terça-feira, 2 de abril de 2024

As bombas da Otan que deram início a uma nova era de guerras

No dia 24 de março de 1999, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, conhecida pela sigla Otan, lançou uma campanha aérea contra a antiga Iugoslávia, que durou 78 dias.

Na época, foi a maior operação militar em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

E foi também a primeira intervenção internacional sem aprovação prévia do Conselho de Segurança da ONU.

A decisão serviu de precedente para a invasão norte-americana do Iraque, quatro anos depois, e é frequentemente mencionada pelo presidente russo, Vladimir Putin, para justificar as invasões da Ucrânia e da Geórgia pela Rússia.

A campanha da Otan começou após diversas tentativas políticas fracassadas para impedir a violenta repressão e os assassinatos dos albaneses étnicos em Kosovo, que então fazia parte da Iugoslávia.

As operações eram voltadas a alvos predominantemente militares na Sérvia, Kosovo e Montenegro, mas também atingiram importantes pontos de infraestrutura civil.

As autoridades iugoslavas declararam que pelo menos 2,5 mil pessoas morreram e 12,5 mil ficaram feridas. Mas a contagem exata dos mortos permanece sem confirmação até hoje.

As organizações Human Rights Watch e Anistia Internacional afirmam que cerca de 500 civis foram mortos nos ataques aéreos. E mais de 300 mil albaneses fugiram de Kosovo durante os bombardeios, em busca de refúgio nos países vizinhos – a Albânia e a Macedônia do Norte.

Os bombardeios terminaram em junho de 1999, quando o líder sérvio Slobodan Milosevic (1941-2006) aceitou um acordo de paz que convocou a retirada das suas forças de Kosovo e sua substituição pelas tropas de manutenção da paz da Otan.

Depois de 25 anos, a Otan ainda mantém sua presença em Kosovo. São quase 5 mil soldados em terra, regularmente envolvidos em choques esporádicos entre as forças de segurança kosovares e a minoria sérvia.

·        Falta de aprovação da ONU

Anos de fracassos diplomáticos para conseguir uma solução política para a crise em Kosovo culminaram com mais um resultado mal sucedido em 1999.

Os aliados ocidentais tentaram negociar uma maioria que apoiasse as ações militares na Assembleia Geral da ONU, evitando o veto russo ou chinês no Conselho de Segurança, mas não tiveram sucesso.

O porta-voz da Otan na época, Jamie Shea, afirmou que a grande maioria dos membros do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas concordou com a intervenção da Otan.

"Não é que não houve aprovação da ONU, não houve aprovação da Rússia", declarou Shea à BBC News Sérvia.

"A campanha foi uma intervenção humanitária", prosseguiu ele. "Ela foi planejada para impedir violações de direitos humanos, violência contra civis e para permitir que a população albanesa kosovar permanecesse em Kosovo."

No final de 1998, mais de 300 mil kosovares já haviam deixado suas casas, segundo a Otan.

Embora tenha bloqueado todos os esforços da ONU para uma decisão conjunta, a Rússia adotou rapidamente o chamado "precedente de Kosovo" como justificativa para suas próprias intervenções militares.

"Em fevereiro de 2008, a Rússia invadiu a Geórgia com o pretexto de proteger as pessoas de fala russa na província separatista da Ossétia do Sul contra o exército georgiano", afirma o professor de história Kenneth Morrison, da Universidade De Montfort em Leicester, no Reino Unido.

O professor Morrison defende que o mesmo pretexto foi usado pela Rússia ao invadir a Ucrânia em 2022, embora alguns eventos ocorridos logo após a dissolução da União Soviética seguissem na mesma direção.

"A justificativa russa para suas ações militares na Moldova e na Geórgia em 1992 e 1993 também foi a proteção de civis contra crimes de guerra", segundo o analista político Aleksandar Djokic. "Poderíamos dizer que a Otan também aprendeu algumas lições com a Rússia e não o contrário, embora Putin relembre constantemente a todos sobre o 'precedente de Kosovo'."

O então primeiro-ministro britânico Tony Blair considerou que a campanha de Kosovo demonstrava que a força militar poderia ser usada para "libertar" pessoas de regimes autoritários, segundo Morrison.

Em nível mundial, as consequências do bombardeio da Iugoslávia pela Otan tiveram alcance muito maior, ultrapassando os limites do continente europeu.

"Seus arquitetos, principalmente o primeiro-ministro britânico Tony Blair, consideravam que a campanha em Kosovo foi um sucesso incontestável, que comprovava que as forças militares poderiam ser usadas para 'libertar' pessoas de regimes autoritários ou da violência de Estado", declarou Morrison.

"Em princípio, sua convicção de que a força poderia ser usada para atingir objetivos humanitários e confrontar regimes autoritários era um ideal nobre, mas resultou em um desastre no Iraque", prossegue ele.

·        'Legado significativo'

Estima-se que cerca de 100 mil sérvios permaneceram em Kosovo, com o apoio de Belgrado. A maioria deles rejeita a independência do país.

"O bombardeio da Otan deixou um legado significativo, não apenas porque foi o principal fator para a queda de Slobodan Milosevic em outubro de 2000", afirma Kenneth Morrison. "Ele também abriu o caminho para a independência de Kosovo em 2008 e as divisões na comunidade internacional sobre o seu reconhecimento."

"As profundas tensões que se seguiram entre Kosovo e a Sérvia, apesar dos esforços da União Europeia e dos Estados Unidos para intermediar a normalização das relações, permaneceram."

A Sérvia afirma que não irá reconhecer a independência da região e que nunca irá permitir que Kosovo faça parte das Nações Unidas. Sua posição recebe forte apoio da Rússia e da China, entre outros países.

Duas antigas repúblicas iugoslavas – a Eslovênia e a Croácia – já são membros da União Europeia, mas a Sérvia e Kosovo enfrentam um longo processo de adesão, que depende, em grande parte, do seu sucesso na normalização das relações mútuas.

O reconhecimento mútuo, agora, é uma condição para que Kosovo e a Sérvia passem a fazer parte da União Europeia.

A Sérvia também manteve sua política militar neutra, embora coopere estreitamente com a Otan, por meio do processo Parceria para a Paz.

·        O que levou aos bombardeios?

O regime socialista da antiga Iugoslávia foi um exemplo de orgulho por reunir diversas comunidades étnicas e nacionais vivendo juntas em um só país. Mas o país se desfez em uma série de guerras sangrentas nos anos 1990.

Todas as seis antigas repúblicas se tornaram Estados separados. Mas a província sérvia de Kosovo começou a enfrentar sérias tensões com o governo de Milosevic, que impedia à força que os albaneses étnicos da região conseguissem sua independência.

Muitos sérvios consideram que Kosovo é o local de nascimento do seu país. Mas 92% das 1,8 milhão de pessoas que vem na região hoje em dia são albaneses.

Em 1998, os confrontos entre as guerrilhas étnicas albanesas do Exército de Libertação de Kosovo e forças de segurança sérvias passaram a ser mais violentos. O conflito assumiu níveis sem precedentes, com combates diretos e ataques quase diários.

Os ataques da Otan causaram mortes de civis, como ocorreu no bombardeio da ponte sobre o rio Lim, que teria matado cinco pessoas.

A comunidade internacional promoveu uma série de negociações entre a Sérvia e Kosovo. Era uma tentativa de evitar mais uma guerra de grandes proporções nos Bálcãs.

As negociações finais, na França, duraram semanas. Elas foram causadas pelo assassinato de 44 pessoas de etnia albanesa, em janeiro de 1999.

Apesar da forte pressão internacional, as conversações falharam. A Sérvia rejeitou o acordo de paz, que levaria à retirada das suas forças e a introdução da presença limitar liderada pela Otan em Kosovo.

·        Alvos controversos

Em 24 de abril, mísseis da Otan atingiram o edifício da emissora de TV estatal sérvia RTS, matando 16 funcionários e ferindo outros 18.

A Otan declarou, na época, que o ataque era justificado porque a RTS fazia parte de uma "máquina de propaganda" do governo de Milosevic. Já o governo sérvio de Belgrado descreveu o ato como "criminoso".

No dia 7 de maio, quando o Ministério do Interior da Sérvia e o quartel-general do exército foram destruídos por bombardeios, diversos mísseis atingiram a Embaixada da China em Belgrado. Três jornalistas chineses foram mortos e mais de uma dúzia de funcionários ficaram feridos.

Os bombardeios cessaram em 10 de junho de 1999, depois de um acordo de retirada de todas as forças de segurança sob o comando sérvio em Kosovo, permitindo a chegada de 36 mil soldados de manutenção da paz, liderados pela Otan.

Slobodan Milosevic foi o primeiro chefe de Estado a ser levado a um tribunal internacional depois da Segunda Guerra Mundial.

Milosevic foi deposto em um levante popular no ano 2000. Dois anos depois, começaria seu julgamento no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. Ele foi acusado de 66 crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra.

Milosevic morreu na prisão em 2006, antes que o veredicto fosse anunciado.

 

Ø  Há 25 anos chegava ao fim a Iugoslávia: país ainda existiria hoje se OTAN não tivesse interferido?

 

Depois de mais de 70 anos de existência, a Iugoslávia chegou ao fim em 1999. De potência socialista a nação devastada pelas imposições econômicas do Fundo Monetário Internacional (FMI), a região reunia seis repúblicas: Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Sérvia, Montenegro e Macedônia.

Era o fim da Segunda Guerra Mundial quando o projeto de unificação dos povos eslavos liderado por Josip Broz Tito fazia chegar ao fim anos de colonização europeia ocidental na tensa região da Península Balcânica: em 1945, surgia a República Socialista Federativa da Iugoslávia. Após uma batalha de resistência contra a invasão nazista que terminou com a morte de pelo menos 2 milhões de pessoas, o país passou a ser reconhecido internacionalmente, e foi crucial durante a Guerra Fria, quando liderou o bloco dos países não alinhados.

Dejan Mihailovic — especialista em geopolítica e professor da Universidade Politécnica de Monterrey, no México —, que é sérvio, pontuou em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que apesar da devastação da infraestrutura, a Iugoslávia rapidamente se reergueu, com um modelo de socialismo "autogestionário" que teve seu boom econômico durante a década de 1960.

"Tivemos uma espécie do que experimentou o Brasil com o boom industrial, a liderança no movimento dos não alinhados e o respeito que ganharam a Iugoslávia e Tito, tanto dos soviéticos como dos ocidentais, incluindo os Estados Unidos. No entanto, o modelo começa a se desgastar, Tito morre [em 1980, aos 88 anos] e poderosos políticos regionais e locais só aguardavam o momento para começar lutas locais pelo poder. Começa uma crise econômica, a taxa de inflação aumenta, a produtividade fica baixa e há ondas de migração por motivos econômicos da Iugoslávia para a Europa Ocidental", explica.

Imposições do FMI agravaram ainda mais a situação do país, segundo o especialista, onde chegaram a viver 23 milhões de pessoas.

"Tito soube manter sob mão dura, por assim dizer, uma unidade entre diferentes povos, religiões, identidades étnicas e linguísticas, porque havia uma unidade comum de um país próspero e de bem-estar, mas que começou a desmoronar [também por influência ocidental]", acrescenta.

Após quase 80 dias de bombardeios liderados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com a morte de milhares de pessoas e uma verdadeira desestabilização social, chegava ao fim, em 1999, a Iugoslávia.

"Então estamos falando de um evento de caráter destrutivo, porque morreu um país, morreu um projeto histórico de união dos povos eslavos do sul, como é a tradução literal de Iugoslávia, que se gestou precisamente entre 1991 e 1999 […]. Depois, Sérvia e Montenegro foram uma espécie de sobreviventes que se mantiveram unidos [até 2006]. Mas podemos dizer que não era nada possível que a Iugoslávia sobrevivesse a esses grandes desafios que foram, digamos, impostos", afirma.

Para além das mortes, a força "completamente desmedida" dos militares da OTAN destruiu a região, em um dano que na época foi estipulado em mais de US$ 100 bilhões (R$ 500 bilhões).

"Anos depois, o Kosovo, majoritariamente habitado por albaneses, declara independência, apoiado por União Europeia, Estados Unidos e Vaticano. E até hoje temos esse caso que, para juristas internacionais que velam pelos interesses do Ocidente coletivo, é um assunto sui generis [peculiar]. Mas outros pontos de crise internacional que têm a ver com disputas territoriais, separatismo de todo tipo, merecem um tratamento completamente diferente", enfatiza.

·        O que é hoje a Iugoslávia?

Atualmente existem seis países na região que era ocupada pela Iugoslávia: Bósnia e Herzegovina, Croácia, Macedônia do Norte, Montenegro, Sérvia e Eslovênia, além do Kosovo, que se declarou independente da Sérvia, mas não tem o reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU).

"As pressões do exterior e um nacionalismo fora de todo controle foram suficientes para conduzir à desintegração do país, que provocou o nascimento de outros Estados soberanos e independentes no papel", diz Mihailovic.

O professor compara a história da região sul dos Balcãs ao que ocorreu com a América Latina, colonizada pelos europeus a duras penas até o processo de independência iniciado pelo Haiti em 1810.

"Algo parecido acontece na Europa periférica, colonizada internamente. Em 1804, na Sérvia, há uma primeira insurreição. Em 1815, uma segunda. E, assim, pouco a pouco, a Sérvia se torna independente e é reconhecida como Estado soberano pelo Congresso de Berlim, em 1878. Outras zonas ao redor da Sérvia permanecem como partes de províncias dos impérios, como é o caso da Eslovênia e da Croácia", diz.

Outro paralelo com a região é feito pelo especialista em geopolítica diante da crise econômica iniciada na década de 1980, quando diversos países decidiram recorrer aos empréstimos do FMI, principalmente os latino-americanos. Na Iugoslávia não foi diferente: juros exorbitantes e "fraudes de organismos financeiros internacionais, sobretudo do fundo, fizeram com que a dívida externa aumentasse desproporcionalmente".

·        Quem destruiu a Iugoslávia?

Bem antes de ser destruída, o país cuja principal língua era o servo-croata conviveu com o terrorismo interno e grupos infiltrados orquestrados pela Europa Ocidental, inclusive com um atentado à embaixada iugoslava em Estocolmo, na Suécia, quando o diplomata Vladimir Rolovic foi assassinado.

"É claro que, com o debilitamento do país, esses movimentos independentistas se fortaleceram, e até um certo momento, quando a Iugoslávia praticamente caiu, curiosamente esses nacionalistas exacerbados começaram a promover os princípios do próprio povo, da própria nação, em detrimento de outros", enfatiza.

Após 25 anos, o professor da Universidade Politécnica de Monterrey considera os governos da região da antiga Iugoslávia "altamente criticáveis por terem um neoliberalismo absolutamente selvagem e com constante empobrecimento das grandes massas". Além disso, tornaram-se nações "altamente dependentes da intervenção estrangeira" e com políticas "entreguistas em termos de recursos nacionais considerados estratégicos".

·        Porque o Kosovo não pode ser considerado independente?

Uma das regiões que faziam parte da República Socialista da Iugoslávia, o Kosovo até hoje vive sob grandes tensões geopolíticas. Apesar de ter declarado independência da Sérvia em 2008, a região em que vivem 1,8 milhão de pessoas não é reconhecida como nação pela ONU. Mesmo assim, Estados Unidos e aliados sequer respeitam a resolução das Nações Unidas, o que provoca ainda mais instabilidades.

"Para que se tenha uma ideia do grau de hipocrisia que reina na zona de relações internacionais, a União Europeia insiste que para que a Sérvia passe a fazer parte desse grupo seleto de países do bloco regional, é preciso reconhecer a independência de uma parte do seu território. Mas temos países europeus que não reconhecem Kosovo como um Estado soberano, como Espanha, Grécia, Chipre e Eslováquia. Nos últimos cinco anos, mais de 20 retiraram seu reconhecimento, que é um ponto a favor da diplomacia da Sérvia", explica.

De acordo com o especialista, o território ainda conta com a maior base militar norte-americana fora do país, que tem capacidade para até 90 mil soldados.

"Kosovo virou uma espécie de terra de ninguém em relação às leis internacionais. Na região, aterrissam aviões sem absolutamente nenhum controle, [ela] se tornou a capital mundial do tráfico ilegal de armas, do narcotráfico e de transações financeiras ilegais, em uma espécie de paraíso fiscal. Ao mesmo tempo, há um processo de escravidão moderna, sem muitas atividades de grandes potências para deter esse tipo de crime", finaliza.

 

Fonte: BBC News Mundo/Sputnik Brasil

 

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