmacologia passa também pelos esforços redobrados para alcançar a era da precisão através da genômica. “O futuro é a genética e esse olhar para uma psiquiatria de precisão. Temos que nos dedicar para ampliar cada vez mais essa compreensão, para que seja possível praticar essa medicina personalizada também na psiquiatria. Isso levanta algumas discussões éticas, bioéticas, mas temos que olhar para essa direção”, defende Maluf.

Aprimorar e repensar os métodos e critérios de diagnóstico é outro ponto de destaque. A psiquiatria social, que traz um olhar mais transversal para o paciente a partir do contexto em que este indivíduo está inserido, também deve ganhar destaque e moldar a maneira como os transtornos mentais são abordados e tratados.

“No Brasil mesmo nós temos um desafio muito grande de acesso psiquiátrico, porque somos um país com muitas iniquidades sociais. Às vezes, não há psiquiatra disponível na Unidade Básica de Saúde (UBS), então a pessoa precisa ter acesso a um médico da família que, por sua vez, deve estar preparado para fazer esse acolhimento”, avalia o coordenador de psiquiatria do Einstein.

Segundo ele, é preciso olhar para os nossos problemas sociais a partir de uma perspectiva de prevenção e dialogar sobre temas como violência, abuso de substâncias e bullying. “Tudo isso, quando não conversado, tende a se transformar em adoecimento mental.”

¨      Os passos do Brasil para tornar saúde mental uma pauta prioritária

A saúde mental, que por muito tempo foi cercada de tabu, virou um dos principais temas de debate na sociedade. Mas apesar das inúmeras iniciativas nos últimos anos que buscam melhorar o cenário, diversos estudos ainda alertam para um aumento. Em 2023, um relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) chegou a afirmar que a pauta deveria estar no topo da agenda política pós-Covid-19. E, no Brasil, levantamento da Ipsos indicou que cinco em cada dez brasileiros acreditam que a saúde mental é o principal problema do país em termos de bem-estar da população.

A pauta ganha destaque inclusive em Brasília, com mais projetos voltados para o tema. João Mendes, coordenador de Desinstitucionalização e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (DESMAD/MS) do Ministério da Saúde, disse ao Futuro da Saúde que a nova gestão tem tratado o tema como prioridade: “Existe ao menos um serviço de saúde mental em 75% dos municípios elegíveis para serviços especializados. A retomada da política de saúde mental, a partir de 2023, está impulsionando a expansão e a interiorização dos serviços, mas ainda há alguns vazios assistenciais.”

O DESMAD integra a Secretaria da Atenção Especializada do Ministério da Saúde e ficou responsável pela retomada da habilitação de novos serviços e por iniciar estudos para a recomposição do custeio dessas atividades. Desde sua posse no início de 2023, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, trouxe em seu discurso que o cuidado com saúde mental seria um dos assuntos mais importantes de sua gestão no curto prazo.

De lá para cá algumas ações avançaram, como a reabertura do sistema de habilitação de serviços do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que havia sido interrompido em 2019, a recomposição orçamentária da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a respectiva inclusão no novo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), além da retomada da Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada pela última vez em 2010.

A pauta também é defendida pelo deputado federal Leo Prates (PDT-BA) que assumiu a coordenadoria de Atenção Primária da Frente Parlamentar Mista pela Promoção da Saúde Mental que trabalha na criação de uma agenda prioritária sobre o tema no Congresso. Conforme o parlamentar, “as decisões de ampliar os CAPS mostram que há uma preocupação da atual gestão em priorizar o cuidado da saúde mental na pauta de saúde pública”.

·        Participação social na Política Nacional de Saúde Mental

Embora a saúde mental esteja em pauta, sobretudo após os efeitos da pandemia, para Filipe Asth, doutor em Políticas Públicas e secretário executivo da Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), essa temática é capturada pelo viés do diagnóstico, pautada a partir da doença, sem considerar especificidades individuais e de contexto:

“Entendemos que não dá pra falar em saúde mental sem falar em direitos humanos e condições sociais básicas, como emprego e acesso à cultura e lazer. É urgente ampliar a discussão nessa direção. Saúde é mais do que reduzir vulnerabilidades.” 

O IEPS tem trabalhado para a construção de políticas públicas sobre o tema mais alinhadas às necessidades da população. Em 2023, Asth foi convidado para exercer a Secretaria Executiva da Frente Parlamentar, ficando responsável pela articulação entre os parlamentares, construção e implementação da Agenda Legislativa e pela elaboração de produções técnicas que subsidiam as decisões em relação aos assuntos debatidos. Além disso, o IEPS subsidia ações de comunicação e realização de eventos, tais como o lançamento da Frente, reuniões de planejamento estratégico e com o Conselho Consultivo.

Quem também atua neste cenário é o Instituto Cactus, que busca qualificar o debate em torno de políticas públicas de saúde mental. Nesse sentido, trabalha para dar mais centralidade ao tema tanto no Congresso Nacional quanto na Esplanada dos Ministérios. A instituição participou das discussões iniciais de construção e desenho da Frente Parlamentar junto ao gabinete da Deputada Tabata Amaral (PSB/SP) e, atualmente, é membro do Conselho Consultivo.

Para Silvia Molinar, secretária-executiva do Cactus, o diálogo é positivo não apenas por sensibilizar os parlamentares sobre a importância do tema e dar mais voz para a pauta, mas também para a sociedade como um todo, uma vez que as iniciativas ali apoiadas, se aprovadas, podem gerar impacto real para a população.

Porém, para que o tema ganhe relevância, os recursos orçamentários são importantes, ao mesmo tempo que são um obstáculo, pontua Filipe Asth: “O principal desafio é a limitação do orçamento, que é central para a implementação dos serviços da RAPS, para que seja, de fato, promovido o acolhimento em saúde necessário nas políticas de saúde mental”. Dados da OPAS apontam que, na região da América Latina e no Caribe, os recursos destinados à saúde mental representam, em média, apenas 2% do orçamento total de saúde. 

Segundo João Mendes, o Ministério da Saúde recompôs o orçamento da política de saúde mental: “Comparado com 2022, este ano há previsão de investimento de novos R$ 425 milhões anuais no custeio da RAPS. Esse recurso é referente à soma em que, por um lado, ocorreu a recomposição orçamentária de 27% no custeio dos serviços existentes e, por outro lado, ocorreu habilitação de novos serviços que passaram a ser custeados com orçamento federal”, explica.

O coordenador do DESMAD disse ainda que há previsão de investir mais de R$ 400 milhões até o final do PAC 3 e que essas ações “fortalecem a RAPS tanto com a expansão do número de serviços quanto com a otimização das estruturas existentes”.

·        Ações nacionais em prol da saúde mental

Aprovado no fim de 2023, a Política Nacional de Assistência Psicossocial nas Comunidades Escolares foi instituída em 16 de janeiro pela Lei nº 14.819/2024. A iniciativa do Senador Alessandro Vieira (MDB/SE), que contou com o apoio técnico do Instituto Cactus e do IEPS, visa estabelecer princípios e diretrizes para a construção de ambientes escolares mais saudáveis, com mecanismos estruturais para a promoção da saúde mental de toda a comunidade. O texto propõe uma atuação integrada entre diversos setores, organizando e potencializando o que já existe: o Programa Saúde na Escola (PSE), principal executor da política, a RAPS e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Especialistas ouvidos pela reportagem dizem que a aprovação da política foi uma resposta importante às situações de violência extrema ocorridas no contexto das escolas brasileiras nos últimos tempos. “Os episódios chamaram a atenção da sociedade exigindo atitudes de todas as esferas governamentais e não governamentais”, defende Filipe Asth.

O próximo passo é a implementação da Lei, que será uma tarefa desafiadora de articulação entre os Ministérios da Saúde e da Educação para potencializar os caminhos já existentes para o acolhimento da comunidade escolar. Para Silvia Molinar, é necessário pensar na regulamentação e na execução da proposta, além de definir as atividades: “Este processo deve considerar as particularidades de cada território para não definir regras que inviabilizem a implementação por parte dos estados – a etapa seguinte do ciclo de políticas públicas”.

O deputado federal Léo Prates (PDT-BA) explica que, juntamente com a Frente Parlamentar para Promoção da Saúde Mental, pretende apoiar as decisões do Comissão Intergestores Tripartite em um ambiente de cooperação mútua na promoção dos cuidados aos pacientes, além de sugerir políticas públicas que enriqueçam o debate:

“Esse plano, cuja divulgação caberá às escolas, deverá conter a descrição das ações e atividades a serem desenvolvidas no ano letivo, com metas; a estratégia de execução dessas ações e atividades, com previsão de equipes; e a distribuição e o detalhamento de competências dos atores envolvidos na consecução do plano”, diz.

Além disso, o parlamentar acredita ser importante conscientizar a sociedade de que há alternativas terapêuticas em curso que ajudam no tratamento de transtornos mentais, baseadas no acolhimento e na atenção, que podem substituir as internações. “A criação de fóruns de debate entre profissionais de saúde e gestores públicos é um dos primeiros passos para dar luz ao assunto”, comenta. 

Mais recentemente, outra ação, via lei 14.831, instituiu o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental. O projeto visa a contribuir para os esforços do país na promoção da saúde mental ao valorizar e reconhecer as empresas que executam ações na área.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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