segunda-feira, 29 de abril de 2024

AMAZÔNIA: Infraestrutura da destruição

Uma estrada de ferro atravessando a maior floresta do mundo poderia ser apenas um projeto do século passado, quando a borracha alimentava o mercado europeu. O ouro branco que escorria dos troncos das árvores amazônicas modificou toda a dinâmica territorial do Rio Madeira ao Tapajós. Diz-se que o número de trabalhadores mortos na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré equivale aos dormentes assentados, concedendo o título de ferrovia do diabo. Não houve registro das mortes de indígenas. Não há dados exatos quanto aos impactos sobre a floresta. Nenhum cientista poderia prever a crise climática que estava por vir.

Infraestrutura para destruição. É como podem ser chamados os projetos pensados para a Amazônia, há séculos, e que se atualizam com a Ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão, e com os empreendimentos portuários identificados no oeste paraense, nos municípios de Santarém, Rurópolis e Itaituba pelo estudo, Portos no Tapajós, lançado no dia 24 de abril e elaborado por Terra de Direitos,

O que muda é a mercadoria: ontem borracha, hoje energia, minério, soja. O objetivo da Ferrogrão é a exportação de grãos para os mercados europeu e asiático. E o que denunciam os povos é que esse fluxo é uma via de mão dupla: o trem que vai carregado de soja e milho também é o trem que vem trazendo todo tipo de veneno para ser utilizado extensivamente na produção desses grãos, e bombardeado sobre os territórios originários e tradicionais, sobre os cursos de água, e as cidades que os rodeiam. 

A Aliança #FerrogrãoNão, composta por povos indígenas do Pará e Mato Grosso, movimentos populares, organizações sociais nacionais e internacionais, tem reivindicado ao governo federal o cancelamento da ferrovia de mais de 900 quilômetros de extensão, que pretende ligar o município de Sinop (MT) ao Complexo Portuário de Miritituba (PA), cortando áreas de preservação permanente e territórios indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais, deixando um rastro de destruição em nome do “desenvolvimento” e “expansão do agronegócio”.   

Alguns podem se perguntar: então essas pessoas são contra o desenvolvimento da Amazônia? Não. O problema das grandes obras de logística e infraestrutura pensadas para a região é que elas jamais foram feitas para as pessoas da Amazônia. 

A Ferrogrão entrou no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 3, lançado pelo governo federal em 2023, no eixo “Transporte Eficiente e Sustentável”. No entanto, não abrange o transporte de passageiros. A obra destinada a transportar commodities foi incluída na modalidade “estudos de novas concessões”. Isso quer dizer que mesmo com as diversas denúncias dos impactos socioambientais de empreendimentos deste porte para o governo Lula, não há sinalizações significativas de abandono ou desestímulo pelo poder público a projetos do capital internacional.

A intenção de construir a Ferrogrão não se diferencia de outros projetos sustentados pelo discurso de necessidade de desenvolvimento ou progresso, mas que deixa de considerar o potencial endógeno da floresta (em pé) e das dinâmicas tradicionais das comunidades residentes na região, deixando para estas apenas os danos e a destruição.

No centro de projetos de logística pensados para a Amazônia – dos quais fazem parte a ferrovia e os inúmeros portos às margens do Rio Tapajós, no oeste do Pará – há sempre alguma mercadoria que deve ser saqueada e escoada, da forma mais lucrativa possível – ou seja, a baixos custos para as empresas transnacionais, com danos irreparáveis para as gentes e para a natureza.

Se é a Ferrogrão – pelo transporte ferroviário – a via de conexão do agronegócio entre Centro-oeste do Brasil ao Norte do país, são os portos do Rio Tapajós que, ao conectar o Brasil com o mundo, estabelecem e concretizam a trama das commodities operada pelas transnacionais.

PORTOS NO TAPAJÓS

As empresas Amaggi, ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus atuam na Amazônia brasileira, e vêm movimentando barcaças carregadas de soja desde a década de 1990 pelo Rio Tapajós. O crescimento acelerado de empreendimentos dobrou: passando de 20 portos até 2013, para 41 após a edição da Lei de Portos (Lei n 12.815) – um aumento de 105%. 

A maioria deles se concentra em Itaituba, onde fica o distrito de Miritituba, previsto como ponto final da Ferrogrão. Essas mesmas empresas são as financiadoras do projeto da ferrovia, com a realização de estudos para viabilizar a concessão. 

Na plataforma online Portos no Tapajós é possível observar como estão distribuídos os portos no Tapajós – assim como outros projetos como a Ferrogrão, a BR-163 e hidrelétricas – que se concentram em direção ao Oeste do Pará, fixando-se nas proximidades de centenas de comunidades tradicionais. 

EMPRESAS TRANSNACIONAIS E FALHAS NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL ESTÃO NO CERNE DO PROBLEMA HÁ ANOS

A instalação de portos voltados ao agronegócio no Tapajós teve como marco a construção do terminal portuário da Cargill. Eleita como a pior empresa do mundo pela Mighty Earth em 2019, a Cargill Agrícola S.A chegou à Santarém, em 2003, em um processo marcado por fraudes no licenciamento ambiental e violações de direitos humanos e socioambientais.

Desde o início das operações da transnacional até os dias atuais, os reflexos nos territórios do Tapajós são a redução das áreas de pesca artesanal, a insegurança alimentar, a contaminação das águas e peixes, o aumento da prostituição de mulheres e exploração sexual de crianças e adolescentes e os impactos à saúde humana decorrentes do uso de agrotóxicos nas plantações. Como apontado em estudos anteriores de Terra de Direitos sobre os portos da empresa em Santarém e Itaituba.

Isso porque os Portos da Cargill não serviram apenas para escoar a produção que já existia, mas impulsionaram a expansão da monocultura de grãos na região. Alguns desses impactos já estão sendo novamente percebidos com o anúncio da Ferrogrão, como: desmatamento, grilagem de terras e especulação imobiliária, com a expulsão de povos e comunidades tradicionais de seus territórios. 

Com a ampliação da infraestrutura para escoamento de produção com rota para o mercado exterior com baixo o custo, possuir fazendas de monocultivo na região resulta em alta rentabilidade. 

O avanço da infraestrutura da cadeia da soja e milho acontece concomitantemente com o aumento do desmatamento, de queimadas e à expansão da monocultura. Dados que podem ser observados em pesquisa pelo site Portos no Tapajós, que tem esses números registrados de 2003 a 2021. 

O estudo “Portos e Licenciamento Ambiental no Tapajós: irregularidades e violação de direitos”, que é parte do portal Portos no Tapajós, revela que metade das instalações portuárias nos municípios de Santarém, Itaituba e Rurópolis atropelou as regras do processo de licenciamento ambiental. 

O estudo identificou um total de 41 portos nos três munícipios até outubro de 2023 (período de coleta de dados). Desses, 27 estão em operação no momento e apenas 5 possuem a documentação completa do processo de licenciamento ambiental.

Essas lacunas precisam ser assumidas e, devidamente, investigadas pelo órgão licenciador responsável por realizar e conceder as licenças: a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas). 

Parece incoerente que o estado que se apresenta como protagonista dos debates ambientais e climáticos continue renovando licenças ambientais com indícios de irregularidades e violações de direitos. A pouca transparência pública de documentos que deveriam estar disponíveis a toda a sociedade de acordo a Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.52) também depõe contra o estado do Pará. 

O licenciamento ambiental é um instrumento de garantia de direitos socioambientais e que deve ter início sempre que forem pautados projetos com potencial poluidor ou degradador da natureza. E essa natureza tem gente. 

Sem os ritos necessários e sem o amplo comprometimento e transparência do Estado e empresas para mensurar, avaliar e reparar o potencial de degradação dos portos, as falhas nas etapas de licenciamento ambiental seguiram violando não somente determinações jurídicas brasileiras, mas tendo efeitos devastadores ao meio ambiente, o clima, e à vida de povos tradicionais. 

Os portos construídos e ainda previstos para a região do Tapajós vêm demonstrando que os interesses das transnacionais se sobrepõem aos de milhares de pessoas que vivem na região. 

O projeto da Ferrogrão está sendo concebido como a espinha dorsal da rede logística que favorece diretamente as empresas ligadas ao agronegócio, em detrimento dos direitos de povos e comunidades tradicionais à terra e ao território e à consulta e consentimento prévio, livre, informado e de boa-fé. O curioso é que essas empresas somente existem e operam porque séculos atrás outras pessoas que falavam as mesmas línguas estrangeiras invadiram estas terras e roubaram da natureza amazônica o ouro, a borracha, as vidas indígenas. Eis a gênesis da acumulação da riqueza do norte global. 

Com todo esse cenário, o que se coloca para reflexão e, principalmente, para posicionamento do Estado é algo que povos e comunidades tradicionais têm anunciado com insistência há anos: é urgente construir um outro projeto de sociedade. 

No Acampamento Terra Livre deste ano, encerrado em 26 de abril, milhares de povos indígenas denunciaram a Ferrogrão e cobraram pela demarcação de seus territórios. Um grande caminhão com o nome das principais empresas transnacionais do agronegócio brasileiro representou o projeto da Ferrogrão como um “Trem da destruição”. Enquanto isso, em outros espaços, ribeirinhos, trabalhadores rurais e quilombolas se somam às vozes indígenas por esse outro projeto de sociedade. Um projeto dos povos da Amazônia para e com a Amazônia 

É a defesa de uma saída alternativa para problemas urgentes, como da crise climática, que só pode ser aceita com reestruturação de modelos de desenvolvimento e sem anúncios políticos “verdes” vazios. 

 

Fonte: Por Bruna Balbi - assessora jurídica popular da Terra de Direitos e Lanna Paula Ramos - jornalista da Terra de Direitos, para o Le Monde 

 

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