quinta-feira, 28 de março de 2024

ENCONTRADO UM CNPJ PARALELO DA CAMPANHA DE BOLSONARO CRIADO COM E-MAIL DE MAURO CID

O E-MAIL DO EX-AJUDANTE de ordens da Presidência da República, o tenente-coronel Mauro Cid, foi usado para criar um CNPJ extra-oficial, em nome de um laranja, para a campanha à reeleição de Jair Bolsonaro. A empresa foi fundada em maio de 2022 em Blumenau, interior de Santa Catarina, e não foi declarada ao Tribunal Superior Eleitoral.

A razão social “Eleição SC 2022 Jair Messias Bolsonaro Presidente Ltda” foi registrada com o e-mail mauro.cio@presidencia.gov.br. Seu único sócio é um homem chamado Rene Moacir Teodoro, morador de Itajaí, também em Santa Catarina.

Teodoro morreu pouco depois da eleição, em 18 de dezembro. No atestado de óbito, a causa é descrita como parada respiratória por obstrução das vias aéreas. O Intercept Brasil entrou em contato com dois familiares. Segundo eles, Teodoro faleceu durante uma refeição, possivelmente engasgado comendo carne. “O Samu veio, mas não conseguiu reanimar com os procedimentos”, me disse um de seus irmãos.

Segundo a família, Teodoro tinha deficiência intelectual e nenhuma relação com o então presidente Jair Bolsonaro ou mesmo com militantes bolsonaristas. “Ele odiava política”, reiterou um de seus irmãos.

O e-mail mauro.cio@presidencia.gov.br, grafado desta forma, erroneamente, é o mesmo utilizado no CNPJ oficial usado na campanha eleitoral de Bolsonaro.

O CNPJ paralelo ficou ativo por três meses, de 12 de maio até 11 de agosto de 2022. A empresa foi fechada exatamente um dia depois do CNPJ oficial ser validado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

A Receita Federal determina que todos os candidatos e partidos políticos devem ter um CNPJ. É pelo cadastro que é feita a abertura de conta bancária com a finalidade de receber doações e recursos próprios. O CNPJ também é necessário para receber os recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha.

Só após a apresentação do registro de candidatura à Justiça Eleitoral é que a Receita atribui, de forma automática, um número de CNPJ ao candidato.

No caso de Bolsonaro, o CNPJ oficial da campanha foi registrado em 10 agosto de 2022 em Brasília. Os dados utilizados no cadastro são os mesmos informados pelo candidato à Justiça Eleitoral. Lá consta o e-mail mauro.cio@presidencia.gov.br.

Um dos advogados de Bolsonaro, Paulo da Cunha Bueno, respondeu ao contato do Intercept sobre o assunto. Por meio de mensagem, afirmou simplesmente: “Desconheço essa história”. Depois, disse que iria “tentar apurar”. Mas não retornou. Outro assessor do ex-presidente, Fábio Wajngarten, visualizou uma mensagem enviada pela reportagem, mas não respondeu. O advogado de Mauro Cid, Cézar Bittencourt, não respondeu aos questionamentos.

•        Laranja foi agredido por agiota e vivia com benefícios do governo

Nos dados da Receita Federal, Rene Moacir Teodoro aparece como único dono de seis empresas – a maior parte, comércios atacadistas. Mas, nos endereços cadastrados, em cidades do interior de Santa Catarina, não existem atividades comerciais.

Teodoro sobrevivia com benefícios do governo federal. Segundo a família, desde 2015, seu nome era usado por golpistas para criação de empresas fictícias. “Em 2015, ele entrou no INSS e, de lá pra cá, começaram a aparecer empresas e dívidas”, disse um irmão.

O vazamento de dados do INSS é comum no Brasil. Em fevereiro, o órgão chegou a ser condenado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados por não comunicar vazamento de CPFs, dados bancários e data de nascimento de pensionistas, informações que podem ser usadas em fraudes e em roubo de identidade.

Segundo seus familiares, Teodoro também estava envolvido com dívidas. “Meses antes de morrer, um agiota agrediu ele. E feio. Essa gente está envolvida nessa falcatrua, com certeza”, me disse um dos seus irmãos.

Uma consulta feita à base de dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional demonstra que, somente em dívidas tributárias com a União, Teodoro tinha débitos superiores a R$ 1,4 milhão – o que demonstra a dimensão das atividades financeiras da quadrilha que estava usando ilegalmente seus dados.

•        Dados de cadastro são informados pelos sócios e administradores, diz prefeitura

O Intercept consultou a Prefeitura de Blumenau para verificar se a administração municipal checa a autenticidade dos e-mails informados para a abertura de empresas no município. Por meio de uma resposta por e-mail, a gestão respondeu simplesmente que “não”.

Dois contadores consultados pelo Intercept confirmaram que as informações de contato são de responsabilidade dos sócios e administradores.

“Você pode informar qualquer e-mail e telefone no cadastro. No entanto, é bastante recomendável que seja criado um e-mail próprio para a empresa. Se não optar por criar, a prática correta é informar o e-mail de um dos sócios ou do contador se ele autorizar”, disse um contador após a reportagem apresentar o caso.

Uma servidora da Praça do Empreender, divisão da prefeitura que atua no tema, disse, por meio de uma ligação telefônica, que empresas como a de Teodoro devem ser abertas por meio de um contador com registro profissional.

Na Junta Comercial de Santa Catarina, o nome fantasia que consta na inscrição estadual da empresa com o nome da campanha de Bolsonaro – e que não aparece na base de dados federal – é Líderes Despachantes.

No dia 29 de agosto de 2022, um contador chamado Paulo Ricardo de Andrade Silva criou uma outra empresa com o nome fantasia de Líderes Despachantes também em Blumenau. Mas não conseguimos contato com nenhuma dessas empresas.

•        ‘Fatos são gravíssimos e precisam de apuração urgente’

O Intercept apresentou os documentos e informações ao advogado Martim de Assis Arantes, que tem ampla experiência com Direito Eleitoral, tendo atuado em diversas campanhas nos últimos anos. Segundo ele, os fatos são “absolutamente estranhos” e “é urgente que sejam esclarecidos e que haja uma investigação aprofundada pelos órgãos competentes”.

“Há uma série de situações equivocadas, irregulares e ilegais que podem ter ocorrido. O primeiro passo é entender quem usou a empresa, e se a pessoa estava ligada ao então presidente, ao seu partido ou à sua equipe. Ou, então, se foi utilizada por um terceiro agindo de má-fé em nome do presidente para obter recursos – o que também configura como um crime, só que não ligado a Bolsonaro. Mas, caso tenha sido utilizado para fazer arrecadação irregular, há um problema grave”, afirmou Arantes.

O advogado apontou que “as campanhas têm prazo para fazer a captação de doações e o fechamento da empresa se deu antes do início do prazo”. Mais que isso, de acordo com Arantes, “toda arrecadação precisa ser feita por meio de conta oficial para que seja usada exclusivamente na campanha. Mesmo que estivesse no prazo, se a doação é feita em outra conta, é ilegal”.

•        E-mail funcional usado para registrar CNPJ eleitoral é violação

Em setembro de 2022, revelei que o e-mail funcional mauro.cio@presidencia.gov.br foi usado para o registro do CNPJ da campanha de Bolsonaro. Na época, Cid era ajudante de ordens da Presidência da República e, segundo têm demonstrado as investigações da Polícia Federal, era o principal assessor do então chefe do Executivo.

Na ocasião, advogados e especialistas em Direito Eleitoral me disseram que o fato demonstra que servidores e serviços custeados pelo governo não estavam sendo usados com a finalidade prevista nas normas dos órgãos a que pertenciam.

“Naturalmente, o CNPJ da campanha deve estar vinculado ao candidato ou ao seu partido. Não me parece minimamente aceitável que ele esteja cadastrado em um e-mail institucional da Presidência”, afirmou Fernando Neisser, fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral.

O site da Procuradoria-Geral Eleitoral, do Ministério Público Federal, aponta uma série de condutas vedadas pela legislação eleitoral que podem se enquadrar no caso. Entre as proibições, está o uso de “materiais ou serviços, custeados pelo governo, que não sejam para finalidade prevista nas normas dos órgãos a que pertençam”.

Outras condutas proibidas são a utilização de “servidor ou empregado do governo, de qualquer esfera, para trabalhar em comitês de campanha durante o expediente, exceto se o funcionário estiver licenciado” e “fazer propaganda para candidato com distribuição gratuita de bens ou serviços custeados pelo poder público”.

•        Mauro Cid não deixou rastros em seu e-mail

O endereço de e-mail utilizado por Mauro Cid no governo era, de fato, mauro.cid@presidencia.gov.br, e não mauro.cio@presidencia.gov.br. Não fica claro, no entanto, por que o CNPJ usado na campanha oficial de Bolsonaro traz a conta com a grafia errada. Muito menos porque o mesmo e-mail foi utilizado para criar o CNPJ paralelo.

Em julho do ano passado, o Intercept revelou que Mauro Cid esvaziou sua caixa de e-mail institucional antes de deixar o Palácio do Planalto.

Alvo de pedido de quebra de sigilo telemático pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do 8 de Janeiro, Mauro Cid não deixou rastros na conta mauro.cid@presidencia.gov.br – pelo menos no período entre a derrota de Bolsonaro nas urnas, em outubro de 2022, e a posse de Lula, em janeiro de 2023.

A informação foi obtida por meio da Lei de Acesso à Informação, depois que registramos diversas solicitações à Presidência da República para acessar os dados do e-mail de Cid. Uma das respostas do Planalto revelou que o ex-ajudante de ordens pode ter apagado os registros de sua comunicação pela conta de e-mail institucional.

Em agosto do ano passado, uma planilha entregue à CPI do 8 de janeiro pela Casa Civil mostrou que Cid tentou acessar seu e-mail funcional 99 vezes mesmo após o governo Lula bloquear seu login, em 15 de março de 2023. Antes de ser bloqueado, Cid acessou seu e-mail cerca de 500 vezes já durante o novo governo.

Segundo um documento enviado pela Casa Civil, depois de 31 de dezembro do ano passado, “constam registros de validação das credenciais do agente público mencionado na requisição [Mauro Cid], realizadas por meio dos servidores de rede que disponibilizam o acesso via internet ao serviço de correio eletrônico”.

 

Fonte: Por Paulo Motoryn, em The Intercept

 

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