Como a saúde ajudou a derrubar a ditadura
“Saúde é democracia”.
A concepção não é estranha para os familiarizados com a trajetória do movimento
sanitário no Brasil, em especial nas décadas de 1970 e 1980. Porém, em tempos
de alta do negacionismo e do revisionismo histórico, se a própria memória do
golpe de 1º de abril de 1964 e da ditadura militar tem sido negada (ou proibida
de ser lembrada), ainda menos conhecida pela população é a contribuição da
Saúde para enterrar esse período de arbítrio na vida dos brasileiros.
Por um lado, o campo
da Saúde deu uma destacada contribuição para a queda da ditadura, com o
envolvimento de muitos de seus melhores quadros nas ações de oposição. Mas essa
não foi a única via. A redemocratização, com sua explosão de participação
popular na política, influiu na gestação de uma nova concepção de Saúde para o
Brasil, a exemplo de episódios como a 8ª Conferência Nacional de Saúde. Não à
toa, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) é considerado uma das coroações
do processo que desembocou na Constituição de 1988 e na Nova República.
Ouvimos depoimentos de
três profissionais da saúde, de locais diferentes do país, que participaram
ativamente dessa mobilização histórica – à época, como pesquisadores,
estudantes ou sindicalistas. São o luso-carioca José Gomes Temporão,
sanitarista e ex-ministro da Saúde, a baiana Julieta Palmeira, assessora
da Finep e ex-presidente da Bahiafarma, e a cearense Teresinha Braga,
ex-presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará.
O boletim de Outra
Saúde deste 1º de abril se dedica a um retrato das deficiências graves
da saúde brasileira na ditadura – que não podem ser esquecidas – e, depois, das
batalhas travadas para criar e fortalecer o SUS. Compartilhamos agora memórias
e informações fornecidas pelos convidados sobre as lutas gêmeas por uma
democracia para os brasileiros e pela estruturação do maior sistema público,
gratuito e universal de Saúde do mundo: uma contribuição para a história do
binômio “Saúde é democracia” no Brasil.
·
Como funcionava a saúde antes do SUS?
Durante a maior parte
da ditadura, “saúde era para quem podia pagar”, resume Julieta Palmeira. Mas o
cenário não havia sido inventado pelos governantes fardados: desde os
primórdios da história do Brasil, assim se organizou a Saúde no país.
Em linhas bastante
gerais, é possível dizer que os mais ricos se serviam da medicina privada e aos
mais pobres, em caso de doença ou acidente, restava buscar socorro nas Santas
Casas e instituições filantrópicas – sempre lotadas, e muitas vezes o atendimento
não era garantido para os chamados “indigentes”. Não havia um sistema nacional
que articulasse os hospitais públicos já existentes. Eram enormes as taxas de
mortalidade infantil, óbitos por doenças evitáveis e de incidência dos mais
diversos problemas de saúde entre a população.
A pouca assistência
que vinha do Estado era organizada através da medicina previdenciária.
Contudo, como o próprio nome já sugere, “só tinham esse direito os
trabalhadores com carteira assinada”, ou seja, que contribuíam com a
Previdência Social, explica Palmeira. Mesmo essa área era profundamente
fragmentada, pois era composta por pelo menos uma dezena de institutos e caixas
de aposentadorias, voltados para diferentes categorias da classe trabalhadora,
que vinham sendo fundados desde os anos 1930. Contraditoriamente, essas
entidades não respondiam e nem se ligavam ao Ministério da Saúde, criado em
1953.
Só em meados dos anos
1970 é que se consolidou uma semente de unificação do sistema: foi quando
surgiu o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, o
INAMPS.
O ex-ministro Temporão
chegou a trabalhar no órgão e lembra que, já no final da mesma década, “ele
começou a entrar em uma crise profunda, com denúncias de fraude, mau
atendimento e longas filas”. Além disso, a autarquia unificou os institutos
previdenciários anteriormente existentes, mas seguia restringindo o direito ao
atendimento médico aos trabalhadores com carteira assinada.
Para sustentar esse
complicado sistema, que na prática dividia a população em segmentos com
diferentes níveis de acesso à Saúde, “havia um arcabouço de ideias que não
instituíam a saúde como direito do cidadão ou dever do Estado”, sintetiza
Palmeira. Quem tinha outras visões era escanteado: no episódio do Massacre de Manguinhos, em 1º de
abril de 1970, a ditadura aposentou compulsoriamente 14% de todo o quadro de
pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por considerar o instituto um
“foco de ideias subversivas”, nas palavras do então Ministro da Saúde.
·
A saúde contra a ditadura
A situação de carência
na época era tal que, como lembrou Teresinha Braga, nos interiores, houve até
situações em que grupos de resistência armada à ditadura “se ligaram à
população por meio da atenção à saúde, ajudando a enfrentar os problemas”. É o
caso do “Doutor Juca”, médico e
militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que participou da Guerrilha do
Araguaia e conquistou a simpatia dos camponeses locais, entre outros motivos,
por prestar gratuitamente serviços de saúde que o Estado não oferecia naquela
região.
A opção de Juca pela
resistência ao regime também foi tomada por diversos outros profissionais da
saúde naquele tempo. Além dos que participaram de ações armadas, também houve
os que se dedicaram a articular a oposição entre a população das cidades por meio
da Saúde – ainda que, inicialmente, com passos de formiguinha.
Braga, que era aluna
da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) em meados dos
anos 1970, recorda-se que, em um contexto de proibição dos Centros Acadêmicos e
Diretórios Centrais de Estudantes, muitos estudantes com uma visão social se
dedicavam a “projetos de extensão universitária que faziam atendimentos em
bairros populares” de Fortaleza.
“Nessas iniciativas,
nós tínhamos planos de dar mais sentido à nossa atividade profissional e
responder à situação precária da saúde. Passamos a atender em locais cedidos
pelas associações de moradores, e até criamos uma Associação Interbairros, que
contribuiu para a retomada da organização do movimento comunitário”, diz ela.
Na mesma época, experiências similares ocorriam nas principais capitais do
país.
Além de projetos de
extensão como esses, outra forma de resistência que surgiu nas universidades
foi a produção de reflexões mais aprofundadas sobre os problemas da concepção
de Saúde que estruturava as ações da ditadura.
Esse foi o caminho que
trilhou José Gomes Temporão, então estudante da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Lá pelo quinto ano, em 1976, me
aproximei muito do Sérgio Arouca, do movimento de renovação médica e do Centro
Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes). Naquele ano, o Cebes passou a
publicar a revista Saúde em Debate, que começou a divulgar um
pensamento crítico, um pensamento médico-social sobre a saúde brasileira”, ele
conta.
“Ali, entramos na luta
pela construção de um novo sistema de Saúde no Brasil, que superasse as
desigualdades, iniquidades, centralizações e autoritarismos que vigiam antes do
SUS”, diz o sanitarista. Nas páginas daquele periódico, assim como em outros, surgiram
os questionamentos à lógica excludente, mas também antidemocrática, da Saúde
tal como era organizada na ditadura militar.
Questionava-se até
mesmo a própria concepção de Saúde em vigor. “Naquela época, a saúde era vista
como o não-adoecimento. Tudo era a partir da chave do adoecimento, diferente do
que se vê hoje, em que se pensa também nas medidas de prevenção, nas questões
sociais”, elucida Julieta Palmeira.
“Na esteira da Declaração de Alma-Ata, fomos
desenvolvendo propostas para o que viria a ser a atenção primária”, explica
Temporão, referindo-se ao histórico documento produzido a partir das conclusões
de uma Conferência promovida em 1978 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no
Cazaquistão soviético. “O exemplo de Cuba também teve muita importância ao
organizar seu sistema a partir da compreensão de que a Saúde precisa ser para
todos”, completa Teresinha.
Longe de se fechar nos
muros da academia, os pesquisadores que desenvolviam essas reflexões também se
envolviam com o movimento popular de oposição – o sanitarista Sérgio Arouca,
uma das mais destacadas lideranças dessa corrente de pensamento, era militante
do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois da vitória da Revolução
Sandinista, ele viveu alguns anos na Nicarágua, onde assessorou a implementação
de algumas de suas propostas pioneiras de programas sanitários.
“Quando nós fizemos um
encontro regional de experiências de medicina comunitária do Nordeste, vieram o
Sérgio Arouca e o Hésio Cordeiro”, recorda Teresinha Braga. Nos encontros e
simpósios promovidos às dezenas pelo pujante movimento estudantil da medicina,
como atividades acadêmicas mas também políticas, o trabalho prático dos jovens
que levavam Saúde à população desassistida recebia infusões da renovação
teórica que estava sendo promovida no Brasil.
·
Lutando para implementar a reforma
sanitária
A partir do início dos
anos 1980, o novo impulso de organização dos movimentos populares acelerou o
processo de desintegração do regime militar. Com isso, “na medida que a
resistência foi se ampliando e a ditadura foi se tornando politicamente
insustentável, o movimento de oposição já foi se desdobrando também em
um movimento pela reforma sanitária”, conta Julieta Palmeira, que na época
era aluna da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
A participação no
movimento era ampla, lembra Temporão. “Reunimos acadêmicos, estudantes,
pesquisadores, sanitaristas, epidemiologistas, médicos, o Cebes, o movimento de
bairros, o movimento sindical e os partidos políticos” que estavam surgindo com
a Abertura, cita o médico.
Essa frente levantava
a bandeira “de uma nova saúde, radicalmente distinta da que existia até então,
totalmente centrada na atenção especializada e hospitalar, com um Ministério da
Saúde com baixa capacidade de intervenção, desvinculado das ações do Inamps”.
No lugar disso, “apresentávamos para o debate novas propostas,
como universalidade, participação da população no controle das políticas,
equidade, descentralização e fortalecimento da capacidade pública da oferta de
serviços de saúde”, diz o carioca.
Um importante registro
dessas ideias está em A questão democrática na área da saúde (1976), documento assinado por
Hésio Cordeiro, José Luis Fiori e Reinaldo Guimarães que “acabou se
transformando num verdadeiro manifesto do movimento sanitário brasileiro”.
Além de trazer em seu
nome a concepção que desembocaria no dístico “Saúde é democracia”, o escrito
foi o primeiro a propor, textualmente, a criação de um sistema único de saúde
no Brasil. Para Fiori, as inspirações da proposta eram o National
Health System (NHS) do Reino Unido, implementado em 1945 pelo governo
trabalhista de Clement Attlee, e a reforma sanitária da Itália, encabeçada
por Giovanni Berlinguer, um militante proeminente do Partido Comunista Italiano
(PCI) – que tinha como secretário-geral o seu irmão, Enrico Berlinguer.
Por meio da luta por
essas reivindicações, “a busca pela democracia encontrou uma expressão concreta
na área da Saúde”, aponta Palmeira. Assim, nas prefeituras e governos estaduais
conquistados pela oposição a partir das eleições de 1982, as ideias da reforma
sanitária foram sendo implementadas.
De diferentes formas,
cidades como Bauru, Campinas, Londrina, Montes Claros, Niterói e Santos fizeram
parte dessa “prova de fogo” das novas propostas. E elas passaram no teste: os
índices de mortalidade e de incidência de várias doenças entraram em queda,
além da ampliação da cobertura da população. Em um exemplo célebre, tendo como
secretário municipal de saúde David Capistrano Filho, à época líder de uma
dissidência paulista do PCB, Bauru zerou a incidência de cáries em crianças
menores de cinco anos.
Impulsionado pelos
êxitos, o movimento sanitarista se lançou a uma tarefa ainda mais desafiadora:
nacionalizar a abrangência dessa visão renovada da Saúde Pública. Depois de
afastar de vez os generais da Presidência da República, em 1985, essa
empreitada se tornou uma prioridade do processo de redemocratização, trazendo
uma grande participação popular.
A 8ª Conferência
Nacional de Saúde, convocada em 1986, representou um ápice desse envolvimento
do povo organizado. Em contraste às anteriores, que só envolviam técnicos e
autoridades, a 8ª Conferência contou com a participação dos usuários do sistema
de saúde – isto é, a população em geral –, que interviu nos debates desde as
etapas locais até sua conclusão, realizada de 17 a 21 de março daquele ano, em
Brasília. Milhares de trabalhadores se envolveram nas discussões.
“Na 8ª Conferência
Nacional de Saúde, foi aprovada a criação de um Sistema Unificado e
Descentralizado de Saúde (SUDS)”, explica Teresinha Braga. Esse foi uma espécie
de antecessor do SUS, que acelerou a integração do Inamps, a medicina
previdenciária do tempo da ditadura, com as novas iniciativas municipais e
estaduais, rumo a um sistema único.
Em uma das mesas da
Conferência, Sérgio Arouca proferiu um discurso que sintetizou o espírito dos
trabalhos ali realizados em seu título: “Democracia é saúde”.
·
A criação do SUS, que mudou a face do
Brasil
Nesse cenário, as
discussões da Assembleia Constituinte de 1988, convocada para dar um novo
ordenamento institucional ao país depois do fim do regime ditatorial, se
encaminharam também para desenhar as diretrizes do que viria a ser o SUS.
“A saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Uma
rápida leitura dessas linhas do artigo 196 da Constituição
Federal, que abre a seção Da Saúde, não deixa dúvidas: nelas, estão contidas
várias bandeiras da reforma sanitária.
Os parlamentares
abraçaram essas pautas não apenas por sua eficácia, que já estava sendo
comprovada, mas pela envergadura cada vez mais ampla do movimento que as
defendia. A população já não aceitaria mais a Saúde como estava e já tinha em
mãos uma proposta alternativa. Entidades como o recém-fundado Conselho Nacional
de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), que tinha como primeiro
presidente o militante comunista e secretário da Saúde de Recife Paulo Dantas,
também compunham essa pressão. Para ajudar a dar corpo à nova legislação,
muitos sanitaristas trabalharam na Assembleia Constituinte.
Dois anos depois,
a Lei nº 8.080/1990 instituiu
de vez o Sistema Único de Saúde, regulamentando sua organização e seu
funcionamento, que os entrevistados consideram que mudou a face do país desde
então. Os múltiplos programas de vacinação com cobertura praticamente
universal, o volume colossal de cirurgias e transplantes realizados anualmente,
a implementação de postos de saúde nas regiões mais vulneráveis e de difícil
acesso e a criação de programas voltados à saúde de populações específicas como
os indígenas são todas conquistas que, em sua visão, seriam impossíveis sem um
sistema público, gratuito e de acesso universal como este.
Os dados estão aí para
comprovar o que postulam os convidados: desde então, mais de 100 milhões de
pessoas passaram a ser cobertas pela Saúde Pública, foram eliminadas doenças
como o sarampo e a pólio e taxas como a de mortalidade infantil caíram vertiginosamente.
“Foi um processo em
que saúde e democracia se encontraram num projeto civilizatório – ou
emancipatório, como dizia Sérgio Arouca – de equidade, fraternidade,
universalidade e de Saúde como direito, não como mercadoria”, define Temporão.
É verdade que também
houve – e há – muitos desafios. “O problema cotidiano do subfinanciamento e o
próprio fato de que ainda se admite, no Brasil, a saúde privada” são alguns
deles, aponta Teresinha. A ainda insuficiente valorização dos profissionais de saúde
e a falta de maior autonomia na produção de medicamentos também são gargalos
históricos a serem resolvidos, complementa Julieta Palmeira.
Ainda assim, há uma
certeza de que não podemos abrir mão do SUS, como quiseram governos como o de
Jair Bolsonaro, que ensaiou sua substituição por vouchers na
saúde privada. “Antes da criação do SUS, até pela situação da democracia
brasileira na época, nós tínhamos uma visão muito atrasada, medíocre, do que
era a Saúde, e isso se expressava nas ações do Estado brasileiro”, diz Julieta.
Por isso, eles
apontam, também não é mais possível abrir mão da democracia que foi
conquistada. Não é coincidência que os nostálgicos da ditadura militar sejam
hoje os principais inimigos do caráter público da Saúde – e é preciso lembrar
constantemente, como aparentam não querer até mesmo autoridades do Governo Federal,
que a ditadura significou muito arbítrio, mas também miséria generalizada e
abandono da população pelo Estado.
“Você precisa da
democracia para fazer avançar a universalização, a equidade, a redução das
desigualdades regionais e os determinantes sociais da saúde. Ao ampliar o
enfoque estrutural sobre a saúde, você estará sempre fortalecendo a
democracia”, conclui Temporão.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outra Saúde
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