terça-feira, 26 de março de 2024

O que investigação da PF fala a respeito dos motivos para execução de Marielle

O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes levantou o sigilo de sua decisão que ordena a prisão preventiva de suspeitos de relação com o homicídio em março de 2018 da então vereadora do PSOL no Rio de Janeiro, Marielle Franco, e de seu motorista Anderson Gomes.

Os três foram presos neste domingo (24/3) e ficarão em uma prisão federal em Brasília ao menos até segunda.

O texto mostra o passo a passo das investigações da Polícia Federal sobre o crime e detalham o papel no caso dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão e do ex-chefe de polícia do Estado do Rio Rivaldo Barbosa.

Os Brazão negam qualquer participação no caso. A BBC News Brasil ainda não conseguiu contato com a defesa de Barbosa.

Veja abaixo o que diz os autos da investigação acerca dos objetivos dos suspeitos de envolvimento no crime.

•        As intenções dos Irmãos Brazão

Domingos Brazão é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do RJ. Pelo cargo, ele só pode ser julgado pelo STF.

É a mesma situação de Chiquinho, deputado federal pelo partido União Brasil, o que dá direito a foro especial.

Os irmãos são apontados pela investigação como responsáveis pela contratação dos executores do crime contra Marielle.

De acordo com a representação da Polícia Federal ao STF, o plano para matar Marielle surgiu após uma "descontrolada reação" do então vereador Chiquinho Brazão à atuação da vereadora do PSOL.

Na época, um projeto de lei municipal — apresentado pelo então vereador Chiquinho — previa a regularização de empreendimentos imobiliários na região da Zona Oeste carioca onde há forte atuação de grupos milicianos, incluindo o comandado pela família Brazão.

De acordo com a investigação, o irmão Domingos era especialmente envolvido com a grilagem de terras na região.

"De maneira geral, grandes extensões de terra eram ocupadas por indivíduos que, depois, buscavam a regularização das áreas, muitas das vezes, mediante o emprego de fraude ou corrupção de agentes públicos."

"Em seguida, uma vez 'regularizada' a área, eles a loteavam para posterior alienação, o que gerou uma vultosa quantidade condomínios de classes média e alta irregulares na região."

Marielle, também segundo a investigação, teria pedido à população local a não aderir aos loteamentos situados na região.

Conhecida como "Lei do Puxadinho", o projeto foi aprovado na Câmara do Rio e sancionada pelo ex-prefeito Marcelo Crivella. Foi depois considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado.

De acordo com a Procuradoria-Geral da República, "a vereadora não escondia o seu entendimento de que as iniciativas de regularização fundiária pela caracterização de Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) seriam adequadas (...). No entanto, tais instrumentos teriam sido empregados de forma distorcida pelos irmãos Brazão, apenas para viabilizar a exploração econômica de espaços territoriais que, não raro, eram dominados por milicianos".

"Ficou delineada a divergência no campo político sobre questões de regularização fundiária e defesa do direito à moradia."

A investigação diz que essa conclusão sobre as motivações veio de comentários de Domingos em negociações com Ronnie Lessa, suspeito de ser executor do crime e que fechou um acordo de delação premiada após confessar sua participação.

"Dessa forma, as afirmações podem abranger apenas uma parte de um contexto mais intrincado e desconhecido pelo algoz da vereadora", afirma o texto.

A PF apontou ainda o primeiro miliciano contactado para executar o plano de matar a parlamentar, Edmilson Macalé, era próximo a Chiquinho Brazão.

Ainda de acordo com a PF, foi Macalé quem convidou Ronnie Lessa para a execução do plano.

•        O papel do delegado Rivaldo

O delegado Rivaldo Barbosa de Araújo Júnior é apontado pelo inquérito e na decisão do ministro Alexandre de Moraes como uma das peças fundamentais no planejamento do crime.

Barbosa foi nomeado chefe da Polícia Civil durante a intervenção federal da segurança pública do Rio de Janeiro, decretada pelo então presidente Michel Temer em 2018 após uma explosão de crimes durante o Carnaval.

De acordo com a decisão de Moraes, Rivaldo então Diretor da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro, teria atuado como um dos mentores das execuções ao oferecer “garantia prévia da impunidade” aos acusados de cometer os assassinatos.

Segundo a investigação da PF, o caso Marielle foi "calcado na sabotagem dos trabalhos investigativos pelo aparato responsável pela apuração dos homicídios no Rio de Janeiro".

Rivaldo, posteriormente alçado à condição de chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, teria chegado a instruir os mandantes e os executores, impondo condições e fazendo exigências sobre o andamento do planejamento e da execução do crime.

Pouco tempo após as mortes de Marielle e Anderson, Rivaldo nomeou o delegado Giniton Lages — “pessoa de sua confiança”, segundo a decisão — para o cargo de diretor da divisão de Homicídios da Polícia Civil. A oficialização de Giniton ocorreu 12 horas após a execução.

Assim, as investigações passaram a ficar sob a responsabilidade de Giniton, algo que, segundo a investigação, operacionalizou a “garantia de impunidade dos autores do delito”.

"Em relação a Rivaldo Barbosa, Ronnie Lessa declarou que aceitou a empreitada homicida, pois os irmãos Brazão expressamente afirmaram que o então chefe da Divisão de Homicídios da PCERJ teria contribuído para preparação do crime, colaborando ativamente na construção do plano de execução e assegurando que não haveria atuação repressiva por parte da Polícia Civil. Ronnie pontuou que Rivaldo exigiu que o M.F. da S. não fosse executada em trajeto de deslocamento de ou para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, pois tal fato destacaria a conotação política do homicídio, levando pressão às forças policiais para uma resposta eficiente."

 

       Como matador de Marielle teve 'alvo paralelo' encomendado por bicheiro famoso

 

No segundo semestre de 2017, o policial militar Ronnie Lessa se desdobrava para atender a duas "encomendas" fruto de sua atuação como matador de aluguel.

Seus clientes, à época, eram grupos criminosos diferentes e com interesses distintos. De um lado, políticos que, segundo a Polícia Federal, mantinham vínculo com grupos milicianos, teriam encomendado a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL).

Do outro, o conhecido bicheiro Bernardo Bello, um dos principais nomes da chamada "nova cúpula" jogo do bicho no Rio de Janeiro, teria ordenado, segundo Lessa, a morte da presidente da Escola de Samba Salgueiro, Regina Celi.

Ela foi, segundo a PF, o "alvo paralelo" de Lessa entre o final de 2017 e os primeiros meses de 2018.

A necessidade de executar as ordens era tanta que Lessa e sua equipe teriam monitorado os dois alvos praticamente ao mesmo tempo e pretendiam até usar o mesmo carro nas duas execuções. Regina Celi, no entanto, não chegou a ser executada.

Os detalhes sobre as mortes que estavam a cargo de Lessa foram dadas por ele mesmo à Polícia Federal em seu acordo de colaboração premiada firmado no âmbito das investigações sobre a morte de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Bernardo Bello, que se encontra foragido.

O acordo foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e resultou, neste domingo (24/03), na prisão de três suspeitos de serem os mandantes do crime: o deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ), seu irmão e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Domingos Brazão, e o ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa.

O advogado Ubiratan Guedes, defensor do conselheiro do TCE do Rio Domingos Brazão, negou, na manhã deste domingo, envolvimento de seu cliente nos homicídios da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.

"(Domingos Brazão) não tem nenhuma ligação com a Marielle (sic), agora cabe à defesa provar que ele é inocente", afirmou o advogado, ao chegar à sede da Superintendência da Polícia Federal no Rio, na Praça Mauá, na capital fluminense. "Estamos surpresos."

"Não sabemos da imputação que é feita, está entendendo? Vamos ver", declarou.

A BBC News Brasil não conseguiu contactar as defesas de Rivaldo Barbosa e de Chiquinho Brazão.

•        Vínculo com o jogo do bicho

O vínculo de Ronnie Lessa com o jogo do bicho é conhecido há pelo menos 10 anos, quando ele perdeu a perna em um atentado a bomba em 2009, quando ele atuava na segurança de Rogério Andrade, também suspeito de ser um dos chefes do jogo do bicho no Rio de Janeiro.

Em sua delação premiada, Ronnie Lessa contou que na mesma época em que havia sido recrutado pela família Brazão para assassinar Marielle Franco, ele também havia sido contratado para assassinar Regina Celi a mando de Bernardo Bello.

Bello se tornou conhecido nos últimos anos após ter seu nome vinculado a uma série de atentados a rivais na exploração do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Ele vem negando sua participação nos crimes.

Seu nome ganhou ainda mais notoriedade após a divulgação da série Vale o Escrito, produzida pela Globoplay e que narra as origens do jogo do bicho no Rio de Janeiro e as disputas travadas pelas famílias que controlam a contravenção no Estado.

Segundo Ronnie Lessa, ele foi procurado por um emissário de Bernardo Bello, o ex-PM Edmilson da Silva Oliveira, conhecido como Macalé, no final de 2017. Teria sido Macalé o responsável por repassar a missão a Lessa.

Ocupado com a missão de assassinar Marielle, Lessa chegou a argumentar que a morte da vereadora seria mais "rentável".

"Segundo RONNIE essa tarefa lhe foi apresentada por MACALÉ, tendo em vista que esse auferia o valor de R$ 50.000,00 mensais de BERNARDO BELLO e não tinha como negar um pedido seu. LESSA ainda ponderou dizendo que a empreitada em face de Marielle era mais rentável, mas MACALÉ o convenceu a aceitar e o levou para conversar com BERNARDO", diz um trecho da representação da Polícia Federal ao STF que detalha trechos da delação de Lessa.

De acordo com a Polícia Federal, o que levou Bernardo Bello a encomendar a morte de Regina Celi a Lessa foi a disputa pelo controle do Salgueiro.

Bernardo Bello é casado com Tamara Garcia, filha de Waldomiro Paes Garcia, conhecido como Maninho, que teria comandado os negócios da família Garcia no jogo do bicho durante os anos 1990 e início dos anos 2000. Ele foi morto a tiros em 2004. Após sua morte, Tamara Garcia e Shanna Garcia, sua irmã gêmea, passaram a disputar o controle dos negócios da família.

Regina Celi, segundo a PF, representaria os interesses de Shanna Garcia, o que a colocaria em rota de colisão com o grupo de Tamara e Bernardo Bello.

•        "Alvo paralelo"

De acordo com a PF, Regina Celi era vista como uma espécie de "alvo paralelo" em meio ao planejamento da morte de Marielle.

Lessa contou à PF que chegou a fazer o monitoramento dos passos dos seus dois alvos praticamente ao mesmo tempo.

O ex-PM contou que, inicialmente, o plano era usar um carro diferente para executar Regina Celi. O carro era clonado e acabou sendo rebocado pelas autoridades de trânsito após ser deixado estacionado por um período longo de tempo.

Sem o veículo original, o grupo passou a usar um Cobalt cinza para monitorar tanto Marielle quanto Regina Celi. Foi esse o automóvel usado por Lessa para assassinar a vereadora.

"O GM/Cobalt passou a ser empregado nas duas tarefas, de modo que, assim que fosse cometido qualquer um dos delitos, já havia um jogo de placas adulteradas à disposição da horda para troca imediata, com o fim de dificultar a persecução penal. Assim, constata-se que isso trazia conveniência à empreitada tendente à execução de Marielle, o que foi asseverado por LESSA", diz outro trecho da representação da PF.

A representação da PF não deixa claro os motivos que levaram o grupo de Ronnie Lessa a executar Marielle antes de Regina Celi. Ela cita apenas que, no dia 14 de fevereiro, um mês antes da morte da vereadora, Lessa monitorava Regina Celi durante a apuração dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro quando perdeu seu alvo de vista.

Ronnie Lessa foi preso praticamente um ano depois da morte de Marielle, em março de 2019, no mesmo dia em que o ex-sargento da PM Élcio de Queiroz foi preso. Queiroz admitiu também fez um acordo de colaboração premiada e admitiu que dirigiu o carro usado por Lessa na execução da vereadora.

•        "Triunfo" do Estado brasileiro

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, se manifestou no início da tarde reiterando informações já divulgadas sobre os presos.

Na declaração, durante entrevista coletiva em Brasília, Lewandowski afirmou que a conclusão das investigações e as prisões são um "triunfo expressivo do Estado brasileiro contra a criminalidade organizada".

Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram mortos a tiros no dia 14 de março de 2018.

Segundo as investigações da Polícia Federal, a família Brazão teria encomendado a morte da vereadora por conta de sua oposição a projetos que previam a regularização de empreendimentos imobiliários vinculados a grupos milicianos supostamente ligados a Domingos e Chiquinho.

Os irmãos Brazão e Rivaldo Barbosa foram presos no Rio de Janeiro e transferidos para uma unidade prisional federal em Brasília.

De acordo com o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, as investigações sobre a autoria e os mandantes da morte de Marielle chegaram ao fim.

"Nesse momento, a PF encerra essa fase da investigação", disse o diretor durante entrevista coletiva neste domingo.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário