‘Questão do racismo tem a ver com a
sobrevivência do capitalismo’, diz intelectual negra de MG
“A despeito da rigidez
da estrutura de dominação, eu sou uma mulher de muita esperança.” É assim que a
jornalista, cientista política, ativista e intelectual de Minas Gerais Diva
Moreira escolheu se apresentar. Há 20 anos, Diva pesquisa e escreve sobre a
temática da reparação. Ainda em 2024, no mês de novembro, ela pretende fazer o
lançamento público de seu próximo livro Justiça racial e reparações: o caminho
para a democracia no Brasil.
“Nós vivemos uma
situação social, econômica, habitacional e nutricional, infelizmente, muito
semelhante à que vivíamos no período da escravização. Ao longo da república, o
país não teve o interesse de nos incluir, de nos considerar povo, cidadãs”,
avalia.
Com a proximidade do
Dia Internacional de Luta das Mulheres, comemorado anualmente no dia 8 de
março, ela fala ao Brasil de Fato MG sobre os desafios enfrentados pelas
mulheres negras, a persistência das estruturas patriarcal e racista na
sociedade e a necessidade da luta pelo poder.
>>> Leia a
entrevista completa:
• Quais são os principais desafios
enfrentados pelas mulheres negras na sociedade brasileira?
Diva Moreira: Quando
falamos das mulheres pobres, são desafios básicos, que o nosso povo enfrenta
desde a escravidão, como sobreviver, ter alimentação de qualidade, ter uma
moradia que preste. Nós vivemos uma situação social, econômica, habitacional e
nutricional, infelizmente, muito semelhante a que vivíamos no período da
escravização. Ao longo da república, o país não teve o interesse de nos
incluir, de nos considerar povo, cidadãs.
As mulheres negras
foram retiradas dos grandes centros urbanos. Eu tenho usado o conceito de
‘desterro’. É como se dissessem ‘Saiam daqui. Nós não queremos vocês’.
Enfrentamos questões muito básicas, como a fome, mulheres sem absorventes
durante seu período menstrual e a falta de uma casa que não vá desmoronar no
próximo período de chuvas. É tudo tão elementar, é tão simples.
Nós, mulheres negras,
precisamos conquistar poder político, econômico, social
O inominável
[ex-presidente Jair Bolsonaro] chegou a perguntar como é que a gente gosta de
morar nesses lugares. Ora, esses lugares foram os únicos a nós reservados,
porque até mesmo das favelas foram nos retirando.
Por exemplo,
antigamente, em Belo Horizonte, havia favelas nos bairros Santo Antônio e São
Pedro e o povo foi retirado desses territórios. Só não conseguiram retirar
totalmente do Morro do Papagaio porque em outro momento histórico, em que nós,
mulheres negras, homens negros, junto com os nossos aliados brancos
progressistas, já estávamos organizados, de forma a não permitir mais que
aquela população saísse dali.
Quando isso acontece,
somos obrigadas a ir para lugares mais deteriorados e distantes, o que traz
outra questão, a do transporte. São mulheres que fazem serviços pesados e que
ficam quase 4 horas por dia no transporte coletivo, que deveria ser público, mas
não é.
O sistema não pode
deixar de ser racista porque ele depende
disso para sobreviver
Nós, mulheres negras,
precisamos conquistar poder político, poder econômico, poder social e
capacidade de mobilizar. A gente vive em uma situação que eu acho uma lástima.
O Brasil perde a maior parte do seu povo e só celebra esse povo durante o
período do carnaval, quando todo mundo fica encantado com a pujança, com a
capacidade de criar, de inovar, de transformar a nossa tragédia em estética, em
beleza. Mas, ao longo do ano isso não acontece.
• No último período tivemos avanços? Quais
são as principais bandeiras de luta das mulheres negras na atualidade?
Como nós não temos
poder, as nossas demandas não são acolhidas. Veja só, eu estou com um panfleto
recente que fala sobre a luta “pró-creches”. Quando eu vi esse papel eu fiquei
chocada e resolvi inclusive deixá-lo separado, porque eu participei de lutas pró-creche
há quase 40 anos.
Então, a gente vê como
essa sociedade não tem o menor interesse por seu povo, não constrói cidadania,
não promove direitos elementares. A reforma agrária, por exemplo, é um pleito
desde sempre e nunca aconteceu no Brasil. A consequência disso é que um dos
mais graves problemas que temos é com a alimentação e sabemos quem passa fome
neste país. Sem reforma agrária a gente não resolve nem 50% dos nossos
problemas.
Eu não acredito que
teremos democracia enquanto a população negra continuar na margem
Esse entupimento nas
cidades e a “urbanização enlouquecida” têm a ver com isso. A população não quer
sair do campo porque pensa “eu quero conhecer São Paulo e andar na Avenida
Paulista”, mas principalmente, por falta de acesso à terra e a condições dignas.
Além disso, tudo de
bom que acontece com a gente, que nos beneficia, quando muda o governo, é
desconstruído com o apoio da mídia comercial, que é contra nós. Quem não tem
poder não controla os meios de comunicação de massas. As nossas rádios
comunitárias, que estão nas favelas e poderiam construir cidadania, e que são
majoritariamente organizadas por mulheres e homens negros, não têm apoio
nenhum.
É preciso mudar esse
país estruturalmente e institucionalmente. É na base. Eu terei morrido, mas eu
vou guardar esse papelzinho [panfleto pró-creche] para que, daqui a 30 anos,
quem pegá-lo possa dizer “felizmente, isso não é mais necessário”. Tomara que
isso aconteça, mas para acontecer temos que fazer mudanças enormes em nosso
país, gigantescas, de todas as naturezas.
• Diante desse contexto, qual é a
importância da reparação?
A ideia de reparação é
milenar e significa que, quando alguém ou uma comunidade sofre um dano ou uma
perversidade, ela deve ser ressarcida. Simples assim e isso está na Bíblia, no
Antigo Testamento, eu não estou inventando nada. Isso aconteceu com os judeus,
por exemplo. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi obrigada a
reparar os danos causados às famílias judaicas.
Mas tudo para nós é
muito difícil, porque a questão do racismo tem a ver com a sobrevivência do
capitalismo. O sistema não pode deixar de ser racista porque ele depende disso
para sobreviver. Desde sempre, fomos nós que sustentamos a sociedade.
Em meu livro, eu
defendo as reparações a partir da história, que precisa ser contada. Os judeus
foram reparados porque tinham uma história anterior. Se não contar a história,
a população, a sociedade brasileira, os políticos e a mídia vão dizer “a Diva enlouqueceu!
Reparar o quê? Já passou”. O problema é que as consequências do que passou
estão aí até hoje.
Eu não acredito que
teremos democracia enquanto a população negra continuar na margem, na miséria,
sem voz, sem poder político, sem poder econômico, sem força social para
transformar esse país.
No meu livro eu também
desconstruo todas as mentiras que falaram sobre nós, que somos preguiçosos, que
nosso trabalho é improdutivo e de baixa qualidade, por exemplo. Também queremos
mostrar nossa capacidade, nossa resiliência e nossa criatividade. O samba, por
exemplo, era um espaço de cultura, de sociabilidade, alegria e saúde mental. Eu
também falo sobre isso.
Diretora
pede censura a livro sobre racismo em escola no Rio Grande do Sul
Vencedor do Prêmio
Jabuti de 2021 de romance literário, o livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson
Tenório, é alvo de polêmica em uma escola de Santa Cruz do Sul, cidade no
estado do Rio Grande do Sul.
Na sexta (1º), a
diretora da Escola Ernesto Alves, Janaina Venzon, classificou a obra como
inadequada aos estudantes de ensino médio. Em vídeo postado em seu perfil do
Instagram, Venzon lê trechos do livro.
“Lamentável o Governo
Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas
com vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do
ensino médio. Solicito ao Ministério da Educação buscar os 200 exemplares enviados
para a escola. Prezamos pela educação dos nossos estudantes e não pela
vulgaridade”, escreveu a diretora na legenda da postagem.
“Para mais uma
informação, deixando claro: Os professores não escolheram esta obra literária.
A escola não escolheu nenhuma obra literária. As obras literárias estão sendo
escolhidas pelo Governo Federal. Desconheço o critério de escolha por parte do
Governo, só penso que deveriam analisar antes, para depois enviar para as
escolas trabalharem”, segue o texto.
O livro havia sido
selecionado via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD),
programa que, junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE),
compra e distribui livros e materiais didáticos para professores e estudantes
de escolas públicas de todo o país.
As editoras se
inscrevem para participar do PNLD em prazos definidos pelo FNDE e divulgados em
edital. As obras inscritas passam por triagem técnica, física e pedagógica
feita por especialistas. Os professores devem participar da análise e escolha
dos livros, e o registro das obras escolhidas é feito pelo diretor da escola.
O vereador Rodrigo
Rabuske (PRD), de Santa Cruz do Sul, também divulgou um vídeo em suas redes
sociais na sexta (1º) em que repudia a obra.
Contatada, a
Secretaria Estadual da Educação (Seduc) do Rio Grande do Sul diz que “ninguém
da coordenadoria regional de educação mandou recolher os livros”.
Em nota oficial,
informa que “a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas
equipes gestoras das escolas. Elas integram um catálogo previsto no Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC).”
O Ministério da
Educação também enviou nota oficial. “O Programa Nacional do Livro e do
Material Didático (PNLD) é uma relevante política do Ministério da Educação com
mais de 85 anos de existência e com adesão de mais de 95% das redes de ensino
do Brasil. A permanência no programa é voluntária, de acordo com a legislação,
em atendimento a um dos princípios basilares do PNLD, que é o respeito à
autonomia das redes e escolas”, começa o texto.
“A aquisição das obras
se dá por meio de um chamamento público, de forma isonômica e transparente.
Essas obras são avaliadas por professores, mestres e doutores, que tenham se
inscrito no banco de avaliadores do MEC. Os livros aprovados passam a compor um
catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, os materiais
que mais se adequam à sua realidade pedagógica, tendo como diretriz o respeito
ao pluralismo de concepções pedagógicas.”
“O Avesso da Pele”
conta a história de Pedro, um rapaz de 22 anos, que escreve em primeira pessoa
a “verdade inventada” sobre o seu pai, Henrique, professor de literatura
assassinado pela polícia em Porto Alegre. A obra joga luz sobre a fratura
íntima causada pelo racismo.
A Companhia das
Letras, que publicou “O Avesso da Pele”, disse repudiar qualquer ato de censura
e fez uma postagem em seu perfil do Instagram. Segundo o texto, o livro “foi
aprovado por uma banca de educadores, especialistas e mestres em literatura e
língua portuguesa juntamente com outros 530 títulos”.
“Para chegar ao
colégio em questão, ainda precisou passar por aprovação da própria diretora,
que assinou o documento de ‘ata de escolha’ da obra e agora contesta o conteúdo
do livro. Esses dados são transparentes e públicos”, diz a legenda do post.
“A retirada de
exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e
descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios
fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a
capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo. O
que se destaca em ‘O Avesso da Pele’ não é uma cena, tampouco a linguagem, mas
sim a contundente denúncia do racismo que se imiscui em todas as nossas
relações, até as mais íntimas.”
O autor da obra também
se manifestou em suas redes. “Após repercussão e de uma moção de um vereador, a
6° CRE mandou recolher os exemplares das escolas e bibliotecas até que governo
federal se manifeste (…). As distorções e fake news são estratégias de uma
extrema direita que promove a desinformação. O mais curioso é que as palavras
de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o
racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras”, escreveu.
Jeferson Tenório
também é autor de “O Beijo na Parede” e “Estela sem Deus”, além de escritor e
professor de literatura. Em 2022, ele usou suas redes sociais para dizer que
vinha sofrendo ameaças de morte após anunciar uma palestra que faria em uma
escola de Salvador. Segundo ele, se trataria de uma represália a “O Avesso da
Pele”.
Fonte: Brasil de
Fato/FolhaPress
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