sábado, 27 de abril de 2024

Carlos Hortmann: 50 anos da última revolução socialista

Não há outra forma de começar esse texto: existe um antes e um depois do 25 de abril de 1974 na história de Portugal. É o momento mais importante da formação histórico-social lusitana, pois, é um processo que representou o fim dos 48 anos de ditadura, o fim do Estado Novo fascista, o fim dos 13 anos de guerra colonial e sobretudo o fim do último império colonial (que durou quase cinco séculos). Um momento de libertação do povo trabalhador português e também uma oportunidade de rutura com todo esse passado.

O ditador fascista, António Oliveira Salazar, buscou fazer de tudo para evitar que a avalanche das lutas de descolonização e libertação nacional, do pós-Segunda Guerra Mundial, chegasse até as colónias portugueses, que artificialmente e juridicamente passaram a ser denominadas, a partir de 1951, de territórios “ultramarinos” de Portugal, até acabou com o “Estatuto do Indigenato” – a forma jurídica que marcava socialmente as pessoas (os indígenas, os assimilados e os brancos) e regulamentava o trabalho escravo e servil – o racismo e a segregação em forma de lei.

Por isso, 13 anos antes do 25 de Abril, o ditador colonial-fascista tomou a decisão iniciar uma longa e desgastante guerra contra os povos que lutavam contra a violência, opressão e exploração colonial e por sua libertação por todos os meios necessários. Inicialmente, em Angola em 1961, depois em 1963 na Guiné e por último em Moçambique em 1965.

Sinteticamente: para os três teatros de operações foram mobilizados a volta de 800 mil homens e jovens (90% dos homens aptos para servir a tropa), bem como foram incorporados as tropas mais de 500 mil homens africanos, o que se denominou “africanização” da guerra; estima-se que foram 100 mil civis mortos, 10 mil militares portugueses e 20 mil “inválidos”; do ponto de vista econômico, Portugal chegou a empregar 40% do seu orçamento de Estado para o esforço de guerra; sem esquecer, os quase 1 milhão de português que emigraram para fugir da ditadura, da miséria e da guerra.

Nesse contexto é que os militares que estavam no campo de batalha, especialmente, os oficiais intermédios (capitães e majores) que comandavam as tropas, percebem que a solução para a “questão colonial” não era militar, mas política. Eram eles que morriam, a perder batalhas (Guiné e Moçambique) e ao “levar a culpa” pela “perdas” das colónias, portanto, cada vez menos “desprestigiados”.

Permitam-me utilizar uma figura de linguagem, “o copo de água transbordou”, quando o sucessor de Salazar desde o ano de 1968, o ditador-fascista Marcelo Caetano, com falta de oficiais no campo de batalha, decidiu emitir um lei-decreto (353/73 em junho de 1973) que permitia o exército colonial colocar na carreira militar oficiais milicianos do quadro complementar, isto é, sem ter passado pela Academia Militar (a profissionalização). A “gota d’água” foi que o célebre decreto possibilitava que os oficiais milicianos ultrapassassem em termos de antiguidade na carreira os oficias do quadro permanente e profissionalizados.

Tal situação transbordou para um rol de protestos e exasperação desses oficiais intermédios do quadro permanente, o que foi “o princípio do fim do regime”, pois, das reivindicações corporativas abrirá o caminho para um sujeito político importante na derrubada do fascismo, o Movimento dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA), que mais tarde ficará conhecido apenas como Movimento das Forças Armadas (MFA) – organização florescida, especialmente, nos campos de batalha da Guiné.

No espaço de oito meses e cinco grandes plenárias ocorreu um processo de politização MFA, entende que a única forma de acabar com a guerra colonial (hoje bastante “esquecida” em Portugal) seria derrubar o regime colonial-fascista. Por outras palavras, um setor (MFA) das Forças Armadas, um dos pilares do Estado Novo salazarista (o outro foi a Igreja Católica), decidem que era “chegada a hora” de destruir o próprio regime que eles fizeram durar por 48 anos (principalmente os generais – “brigada do reumático”). Portanto, esse grupo de oficias intermédios, conscientes de a “solução colonial” era a descolonização, aplica o golpe falta e final ao regime que torturou, matou e enviou para o campo de concentração do Tarrafal milhares de militantes antifascistas e comunistas.

É preciso salientar, que para além da força efetiva e matéria do MFA na derrubada do salazarismo, existiu muitas forças políticas de resistência e luta contra o fascismo nesses 48 anos em Portugal. O Partido Comunistas Português (PCP) uma organização que teve uma importância ímpar, mesmo ilegalizado e na clandestinidade, com milhares de militantes perseguidos, presos, torturados e mortos, jamais deixou de lutar, de organizar greves, manifestações e a própria classe trabalhadora, de denunciar os crimes do regime.

Nos anos 1960 surgiram setores populares da igreja, “os católicos progressistas” que vão se somar a oposição antifascista, assim como, os movimentos comunistas de origem trotskista e maoistas (com menor capilaridade social). A outra força política decisiva foram os movimentos anticoloniais e de libertação nacional, que decidiram a recorrer à insurreição armada e na luta política no quadro das relações internacionais (especialmente na ONU).

Os movimentos anticoloniais eram heterogénos e complexos, mas gostaria de destacar os três que vão ganhar maior importância: Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC); Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

Teve muita luta antifascista em Portugal naqueles anos de ditadura, mas efetivamente o 25 de abril de 1974 começou em África.

 

¨      Portugal entre 1974 e 1975. Por Raquel Varela

 

Era uma vez um homem, ou quase-homem, que queria comer o fruto do alto duma árvore. Olhou, calculou a distância, decidiu que queria (ato consciente) comer o fruto e pensou em como fazer-se chegar lá. Começou por uma liana, que se partiu, refletiu sobre o peso, e pensou que podia produzir, com as próprias mãos, uns “degraus”, até que construiu uma escada. E quis ensinar à sua comunidade o que era uma escada, como fazê-la, como usá-la, e, por isso deu nomes – à corda, à escada e ao ato de ir além, ir mais alto.

Os signos complexos e a imaginação em ato: a linguagem e o pensamento. E a (auto)educação. Transmitir o conhecimento. No limite, a cultura letrada. Tudo tem origem no trabalho. Somos trabalho, e só por trabalharmos somos humanos – a linguagem, o pensamento, a cultura (com a mesma raiz de colo/cultus/culturus – fecundação, agricultura, religião etc.) diz-nos quem somos. Sem trabalho, não somos nada. É através do trabalho que tornámo-nos humanos, com ele transformamos o mundo e a nós próprios. O homem que faz (faber), que sabe que sabe (sapiens sapiens) e imagina (imaginosus). O homem que fez a escada, nomeou-a e ensinou-a. O homem inventou tudo, das guerras às revoluções contra as guerras. O seu e o seu contrário.

Quero defender, nesta breve peça, uma ideia-chave: a história social, a história dos de baixo, ou do povo, não é a história de uma parte da população ou de um tema específico, como seria a história das ideias e mentalidades, dos hábitos de alimentação, ou a história militar ou – aquela que é dominante no nosso seio desde os anos 1980, e a entrada no período de declínio acentuado do capitalismo global, o neoliberalismo –, a história política e institucional. De reis e senhores passámos, sob a influência da resistência ao nazi-fascismo e das revoluções anticoloniais a uma difusão da história social nos anos 1970. E a uma história, após 1986-89, de Estados e de estruturas, isto é, as instituições.

A história do povo é a história como um todo, é esse o argumento central deste texto. Quando a fazemos mobilizamos não só como sujeitos quem trabalha, e as dinâmicas sociais, convocamos o âmago daquilo que é central para explicar as sociedades humanas e, mesmo, a humanidade. O que determina toda a vida social – o trabalho. Explico-me: a dita tese da “centralidade do trabalho” não é apenas uma opção de historiadores marxistas, enamorados pelas classes trabalhadoras e os seus épicos, porém, também, trágicos, e contraditórios ditos e feitos.

O mistério do trabalho vai da definição de quem somos, tema que apaixona psicanalistas, até às forças tectónicas que levam ao embate entre classes e movimentos sociais, as revoluções sociais. O trabalho é tão importante que é o que define o modo como vivemos em sociedade e o regime que regula as relações sociais. Ellen M. Wood (1942-2006), historiadora marxista canadiana, uma voz de rigor e honestidade intelectual, fez uma defesa fascinante da ideia de que na Grécia Antiga tinha nascido a democracia porque havia autonomia do trabalho – os escravos, claro, não tinham sequer direitos, mas a base da democracia política e, por isso, da (até hoje fascinante) esplendorosa cultura grega era a quantidade de homens livres na cidade. Polis, mestres-artesãos, artífices, que ao terem autonomia no seu próprio trabalho possibilitaram um resplandecente florescimento das primeiras organizações democráticas no ventre da cidade-Estado. Não há democracia sem democracia no local de trabalho.

A história social – que procurámos fazer na História do Povo na Revolução Portuguesa e na Breve História de Portugal (ambos publicados pela Bertrand) – permite-nos subir ao alto da montanha e, daí, enxergar a linha do horizonte. Coloca-nos num lugar que permite compreender as diferentes sociedades não na sua aparência (troca mercantil, forma-dinheiro, “coisas” etc.) ou na sua figuração (partidos, Igreja, direcções etc.), mas na sua essência – tudo o que é produzido em sociedade vem do trabalho e só o trabalho é que produz valor.

E o trabalho, no capitalismo realmente existente, não é um arranjo contratual assinado entre pessoas livres, essa é só a sua representação jurídica formal, mas uma relação social entre classes sociais distintas: a burguesia e os trabalhadores. Estas classes não são as únicas que existem, mas são, depois de consolidadas no período contemporâneo do capitalismo avançado, as que determinam toda a estrutura social em que trabalhamos e, portanto, todo o modo de pensar, sentir e viver a vida. E assim, chego ao meu segundo ponto, o trabalho. A história do trabalho e o seu mundo não é a história dos trabalhadores, é, na verdade, a história da sociedade como um todo.

Cerca de três milhões de pessoas estiveram envolvidas em formas de democracia participativa na vida social e política em Portugal entre 1974 e 1975, “quando o futuro era agora”, na expressão feliz, cunhada por Francisco M. Rodrigues (1927-2008), e que remete para a noção de pré-figuração. Mas o que é isto? Que palavra é esta, “pré-figuração”? Também se explica pelo trabalho – o trabalho e seus desdobramentos permitem aquilo que nos distingue dos animais e que o fundador da psicologia concreta do homem denominou as funções ou processos psíquicos superiores (atenção dirigida, decidimos dar atenção a, focar em; memória volitiva, não é a memória involuntária; abstração conceptual; imaginação criadora).

No fundo o que Liev S. Vigotski (1896-1934) diz é que pela educação – daí que seja bárbaro assistir à degradação da educação escolar – é que é pela educação que nós aprendemos a nos desenvolvermos e sermos senhores das nossas próprias decisões, regulando a nossa própria conduta, entre elas aprendemos a criar, decidimos criar, escolhemos inventar.

Nas revoluções sociais trata-se da prefiguração política em ato – criamos em coletivo toda uma nova sociedade, em permanência, “fazemos” o que “sabemos”, e assim o futuro desejado se afigura na ação. Esse é o significado mais profundo da história do povo na revolução portuguesa, e que só a história social pode analisar, interpretar, descrever, narrar, explicar e compreender: nunca antes tanta gente decidiu tanto em toda a história de Portugal. Nunca antes tanta gente aprendeu tanto a decidir o que e como fazer aquilo que virá a ser.

Sem esperar pelo Estado e muitas vezes contra as instituições, tomaram decisões que foram fulcrais para o país e que determinaram um salto de tigre da idade média para a modernidade e a contemporaneidade. Mudaram o país e mudaram-se a elas mesmas. A política deixou então de ser, num Portugal com 300 anos de inquisição e 48 de ditadura, uma profissão de poucos e passou a ser a gestão da coisa pública, comum, de muitos, de todos. A guerra colonial terminou, celebrada nas ruas “nem mais um soldado para as colónias”, no cano das espingardas alçaram-se cravos rubros.

Mas só quer tudo quem não teve nada: os professores em cada escola organizaram a gestão destas, com representantes eleitos, debateram pedagogia e didática, conteúdos e currículos, sempre entre pares; os médicos decretaram que nunca mais a transfusão de sangue humano seria comercializada, os hospitais privados seriam então inseridos num Serviço Nacional de Saúde cujo primeiro esboço é desenhado em 1974 e 1975 com a nacionalização das velhas misericórdias e a abertura de novas urgências, exigidas pelos médicos para ampliar cuidados à população e, assim, o próprio saber-fazer médico.

Nas empresas e nas fábricas os trabalhadores reuniram-se, pela primeira vez na história do país, de forma inteiramente livre, e impuseram limites ao trabalho noturno, salários acima dos mínimos, direito ao trabalho e direito ao descanso, férias pagas, segurança social; centenas de milhar de pessoas tiveram acesso a uma casa arrendada ou autoconstruída.

A liberdade chegou a sério, conquistada e aprimorada: teatros e ballets, onde os artistas debateram o que é a arte, porque é uma necessidade fundamental, atuaram nos locais de trabalho, as mulheres passaram a decidir lado a lado com os homens onde fica a creche, porque as rotas dos autocarros devem servir todos os bairros, mas também passaram a decidir sem os homens, questões essenciais da intimidade, e, até, do sentido da vida – a propriedade privada dos meios fundamentais de produção social encolheu-se, e a liberdade individual de milhões anónimos, libertados do espartilho da escassez brutal, ampliou-se, como nunca antes.

O liberalismo português, iniciado em 1820, nem o direito ao voto garantiu, mas a Revolução dos Cravos, o biênio do PREC, não trouxe só o direito ao voto, reunião, associação, e liberdades e garantias individuais e coletivas, trouxe o direito a viver em democracia, sem medo, no local de trabalho e em todas as esferas da vida.

“O povo é quem mais ordena, dentro de ti oh cidade!”. A revolução portuguesa, que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974, e durou sensivelmente quase dois anos a fio, foi o período não só mais extensamente revolucionário, como mais profundamente democrático da história de Portugal. A democracia substancial – muito mais do que a democracia procedimental das urnas eleitorais – ensinou-nos que há outro modo possível de vida e trabalho, em cooperação, solidariedade e liberdade.

Esse passado hoje é glosado e temido pelas classes dominantes que querem fazer do PREC (Período Revolucionário em Curso) um tempo de balbúrdia, confusão e caos generalizado, omitindo que esse tempo histórico, esse sonho lindo porque real, foi o tempo em que mais gente, de forma mais livre, responsável e empenhada (re)construiu o país, trazendo-o da guerra colonial, do trabalho forçado e dos salários miseráveis na metrópole, para um lugar onde se entrava numa escola com alegria e desejo de transformação, num hospital para ser acolhido de braços ternos e abertos, e seguros e nos locais de trabalho.

À paixão triste do medo contrapôs-se , com lutas sociais e coletivas, a paixão alegre da esperança. 50 anos depois devemos celebrar esse tempo para construir o futuro, perceber como podemos, de novo, envolver-nos todos na coisa pública e assim ampliar a nossa liberdade individual e colectiva, a nossa própria humanidade, reconhecermos…em cada esquina um amigo.

 

Fonte: A Terra é Redonda

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