segunda-feira, 4 de março de 2024

Guilherme Mazieiro: Como Lula 'isentão' abandonou a pauta da esquerda

Não se debruçar sobre a Ditadura Militar porque é “coisa do passado”, apoiar o fim das saidinhas de presos, fugir da discussão sobre aborto e liberação de drogas fazem parte do novo figurino de Lula (PT). Mais do que abrir mão de temas caros para sua base e que inflamam seus opositores, o presidente optou por barrar essas discussões. As mulheres que o digam, em 2023, perderam representatividade nos ministérios para quadros do centrão.

É ano eleitoral, e Lula prefere falar grosso e sem papas na língua quando o assunto é Venezuela, Hamas e Rússia. Assim que o petista tem alimentado o coração dos esquerdistas, mesmo que isso custe rusgas e tensões diplomáticas ao país.

A base governista que já tinha votado pelo fim da saidinha, nesta semana corroborou a proposta de emenda à Constituição (PEC) que amplia as isenções para igrejas. Teve mais. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, recuou e suspendeu uma nota técnica que trata sobre aborto. O documento nada mais fazia do que reforçar o que está previsto em lei, sem criar nenhuma novidade ou estímulo ao aborto. Mas a rápida repercussão na oposição e em lideranças religiosas foi suficiente para melindrar o governo, que invalidou o documento.

Em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, na RedeTV!, o presidente disse que não quer tratar da Ditadura Militar - período funesto da história que começou há exatos 60 anos, em 1964, e se estendeu por 21 anos.

“Eu fico pensando que, nesse tempo que teve o golpe militar, eu passava muita fome com a minha mãe e o irmão. Não quero ficar lembrando disso, não”, disse Lula, que inclusive, foi preso na ditadura pelas greves sindicais.

Um presidente não pode negar ao país uma discussão histórica porque isso relembra os sofrimentos pessoais que viveu. Postura diferente teve a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), também presa na ditadura - e pior, torturada - , que criou a Comissão Nacional da Verdade, em 2011. Em 2012, durante a instalação do órgão, Lula esteve presente e pode ouvir Dilma dizer que: "A ignorância sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantém latente mágoas e rancores".

O posicionamento de Lula destoa de ministros como Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania. Almeida planeja ações para que o país “não se esqueça” dos anos de chumbo e aguarda que o Planalto autorize a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura.

Os militares, aliás, merecem destaque à parte. Na entrevista à RedeTV!, elogiou o ministro da Defesa, José Múcio. O mesmo ministro que relativizou a tentativa de golpe contra o país e o governo. Foi Múcio quem disse, em entrevista ao O Globo mês passado, que o que viu em 8/1 foi uma manifestação de “senhoras, crianças, rapazes, moças... Como se fosse um grande piquenique, um arrastão em direção à Praça dos Três Poderes. Foi um movimento de vândalos, financiados por empresários irresponsáveis”.

A fala está situada em um universo paralelo, muito distante da realidade que todos vimos e das informações contidas nas investigações da Polícia Federal. Aliás, Múcio mesmo pouco fez para punir militares. Ele e Lula abdicaram da responsabilidade, passada à PF e ao STF.

É verdade que Bolsonaro, quando presidente, não emplacou toda sua cartilha reacionária. A força política que o parlamento adquiriu nos últimos anos dificulta a aprovação de pautas que não sejam consensuadas entre as grandes bancadas. Mas Bolsonaro agiu onde pôde para inflamar a base: no Ministério da Educação, Direitos Humanos e liberou armas. Deu certo, como vimos na grande mobilização de domingo, 25.

No Congresso, pautas ideológicas avançam se casadas com um “algo mais”, como benefícios setoriais. O marco temporal, patrocinado pela bancada ruralista e partidos de centro, é um exemplo. O projeto foi uma derrota para o governo Lula, que vetou o tema e empurrou a decisão para o STF.

A agenda legislativa de Lula foca na economia, programas sociais e pauta verde, sustentável. A disputa cultural foi abandonada e ganhou força nas discussões da extrema-direita.

Trago uma análise feita pelo ex-ministro José Dirceu, em janeiro. Condenado no Mensalão e na Lava Jato e fora do jogo político, o petista é saudado na esquerda por sua habilidade de análise e percepção das forças que influem na sociedade.

“Nesses anos, houve uma mudança social e cultural enorme. Por causa do fundamentalismo religioso, por causa da ocupação dos territórios por força dos partidos de direita. E nós recuamos. Vimos agora no primeiro de maio (de 2023). Não houve uma mobilização nacional”, disse ao programa petista POD13 Bahia.

Lula, parece apostar que a melhora da economia resolverá a maior parte dos problemas e será suficiente. Não custa lembrar que os primeiros atos da queda de Dilma (e da esquerda) começaram em 2013, quando o país registrava o maior PIB per capita de sua história.

•        Lula “não mudou nada” da linha econômica de Bolsonaro, diz Ciro Gomes

O ex-presidenciável Ciro Gomes (PDT) comparou a gestão da política econômica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Ao CNN Entrevistas, Ciro disse que Lula “não mudou nada” em relação a Bolsonaro e que a linha econômica do governo segue a mesma.

Não mudou nada. É chocante o que eu estou dizendo. Desde os dados graves da economia, superávit primário, meta de inflação, câmbio flutuante. Justo ou não, correto ou não, qual a diferença no manejo do modelo econômico que o Lula pratica e o Bolsonaro? - Ciro Gomes.

Para Ciro, a elite do país entrou em uma polarização em esquerda e direita que, na prática, não representou mudanças efetivas na economia nacional.

O ex-governador e ex-ministro afirmou ainda que o ministro da Previdência, Carlos Lupi, presidente nacional do PDT, tem sido desautorizado por Lula sobre a redução dos juros do crédito consignado.

E ressaltou que desistiu da vida pública por causa da “prostração da sociedade civil brasileira”. Ele ressaltou que não pretende mais se candidatar a cargo nenhum.

Eu não desisti, eu fui desistido. Eu estou lutando por outras obras. Só não quero submeter as minhas ideias a um processo eleitoral viciado. Eu não pretendo mais ser candidato a nada. Vamos ver se eu consigo. - Ciro Gomes.

Na entrevista, Ciro disse que, apesar da proximidade entre Lula e Bolsonaro na política econômica, o governo petista se diferencia por ter uma “civilidade no tratamento do valor da democracia”.

“Você ter alguém do campo da democracia, sabe com quem você pode dialogar, sem ter o risco amanhã de levar um tiro. Só que isso é uma âncora que amarra a gente ao passado. O meu compromisso é com o futuro”, afirmou.

Procuradas pela CNN, a assessoria de imprensa da Presidência da República não respondeu às críticas de Ciro e a de Jair Bolsonaro disse que não quer comentar.

Questionado pela CNN, Ciro disse que estaria disposto a dialogar com Lula caso fosse chamado para uma conversa. No Palácio do Planalto, assessores do governo dizem que Lula não desistiu de retomar uma relação com Ciro.

“Olha, você imagina se eu não estou disposto. Eu converso até com Satanás se o assunto for a obra de Deus”, afirmou.

Por causa do apoio a Lula, Ciro deixou de falar com o irmão, o senador Cid Gomes (PSB-CE). Os dois não retomaram o diálogo desde as eleições de 2022.

Na entrevista, Ciro disse ainda que Lula tem “falado bobagens”, como a comparação do ataque de Israel à Faixa de Gaza com a perseguição de judeus na Segunda Guerra Mundial.

O Lula é aquilo que eu chamo de arrogância ignorante. É uma ignorância arrogante. - Ciro Gomes.

Quando questionado sobre qual conselho daria ao presidente, Ciro disse que ele tem de deixar de querer ser um “popstar estrangeiro”.

“O Lula tem essa virtude. Ele é muito trabalhador. O Bolsonaro era um preguiçoso. Tem muita gente que também não sabe o tamanho da preguiça. Melhora a sua equipe. É uma equipe ‘indizível’. Gente deslumbrada”, afirmou.

•        Precatórios

Ciro também falou sobre a liberação de R$ 93 bilhões pelo governo Lula para pagar precatórios.

“Eles [o governo] venderam os precatórios para bancos, para poucos bancos, dois bancos, que compraram esses precatórios com deságio de até 50%”. Para Ciro, “isso é uma falcatrua maior que a do mensalão e do petrolão juntos”.

Procurado pela CNN sobre a acusação de Ciro sobre o pagamento dos precatórios, o governo não se manifestou.

 

Ø  Luis Felipe Miguel: “é absolutamente necessário lembrar do golpe e da ditadura”

 

É difícil combinar o Lula que fez a denúncia tão corajosa do genocídio do povo palestino e o Lula que parece ter pânico de melindrar os generais de seu próprio país.

Sua declaração sobre o golpe de 1964 – de que se trata algo que pertence exclusivamente ao passado e sobre o qual não vale mais a pena falar – é absolutamente irresponsável com a tarefa, que ele tem, de restaurar as condições para a retomada democrática no Brasil.

Lula disse que está mais preocupado com a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023 do que com o golpe bem-sucedido de março e abril de 1964. Parece, por sua fala, que não há nenhuma relação entre um e outro.

Parece que a falta de enfrentamento das consequências da ditadura e, em particular, a falta de punição para todos os responsáveis pelos crimes nela cometidos não estão entre os fatores principais da debilidade da democracia no Brasil. Parece que aqueles que estavam dispostos a golpear novamente a Constituição e perpetuar Bolsonaro no poder não se inspiravam na ditadura que vivemos entre 1964 e 1985.

Lula diz que os generais de hoje não são os generais que deram o golpe em 1964. Diz que eles não eram nem nascidos então, o que é um certo exagero, mas tudo bem, eram crianças. Não passavam de oficiais de baixa patente ao final da ditadura.

Mas o que ele faz questão de não dizer é que, embora os generais sejam outros, a mentalidade militar é a mesma.

Décadas se passaram desde o retorno dos civis ao poder, décadas da vigência de uma constituição formalmente democrática, mas nada se fez para adaptar a corporação militar seja à convivência na democracia, seja ao primado do poder civil.

Os chefes militares brasileiros de hoje não participaram do golpe. Mas são incapazes de fazer a autocrítica institucional. Continuam cultuando torturadores e julgando que sua intervenção ilegítima no jogo político é justificável por um motivo ou por outro.

Muitos deles não quiseram embarcar na aventura que o bolsonarismo lhes propôs (nem por isso combateram ativamente a conspiração golpista). Na verdade, tendo ou não simpatizado com o plano arquitetado por Bolsonaro, por Braga Neto e por Heleno, nenhum deles abre mão de continuar controlando os recursos de poder que lhes garantem a possibilidade de manter o sistema político brasileiro sob permanente chantagem fardada.

Não é só ideologia, a vontade de manter o Brasil livre da “ameaça comunista”, seja lá o que isso for. É o que lhes garante benesses imorais – impunidade para seus crimes, vantagens financeiras extravagantes, oportunidades para corrupção, mordomias, a absoluta falta de qualquer exigência de mínima competência profissional.

A desmoralização profunda das Forças Armadas, por seu envolvimento nas lambanças bolsonaristas, abre a chance de agir – punir golpistas e corruptos, mexer na formação, reafirmar valores básicos (como o que diz que militares não se metem em política), reforçar o poder civil. Infelizmente, viciado em apaziguar, capitular e recuar, o governo desperdiça a oportunidade.

Ao contrário do que disse o presidente, é absolutamente necessário lembrar do golpe e da ditadura. Seria necessário mesmo que fossem passado, pois temos que aprender com a história.

Mas nem passado são.

 

Fonte: Terra/CNN Brasil/Racismo Ambiental

 

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