Folclore brasileiro: o surgimento e a
história por trás das lendas
Mula sem cabeça,
saci-pererê e curupira. Se os nomes soam familiares, você já ouviu falar um
pouco sobre o folclore brasileiro - e é bem provável que tenha sido na escola,
durante o Dia do Folclore, em 22 de agosto. Apesar de ser uma parte fundadora
da cultura do país, o folclore só se popularizou há pouco mais de um século,
por iniciativa principalmente do escritor Mário de Andrade.
A palavra folclore é
um neologismo e vem da junção dos termos em inglês "Folk" e
"Lore". Traduzindo para português significa "sabedoria do
povo", ou seja, representa as expressões culturais de um povo e a
identidade cultural de um país. Pode ser representado por histórias, danças,
festas e até comidas típicas.
O folclore,
normalmente, é transmitido de maneira oral, e por isso as histórias perdem ou
ganham novos elementos conforme são recontadas. No Brasil, elas foram
influenciadas por culturas indígenas, africanas e até europeias. Devido a essa
influência, é possível encontrar no nosso repertório personagens como bruxas,
zumbis e até o lobisomem.
Neste texto, o GUIA DO
ESTUDANTE lista as principais lendas e ainda levanta uma discussão: essas
histórias deveriam ser encaradas como mitos ou como religiosidade viva dos
povos indígenas?
• A história do folclore no Brasil
O folclore ganha um
holofote acadêmico quando o autor Mário de Andrade está à frente do
Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, em 1930. O autor teve papel
relevante na difusão da cultura popular através de suas obras, principalmente
em "Macunaíma", onde reúne inúmeras narrativas da tradição
brasileira. Ele foi um autor do Modernismo, movimento de teor nacionalista que
ressaltava elementos da cultura nacional.
Neste ano, houve a
criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), sendo
a primeira denominação do órgão federal de proteção ao patrimônio cultural
brasileiro. Hoje, é chamado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN). O SPHAN começou a funcionar oficialmente em 1936. A partir de
1947 a cultura popular ganhou ainda mais força no país com a criação da
Comissão Nacional de Folclore, responsável por organizar o I Congresso
Brasileiro de Folclore, no Rio de Janeiro, em 1951.
Já em 1958, foi criada
a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), durante o governo do
ex-presidente Juscelino Kubitschek. A campanha tinha o objetivo de garantir a
preservação do acervo folclórico brasileiro. Pouco tempo depois, a década de
1960 contou com a Revista do Folclore Brasileiro como grande difusora das
pesquisas realizadas na área.
O Dia do Folclore
Brasileiro, que é comemorado em 22 de agosto, surgiu através do Decreto nº
56.747, que foi assinado em 17 de agosto de 1965 pelo então presidente da
Ditadura Militar, Humberto Castello Branco. O objetivo da criação desse dia era
incentivar o aprendizado sobre o assunto e garantir a preservação da cultura
popular brasileira. Apesar disto, a Ditadura Militar de 1964 freou os estudos
sobre a tradição nacional, que voltou a acelerar apenas nos anos 1990 com o
VIII Congresso Brasileiro de Folclore, que aconteceu em Salvador, em 1995.
Quando a democracia
foi restabelecida, a Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 216,
substituiu o termo Patrimônio Histórico e Artístico por Patrimônio Cultural
Brasileiro ampliando seu conceito estabelecido pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de
novembro de 1937.
Mitologia ou religiosidade indígena?
Recentemente,
ativistas e pesquisadores indígenas passaram a questionar o papel do folclore
no imaginário do país. Eles argumentam que histórias tidas como mitológicas
pelo folclore são, na verdade, parte de religiosidades indígenas seculares - e
diferentes entre si. Retratá-las como fábulas ou histórias infantis, portanto,
contribuiria para o apagamento dessas culturas.
Autor do livro "O
Saci verdadeiro", o escritor indígena Olívio Jekupé afirma que o
personagem da lenda é, na verdade, uma entidade guarani. " Jaxy Jaterê,
ele é o protetor da floresta. Então, na aldeia, a gente já tem esse
conhecimento de história, que a gente sempre ensina pras crianças. O nosso
personagem Jaxy Jaterê, ele não é um folclore, ele é uma história viva, que é
contada até os dias de hoje", afirmou em entrevista ao Hypeness.
O mesmo ocorre com
outros nomes populares, como "Maukanaimã" - transformado em Macunaíma
por Mario de Andrade -, uma entidade macuxi.
• As lendas do folclore brasileiro
É claro que as
histórias do folclore brasileiro, como são difundidas hoje, destoam da maneira
como surgiram entre povos indígenas, africanos e europeus. Parte disso se deve
ao processo de banalização delas, como apontam lideranças indígenas, e parte à
cultura oral.
Espalhadas de um canto
ao outro do país, elas ganharam novos elementos e perderam outros, mas seguem
fazendo parte do imaginário popular do país. Conheça algumas das lendas mais
famosas - e não estranhe se a história for um pouco diferente da que ouviu quando
criança ou da região onde mora.
• Boto cor-de-rosa
O boto cor-de-rosa é
um animal que realmente existe e vive nas águas d as bacias dos rios Amazonas e
Solimões. Ele é conhecido como o maior golfinho de água doce do mundo, sendo
encontrado não apenas no Brasil, mas também Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e
Venezuela. Segundo a lenda, o boto deixa os rios à noite em busca de conquistar
e engravidar mulheres jovens, sumindo logo depois. Ele frequenta bailes e
festas, conquistando jovens moças ribeirinhas. Ao deixar o rio, ele se
transforma em um homem muito bonito, bem vestido, que usa chapéu para cobrir o
buraco que tem em sua cabeça, e ofuscar o cheiro de peixe, voltando para o rio
antes do amanhecer sem que ninguém veja.
• Negrinho do Pastoreio
Esta é uma lenda mais
conhecida na região Sul do Brasil. Por lá, o negrinho do pastoreio é
considerado santo. A origem do conto é uma combinação africana com cristã. O
personagem era um menino escravizado que recebeu um milagre de Nossa Senhora
que intercedeu pelo seu sofrimento passado nas mãos de um fazendeiro. Uma
versão da história conta que, após perder uma corrida contra o dono da fazenda,
o menino foi obrigado a pastorear trinta cavalos negros. Ele acabou perdendo os
cavalos duas vezes até acender uma vela para Nossa Senhora e conseguir
recuperá-los.
O Negrinho do
Pastoreio se tornou o santo das causas perdidas e a tradição popular diz que se
você perder algo, é só acender uma vela pedindo sua ajuda para encontrar o
item.
• Iara
A Iara é a sereia
brasileira. Também pode ser conhecida como Mãe d'Água. Segundo a história, ela
mora nos rios amazonenses e é responsável por seduzir homens e afogá-los. Usava
sua voz apaixonante e beleza física para atrair os pescadores, ou qualquer um
que estivesse às margens do rio. Segundo a lenda, Iara era uma mulher indígena.
Seus irmãos tentaram assassiná-la, pois tinham inveja da guerreira que ela era,
fazendo uma emboscada. Ela matou todos os irmãos ao se defender e fugiu, com
medo da reação de seu pai. Iara foi encontrada e jogada entre o Rio Negro e o
Solimões para se afogar, porém foi salva pelos rios e se tornou senhora das
águas, que é o significado de seu nome em tupi.
• Tutu
O Tutu é uma lenda
sobre uma entidade que perseguia e devorava crianças que não dormiam no horário
correto e agiam de maneira desrespeitosa com os mais velhos - ou seja, uma
espécie de bicho-papão. A história tem raízes europeias e africanas, e está
ligada às canções de ninar como "Nana neném", que cita outro mito, a
Cuca. Tutu não tem uma forma definida. Ele ficava à espreita, nas portas dos
quartos, observando. Dependendo da região do país, ele pode se chamar
Tutu-Marambaia, Tutu-Zambê, Tutu Marambá, entre outros. Seu nome tem origem na
palavra "quitutu" do idioma quimbundo falado em parte do território
de Angola. O significado da palavra é "ogro" ou "papão".
Tutu tem sua própria
canção de ninar que pode ser encontrada no livro Geografia dos mitos
brasileiros de Luís da Câmara Cascudo:
"Calai, menino,
calai,
Calai, que lá vem
tutu,
Que no mato tem um
bicho
Chamado
Carrapatu."
• Mãe de ouro
Esta figura,
dependendo de quem conta a história, pode ser descrita tanto como um mulher ou
uma bola de fogo. Esteve muito presente onde a mineração foi relevante no
período colonial, ou seja, nos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Mato
Grosso. Sua lenda possui duas versões. Em uma, ela ajudava os mineradores a
encontrar o ouro. Na outra, ela protegia o ouro da ganância dos mineradores.
• Guaraná
Nesta lenda, o guaraná
nasceu dos olhos de um menino indígena . O garoto era apaixonado pelas frutas
que encontrava pela floresta. Um dia, foi picado por uma cobra e morreu por
conta do veneno. Tupã, entidade das crenças tupi-guarani, vendo a tristeza dos
pais, solicitou que eles plantassem os olhos do filho no solo. Dali nasceu o
fruto guaraná em homenagem ao menino.
• Mandioca
Na lenda da mandioca,
uma jovem indígena que estava grávida deu a luz a uma menina chamada Mani.
Porém, um ano depois, sua filha morreu. Seguindo a tradição de seu povo, ela
foi sepultada dentro da oca e dali nasceu um pé de mandioca que alimentou a
tribo. A mandioca era uma essencial fonte de alimento para os indígenas.
• Mula sem cabeça
Esta uma lenda
extremamente popular não só no Brasil, como em toda a América Latina. Ela conta
a história de uma mulher que foi amaldiçoada, se transformando em uma mula com
cabeça de fogo. Seu castigo é ferir pessoas e animais, já que feriu a lei de
deus. A punição foi dada porque a mulher se relacionou com um padre, fazendo
com que o homem quebrasse seu juramento com a religião. Em uma versão da lenda,
a mulher se transforma na noite de quinta-feira para a sexta-feira e permanece
mula durante toda a madrugada, voltando a ser mulher apenas ao primeiro cantar
do galo. Em outras versões, o galo precisa cantar três vezes.
Versões da história
dizem que a mula tem uma cabeça, que está em chamas, por ela usar um freio na
boca. A retirada deste freio permitiria que a mula voltasse a ser mulher para
sempre, quebrando a maldição. Em outras versões, para quebrar a maldição é preciso
atingir a mula com um objeto pontiagudo. Há ainda a versão que diz que a
mulher, ainda em forma humana, se for amaldiçoada por um padre sete vezes antes
de uma missa, não se transformaria em mula sem cabeça na noite de quinta.
• Lobisomem
O lobisomem possui sua
própria versão nacional. Apesar da parte principal da história ser a mesma que
já conhecemos por meio de outras culturas e na mídia, um homem que se
transforma em lobo quando está na lua cheia, o lobisomem brasileiro tem uma
origem peculiar. Segundo histórias populares, o lobisomem é o sétimo filho
homem ao nascer em uma família, sem ter tido nenhuma menina antes. Este sétimo
filho é amaldiçoado, forçado a se tornar lobisomem e atacar a vizinhança
• Boitatá
O Boitatá é descrito
como uma cobra em chamas e seu papel é proteger as florestas. De origem
indígena, o primeiro a relatar esta lenda foi o padre jesuíta José de Anchieta
enquanto estava no Brasil para catequizar a população indígena. O Boitatá não é
uma cobra comum. Ele é descrito como tendo vários olhos pelo corpo, por ter
engolido a pupila de muitos animais, e desses olhos saem as suas labaredas.
Além disso, ele emite uma luz muito forte.
Ao receber os relatos
dos indígenas, o padre escreve que a criatura era chamada de chamada
"baetatá", em tupi, é a junção das palavras "mbai", que
quer dizer "coisa", e tatá, que significa "fogo". Ou seja,
coisa de fogo. Descrito como um tipo de fantasma que perambulava pela floresta
a protegendo de quem quisesse fazer mal ao ambiente. O Boitatá, no entanto, nem
sempre foi uma cobra. Em Santa Catarina, ele era um touro com um olho no meio
da testa.
• Curupira
O Curupira é o
protetor das floretas. Descrito como um garoto com cabelos com de fogo de baixa
estatura, seus pés são virados ao contrário, para enganar caçadores que invadem
florestas, fazendo com que eles se percam para sempre. Em algumas variações ele
pode ter dentes verdes. Era um ser respeitado inclusive pela população
indígena, que faziam oferendas a ele antes de adentrarem a floresta. Foi uma
das primeiras histórias indígenas registrada pelos portugueses.
• Saci-pererê
Uma das lendas mais
conhecidas, o Saci-pererê é responsável por criar o caos. Descrito como um
garoto sapeca de uma perna só, ele faz travessuras deixando um moinho de vento
depois que se vai. Ele é apenas travesso, e não maldoso. Algumas lendas dizem
que você consegue capturar um Saci com uma garrafa com tampa. Após capturado,
ele deve servir à pessoa que o capturou, emulando quase um gênio da lâmpada,
porém sem a regra dos três desejos. Depois do acordo feito, o Saci é solto, mas
ele pode ou não cumprir o que prometeu e até causar mais dano à pessoa que
tentou ludibriá-lo.
Como já mencionado, no
entanto, a origem da lenda do Saci está na religiosidade tupi. A entidade de
nome Jaxy Jaterê é, na verdade, um menino indígena de uma perna só que protege
a floresta.
• Cuca
A Cuca seria o
equivalente brasileiro da bruxa europeia. Apesar dela ter se popularizado
através da obra de Monteiro Lobato como um jacaré gigante loiro, originalmente
ela era descrita como uma mulher velha, corcunda, com cabelos grisalhos e a
pele enrugada. Sua lenda conta que ela sequestrava crianças desobedientes à
noite, enquanto ronda as casas.
Ela tem uma das
cantigas de ninar mais famosa que é a "Nana neném":
"Nana neném,
Que a Cuca vem pegar
Papai foi pra roça,
Mamãe foi
trabalhar"
• Corpo-seco
O corpo-seco é
equivalente ao zumbi. Esta foi uma alma condenada a vagar como um defunto após
ter sido uma pessoa horrível durante a vida, sendo rejeitada por deus, no céu,
e pelo diabo, no inferno, então a terra o cuspiu do túmulo. Esta lenda é mais
comum no Sul e Sudeste do Brasil e é influência da cultura europeia, também
estando presente na cultura popular dos portugueses.
A razão dele ter sido
rejeitado é variável. Algumas histórias dizem que ele matou a própria mãe,
outras que ele fez uma promessa a deus e não cumpriu. Outras se contém a dizer
que ele simplesmente foi uma pessoa terrível com todos ao seu redor. A lenda não
tem um padrão. Algumas dizem que ele prefere ficar próximo aos locais onde
morou, outras que frequenta casas abandonadas.
Em alguns estados,
como no Paraná, o corpo-seco é possuído por outra lenda, o bradador, que é um
fantasma que, durante a noite, se manifesta por meio de gritos, choros e
gemidos horrendos.
• O folclore além das lendas
Além das lendas,
também existem crenças populares que fazem parte do folclore brasileiro como
comer uvas e romãs no Ano Novo para ter sorte e fortuna durante o decorrer do
ano que inicia, ou colocar uma ferradura atrás da porta para espantar o
mau-olhado. Outras crenças dizem que apontar para a constelação "Três
Marias" faz nascer verrugas no dedo indicador e bater três vezes em
madeira afasta coisas ruins. Existem também crenças de azar como cruzar com um
gato preto, passar debaixo de uma escada e a sexta-feira 13 como um todo ser um
dia de desgraças. Já para sorte, as crenças falam sobre o trevo de quatro
folhas e o pé de coelho.
Além das crenças
populares, também há as festas que pertencem às tradições do Brasil, como a
Festa Junina, o Carnaval, o Congado, Folia de Reis e o Festival de Parintins.
Já as danças que fazem parte da cultura popular são o baião, catira, quadrilha,
maracatu, samba de roda, frevo, entre outras. Brincadeiras também entram na
lista como o estilingue, soltar pipa, pega-pega, esconde-esconde, bolas de gude
e o pião. Na literatura o folclore aparece em forma das publicações por cordel.
Fonte: Guia do
Estudante
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