Karl Rahner. Como a pessoa humana se
aproxima de Deus?
Ele abalava os dogmas,
não suportava as conversas devocionais: Karl Rahner queria transmitir aquilo em
que o indivíduo pode acreditar. Por isso foi admirado – e contestado. No 40º
aniversário de sua morte, o especialista em Rahner, Andreas R. Batlogg, conta a
fascinante história do grande teólogo.
Ao longo de sua vida,
Andreas R. Batlogg honrou não apenas a Deus, mas também a Karl Rahner. Karl
Rahner foi um famoso e corajoso inovador da teologia. Suas ideias ainda hoje
são radicais. Batlogg tem 61 anos, é um jesuíta e um incansável divulgador do mundo
de Rahner.
Na entrevista, ele
fala de forma clara e inequívoca. O que ainda precisamos saber sobre Karl
Rahner hoje – e por quê?
<<<< Eis a
entrevista.
• Sr. Batlogg, circula uma piada que diz
que Deus, diante dos escritos teológicos de Karl Rahner, exclama: “Eu também
não o entendo”. Como pode um leitor normal compreender esse grande teólogo?
O fato de Rahner ser
difícil de ler é um clichê no qual o Papa Francisco também caiu quando
aconselhava os seminaristas: “É melhor vocês lerem Hugo Rahner, irmão de Karl”.
Claro, Karl Rahner é difícil, às vezes escreve frases complexas que se estendem
por páginas. Não poupa ninguém do “esforço de compreensão do conceito”. Mas
pensar e crer andam de mãos dadas, complementam-se. 40 anos após sua morte,
ainda o lemos.
• O que um leigo deveria ler se estiver
interessado nessa figura do século?
Para começar com algo
leve, por assim dizer, pode servir Sobre a necessidade e a bênção da oração.
São homilias quaresmais do inverno da fome de 1946, nas quais ele compara os
porões cheios de escombros dos bombardeios aos corações dos alemães, igualmente
enterrados, após o período do nazismo. Depois recomendo Palavras no silêncio.
Enquanto o lia, parecia que ele estava na minha frente e conversava comigo.
• Que tipo de homem era ele, aquele
“star”, teólogo e padre jesuíta? Nos antigos vídeos parece espiritual,
inacessível e comovente.
Ele era mal-humorado e
propenso à depressão. Era germânico e reservado. E, sim, também era difícil.
Quem recebe 16 títulos honoris causa e muitos prêmios e é considerado uma
estrela. Mas ele não era um professor distante.
• Karl Rahner era uma pessoa cordial?
Sim, gostava das
crianças, brincava com elas, puxava os vagões dos trenzinhos de brinquedo com o
seu rosário. Tinha senso de humor. Uma vez foi convidado para ir à casa de um
amigo. Quando começou a comer, a menina com deficiência da família lhe disse: “Nós
primeiro rezamos!” Ele adorava contar essa anedota.
• Ele era capaz de lidar com as situações
da vida cotidiana?
Karl Rahner era um
jesuíta da velha escola, um “trabalhador”. Mas não sabia costurar um botão,
suas habilidades sociais não eram muito desenvolvidas. Nem precisava, vivia num
internato jesuíta com pensão completa.
• Ele não encontraria o leite em um
supermercado.
Provavelmente não.
• Quando você era um jovem estudante, o
conheceu pessoalmente na década de 1980. Como foi?
Eu ainda não era
jesuíta e frequentava as aulas em Innsbruck. Era tratado quase como um semideus
por seus assistentes. "Ah, Padre Rahner, Padre Rahner!" Isso me
desanimava.
• No entanto, o culto à personalidade não
é comum entre os jesuítas.
Não. Também não era
fácil para os outros jesuítas, porque a imprensa falava sempre e apenas de
Rahner e não deles. Muitas vezes ficava do lado dos teólogos a que Roma se
opunha.
• Se você tivesse que explicar a alguém
que não entende nada de teologia em que consiste a obra de Karl Rahner, o que
responderia?
O Padre Rahner abordou
a tradição de forma criativa. Ele se perguntou: como posso falar essas coisas
para o homem de hoje? Queria transmitir o conteúdo da fé e as definições dos
concílios para que todos pudessem entender.
• Li a introdução do seu famoso livro
Espírito no mundo e não entendi quase nada. Por exemplo, está escrito:
"Não são abordadas de forma alguma questões como a species expressa, o
verbum mentis, a resolutio de uma cognição (nos primeiros principia come nos
sensibilia), as analogia entis, a unidade da apercepção, etc., embora sejam
importantes para a compreensão final das questões aqui discutidas".
Essa era sua tese de
doutorado em filosofia. Ele sempre falhou em escrever de forma compreensível.
Contudo, ele não dirigia sua atenção para temas estranhos ao mundo, mas para
problemas reais enfrentados pelo homem moderno. “Os pensamentos das gerações anteriores
não podem servir de travesseiro sobre o qual descansar”, dizia. A história da
Igreja não acabou, não é tradição morta, devemos continuar a trabalhar nela”.
• O livro Espírito no mundo tornou Rahner
instantaneamente famoso entre os teólogos em 1939. Do que trata?
Nessa obra ele trata
de Tomás de Aquino. Seu irmão Hugo pensava que o título fosse estúpido e dizia
que era banal. E mesmo o subtítulo não é vendável como simples título
principal: “Sobre a metafísica do conhecimento finito em Tomás de Aquino”.
Nela, Rahner falava de um Deus misterioso e insondável. Ele não dizia: “Eu sei
exatamente o que é Deus”.
• De que ambiente vinha Karl Rahner?
Ele vinha de uma
família de professores de Freiburg, devotos, mas, como ele mesmo esclarecia,
não demais. Rezavam muito, o terço, iam à missa. Seus pais também acolhiam
hóspedes de fora, que moravam de aluguel na casa e eram cuidados. Entre eles
estava o filho do embaixador italiano, falecido jovem e posteriormente
beatificado: Pier Giorgio Frassati. O jovem Karl brincava com ele na floresta.
Seu crescimento na fé foi natural. Rahner fazia parte de um movimento juvenil
católico, o Quickborn, no qual valores como liberdade e autodeterminação eram
importantes. Em seguida obteve o diploma do ensino médio e três semanas depois,
em abril de 1922, ingressou na ordem dos jesuítas.
• Parece uma escolha direcionada.
Ele absolutamente
queria isso. Seu irmão Hugo já havia ingressado em 1919 e havia se tornado um
historiador da Igreja. A formação jesuíta naquela época significava: dois anos
de noviciado, três anos de estudos de filosofia, um ou dois anos de experiência
profissional, por exemplo numa escola. Depois, quatro anos de teologia. Após
três anos de teologia o formando se tornava padre.
• Quase parece um quartel.
Eles não voltavam para
casa durante a formação. Eram como doze anos de quarentena, um trabalho
espiritual e intelectual. Um exercício jesuíta. Num colégio, 150 ou 200
candidatos ao sacerdócio viviam isolados e usavam batina. Durante um período de
formação na Holanda, Karl Rahner foi apicultor — por quê? Porque com as abelhas
ele tinha permissão para fumar. De resto, ele sempre apenas estudou. Em 1932
foi ordenado padre pelo Cardeal Faulhaber em Munique. Na época, Faulhaber disse
aos candidatos após a missa: “Tempos difíceis os aguardam, ser padre agora não
é fácil”.
• Os nacional-socialistas estavam prestes
a chegar ao poder.
Poucos meses depois da
ordenação veio a tomada do poder. Rahner fez seu doutorado primeiro. Foi
influenciado pelo filósofo de Friburgo Martin Heidegger, cujos conceitos em
parte adotou. Um ano após seu doutorado teológico em Innsbruck, já havia obtido
a habilitação. Em 1937 tornou-se docente de teologia em Innsbruck e tratou da
graça, isto é, da capacidade de Deus de acolher as pessoas no amor sem
pré-condições. Em 1938, a Áustria foi anexada pela Alemanha nazista. A partir
daquele momento ele não pôde mais trabalhar normalmente.
• Ele fugiu?
Os nazistas fecharam a
faculdade de Innsbruck. Muitos jesuítas exilaram-se na Suíça. Rahner estava
realizando uma conferência em Leipzig na época. Ele voltou e o internato onde
morava foi ocupado pela Gestapo. Eles lhe disseram: “Você tem 30 minutos para
fazer as malas”. Ele foi banido da Gau e inicialmente foi para Viena, onde
continuou a ensinar clandestinamente e desempenhou atividades pastorais sob a
orientação do cardeal Innitzer.
• Quando Rahner começou sua carreira
acadêmica como jovem professor na década de 1930, qual era a situação da
teologia católica e da Igreja, mesmo fora da Alemanha?
Estava fervendo. Havia
os movimentos juvenis críticos e tentativas de reforma da liturgia. No início
do século XX havia um movimento que foi chamado de modernismo. Pio X demonizou
as ideias modernistas e, em 1910 impôs, um chamado juramento antimodernista que
todo clérigo tinha que prestar. Os papas mais uma vez tentaram limitar tudo. O
sistema de ensino neoescolástico prevalecia nas faculdades teológicas em todo o
mundo.
• O que significa?
Tudo na teologia tinha
que ser baseado em Tomás de Aquino, o mais importante escolástico da Idade
Média. A língua era o latim. Por isso era possível vir de Nova York a Innsbruck
e entender tudo o que se falava nas aulas. As respostas eram as mesmas em todo
o mundo. O que é a graça? Teriam dito a mesma coisa na Cidade do Cabo e em
Paris. Todos os livros didáticos eram idênticos. A neoescolástica era estéril.
Mas: o cânone das perguntas sobre a vida há tempo havia se tornado
completamente diferente. Karl Rahner conhecia bem a tradição, mas se
perguntava: o que tudo isso significa para as pessoas de hoje?
• Obviamente ele não vivia numa torre de
marfim.
Não, ao contrário de
Joseph Ratzinger, que escrevia de forma brilhante, mas que vivia num paraíso
platônico de ideias do qual não desceu. Naquela época se estudava teologia como
se estivéssemos numa sociedade composta apenas por homens, só por acaso se encontrava
uma mulher e não havia nenhuma preparação para uma vida pastoral por meio dos
estudos. O credo de Rahner era: a teologia não é “l'art pour l'art”, mas deve
servir para anunciar. Quando, depois da guerra, ele ensinou junto com seu irmão
em Innsbruck, eles se tornaram um ímã. Bispos de todo o mundo enviavam
seminaristas a eles.
• Com as suas abordagens modernas, Rahner
encontrou-se em oposição ao magistério romano?
Nunca. Ele nunca
deixou dúvidas sobre a sua eclesialidade. Bem, na década de 1950 ele recebeu
uma chamada pré-censura quando se tornou impopular entre os conservadores com
um manuscrito que tratava do dogma da assunção corporal de Maria ao céu. Outros
críticos desse dogma, incluindo os dominicanos franceses, só puderam deixar o
seu convento sob proteção. Muitos foram excomungados. Houve uma glaciação
teológica.
• Lemos sobre conflitos com Roma na década
de 1950 e com a ordem. Por que ocorreram? Não estavam todos felizes por haver
uma estrela dos jesuítas?
Ele não era a única
estrela e tinha que trabalhar como parte de uma equipe. Ele não podia escolher
as suas aulas. No início era: você é o mais novo, você ensina a graça, a
criação, o pecado. Sempre estava ocupado com sermões, sempre no confessionário.
Isso o deixava abatido. Ele sabia que não poderiam existir dois mundos
diferentes: o ensino nobre e o cuidado pastoral. Todos queriam seus escritos
naqueles anos. Mas admito: os jesuítas também são humanos. Havia ciúmes e
invejas. Sempre se acabava em conflito com Roma por causa de denúncias. Era
assim que funcionava na época, é preciso dizer com clareza.
• Ele escreveu apenas sobre alta teologia?
Não, ele também
escrevia sobre pastoral carcerária, sobre a missão nas estações ferroviárias ou
sobre a biblioteca paroquial. Na década de 1950, tornou-se coeditor do Lexikon
für Theologie und Kirche, que ainda é atual hoje em dia. Cada faculdade o tinha
em suas prateleiras, então todos o conheciam. Seus escritos foram traduzidos
para vários idiomas. E ele não tinha escritório nem secretário. Era ajudado por
jovens jesuítas e estudantes, a quem encorajava, mas certamente também
explorava. Karl Lehmann, que mais tarde se tornou cardeal, era um deles.
• Que tipo de “pastor” era Rahner?
Ele levava todo mundo
a sério. Organizava retiros, era uma espécie de guia espiritual. Ele não
deixava que o professor circulasse por aí. Ele roubava comida da cozinha da
universidade para os filhos de um amigo. Ele nunca passou a ninguém a sensação
de que sua pessoa o incomodava. E por outro lado, falava com cientistas ou
mesmo marxistas do mais alto nível. Com eles o Padre Rahner estava no Olimpo.
• Nesse contexto, devemos falar de Luise
Rinser. Uma sua conhecida especial.
Ela escrevia poesia e
era divorciada de Carl Orff. Absolutamente queria conhecer Rahner. Ele se
tornou o seu guia espiritual. E depois se viu completamente indefeso. Porque
provavelmente se apaixonou pela primeira vez na vida, quando já tinha cinquenta
anos. Suas cartas provam isso. Ela se chamava Wuschel, ele Fisch.
• Sabemos até onde isso foi?
Ela teve relações com
um abade beneditino, o que o deixou com ciúmes. Certa vez perguntei a Karl
Lehmann: por que vocês não o ajudaram a sair dessa? Ele respondeu que não
ousavam. Quando saiu, seus críticos disseram que ele levava uma vida dupla.
Certamente, ele não fez isso.
• No entanto, isso o torna humano.
Por um lado, sim. Por
outro lado, hoje temos uma sensibilidade diferente quanto às transgressões no
cuidado pastoral.
• Em 1959, o recém-eleito João XXIII
convocou o Concílio Vaticano II. A Karl Rahner foi pedido para participar. Como
se chegou a essa decisão?
O que todos se
perguntavam era: depois do Concílio Vaticano I de 1869/70, há necessidade de
outro Concílio, se o Papa pode agora insistir na infalibilidade e tem um
primado de jurisdição e pode decidir tudo sozinho? João XXIII achava que era
necessário. Ele viu o enorme atraso das reformas. Ele não queria mudar a
doutrina, mas queria atualizá-la, chamava isso de “atualização”. Os
conservadores pensavam: faremos um pequeno concílio, um concílio relâmpago.
Tudo acabará em dois meses. Em vez disso, demorou três anos.
• Como estavam as coisas no Vaticano?
No Concílio Vaticano I
havia aproximadamente 800 bispos em Roma. Em vez disso, cerca de 2.500 bispos
mais os assessores foram a Roma para o Concílio Vaticano II, o que significa
que 15.000 homens envolvidos no Concílio estavam presentes nas sessões em Roma.
As sessões aconteceram de setembro a dezembro. No início, Rahner não era um
grande fã da ideia do Concílio. O que mais pode acontecer?, ele pensava.
• Depois mudou de ideia?
Recebeu os esquemas
preparatórios que haviam sido escritos na Cúria em Roma. Deixaram-no chocado.
Ele disse: um concílio não pode permitir-se uma filosofia tão absolutamente
inaceitável! Essas pessoas não têm a menor noção de ação pastoral! Ele percebeu
que sem um forte empenho as coisas passariam em silêncio.
• O seu bispo o levou consigo para Roma
como assessor?
Cada bispo podia
trazer um teólogo, Rahner veio para ficar ao lado do cardeal Franz König. Como
Rahner era tão importante e trabalhador, o próprio Papa o nomeou perito,
conselheiro. Joseph Ratzinger também se tornou um perito.
• Que relação existia entre estas duas
estrelas, talvez os últimos teólogos da história a serem reconhecidos na
sociedade civil?
Rahner apoiou
Ratzinger, que era 20 anos mais novo. No entanto, quando a situação ficou
desconfortável na universidade, Ratzinger fugiu. Ele escrevia bem. Mas...
• Mas?
Quando ouço que ele
foi o maior teólogo depois de Tomás de Aquino ou que foi um “papa teólogo”,
penso que é um exagero. Ele tinha uma linguagem compreensível, sim, mas também
vinha de um mundo diferente daquele de Rahner. Os dois se encontraram no Concílio
e escreveram juntos textos brilhantes, que foram incluídos nos documentos
finais do Concílio.
• Demorou três anos para redigir esses
documentos?
Sim, o trabalho
continuou depois das semanas de sessões em Roma. Os teólogos trabalhavam em
laboratórios para os textos. É preciso dar-se conta que o Concílio realmente
mudou a doutrina, disse coisas que antes eram impensáveis.
• Por exemplo?
O Concílio Vaticano I
havia declarado que não existe liberdade de consciência e de pensamento para os
católicos, que é uma ideia que vem do diabo! O Concílio Vaticano II diz o
contrário. Rahner estava envolvido nessa modernização. Depois veio o decreto sobre
o ecumenismo com a hierarquia das verdades. Afirma que pode haver salvação
também fora da Igreja, até para os ateus. Isso era algo inaudito. Depois houve
a renovação completa da Missa, a introdução das línguas locais. O Concílio deu
uma virada de 180 graus.
• Essa afirmação tradicionalista de que a
doutrina é imutável é uma lenda sem fundamento?
Exato. E ao mesmo
tempo, no seu primeiro discurso de Natal como Papa à Cúria, Ratzinger disse que
a doutrina sempre tem uma continuidade. Tudo entrou em ebulição novamente.
Rahner teria gritado bem alto: “Não é assim que funciona, caro Joseph
Ratzinger!”, isso teria dito. O Concílio Vaticano II teria ido ainda mais
longe. Na época o Papa retirou alguns temas do Concílio. Planejamento familiar,
por exemplo. Outro tema foi o celibato. Muitos pensavam que aos padres teria
sido permitida a liberdade de escolha.
• Realmente se pensava isso?
Sim, muitos decidiram
ser ordenados porque pensavam que o Concílio teria mudado as coisas. Mas não
foi assim. A Igreja Católica nunca foi tão apreciada em todo o mundo como na
época do Concílio Vaticano II. Foi um despertar geral. Muitas das ideias modernas
do Concílio também podem ser reconduzidas ao Padre Rahner. Mas ele não foi o
“escritor-fantasma do Espírito Santo” do Concílio, como afirmam as fontes
restauradoras.
• No entanto, a apreciação mudou…
Nos anos que se
seguiram à conclusão do Concílio, as coisas começaram a desmoronar. No verão de
1968, Paulo VI publicou a encíclica Humanae vitae, na qual proibia a
contracepção artificial. Foi uma catástrofe. Depois vieram as nomeações
episcopais de João Paulo II na década de 1980, com as quais ele queria alinhar
todos novamente. Karol Wojtyla inicialmente participara do Concílio como bispo
auxiliar, mas pertencia à minoria teológica. Karl Rahner percebeu esse recuo,
que o frustrou bastante. O declínio havia começado. No catolicismo e também
nele.
• Ele se tornou um idoso decepcionado e
amargurado?
Não, mas estava
frustrado pelos desenvolvimentos da Igreja pós-conciliar. Ratzinger uma vez
também criticou Rahner de forma obscena. Os dois haviam se distanciado um do
outro porque Ratzinger havia se tornado subitamente conservador a partir de
1966.
• Rahner nunca se tornou bispo, não estava
interessado no poder?
Ao contrário de
Ratzinger, ele teria o conhecimento necessário da natureza humana para o cargo
de bispo. Mas não estaria tão interessado nas cerimônias litúrgicas. Ela era o
que os outros chamam de “javali jesuíta”. Não sei se Rahner fosse candidato ao
cargo de cardeal. Como cardeal, também estaria vinculado à lealdade do posto.
Esse também é um velho truque.
Hans Küng também
recebeu a oferta do cargo de bispo por esse motivo. Ele "recusou-se a ser
comprado". João Paulo II parabenizou Karl Rahner por seu octogésimo
aniversário e Rahner teve uma audiência privada. O Papa perguntou: "O que
você está fazendo agora?" Rahner respondeu: "Estou em Innsbruck
esperando a morte".
• É uma expressão muito triste.
Perto do fim da vida,
os jovens jesuítas o levavam para tomar sorvete. Depois do Concílio, estava
exausto, cansado, havia dedicado todas as suas forças ao Concílio. Ele definia
esse retrocesso como um inverno. Ele tinha uma secretária, a quem muitas vezes
pedia para acompanhá-lo de Innsbruck, através do passo do Brenner, até Trento
para tomar um café. Ele adorava os carros velozes. Na estrada, ele dizia:
“Vamos fazer saltar o cavalo!”
• O que o Padre Rahner teria pensado do
Caminho Sinodal, o processo de reforma da Igreja Católica alemã?
Especulação. Uma coisa
é certa: para ele a teologia era um serviço para as pessoas, não uma ciência
contra elas. Ele teria gostado de Francisco.
• Se você pudesse transmitir um pensamento
importante de Rahner, qual seria?
Nos seus últimos anos
de vida, ele falava muitas vezes do esquecimento de Deus: Deus não pode mais
ser considerado algo dado como certo. Ele não estava interessado nos discursos
sobre as reformas e os impostos eclesiásticos. Mas se perguntava como poderia
fazer as pessoas entenderem que existe vida após a morte, que ainda há algo por
vir. Para ele tudo isso era óbvio, mas o via desvanecer nas pessoas. Ele
frequentemente falava sobre isso com os jovens.
• Estamos vivendo uma provação da Igreja,
o risco de uma dilaceração. Cada nova modernização leva o Papa a ser suspeito
de heresia, continentes inteiros duvidam da sua permissão para abençoar os
homossexuais. O que é mais importante no sentido de Rahner: o progresso ao
serviço do homem ou a unidade da Igreja?
Não devem
necessariamente ser mutuamente exclusivos, ele diria. Mas: a Igreja deve estar
ao lado das pessoas, com os marginalizados. Com aqueles que são marginalizados
pela vida. Francisco quer mostrar aos conservadores que a sua fidelidade ao
Papa dura enquanto o Papa fizer o que eles querem. E se não o fizer, então
pensam em voz alta – veja o Cardeal Müller – em como depô-lo. Nenhum Papa
encontrou tanta resistência.
• Os conservadores dizem que isso está
enfraquecendo a tradição.
Posso barrar qualquer
processo de reforma apelando para a tradição. Só se pode derrotar os
tradicionalistas com a tradição mostrando-lhes que a sua tradição tem no máximo
200 anos. Existem tradições enterradas e suprimidas. É possível escrever algo
assim com Francisco. Antes dele não era possível. O sucesso do seu papado
dependerá do seu sucessor. Os conservadores já poderiam estar preparando as
coisas para que seja um deles. Se um novo papa retirar as reformas, o
catolicismo perderá toda credibilidade. Tenho certeza de que o Padre Rahner
pensaria da mesma maneira. Ele sempre dizia: “Precisamos de uma boa teologia.
Não precisamos de conversas piedosas”. Ele não derrubou nenhum dogma.
• O que fará no aniversário de sua morte?
Já escrevi quatro
artigos. Toda a minha vida foi caracterizada pelos seus ensinamentos. Fui
responsável pelo arquivo de Karl Rahner e li a sua correspondência. Tenho à
disposição 32 volumes da edição completa. Isso me comove profundamente pela
enorme dedicação com que escrevia. Mas não acredito que conseguirei ter uma
visão global da sua grandiosa produção.
• Pensávamos que iria para Innsbruck
naquele dia.
Ainda não sei, mas
ainda me lembro de 31 de março de 1984, quando eu estava em Jerusalém. Ouvimos
no rádio que Karl Rahner tinha morrido em Innsbruck no dia anterior. Um jesuíta
sentado ao meu lado ficou com a voz embargada. Eu tinha 22 anos, me pegou de
surpresa e pensei: e agora?
• Qual a importância do Padre Rahner no
nível histórico mundial?
Como teólogo, está no
mesmo nível de Santo Agostinho, Tomás de Aquino e Boaventura. Rahner repensou
tudo: graça, ecumenismo, cristologia. O Cardeal Lehmann disse certa vez:
“Rahner é um homem para depois de amanhã”. Rahner conhecia os documentos da
Igreja, “mas eles não me deixam viver”, dizia ele. No próximo ano celebraremos
o 1700º aniversário do Concílio de Niceia. O Credo foi escrito lá.
Mas o que tudo isso
significa? O que significa “da mesma substância do Pai”? O que significa
"verdadeiro homem e verdadeiro Deus"? O que significa “Deus em três
pessoas”? O que significa “Jesus é Deus”? Rahner refletiu sobre tudo isso. Ele
cunhou a famosa frase: o homem piedoso de amanhã será um místico ou não será.
• O que significa?
Se a Igreja como
instituição for desmantelada e degenerar num clube que se limita a um certo
tipo de comportamentos, então é importante que apenas o indivíduo tenha uma
experiência de Deus que o sustente. Rahner se perguntou: como posso educar as
pessoas para que isso seja possível? Isso se chama mistagogia. Se a Igreja se
torna uma minoria, como podemos fazer com que o indivíduo tenha uma experiência
de Deus? Uma ideia desse tipo torna o clero quase supérfluo. Como você vê, o
Padre Rahner não era apenas difícil de ler, também era um homem perigoso.
Fonte: Entrevista com
Andreas R. Batlogg para Christina Rietz, em Die Ziet – Christ & Welt -
tradução de Luisa Rabolini, para IHU
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