Carlos Wagner: Golpe de estado de Bolsonaro
falhou porque brasileiro é viciado em liberdade
Durante as mais de
quatro décadas em que estou na lida de repórter fiz uma longa lista de amigos
que conheci pelos rincões do mundo enquanto fazia cobertura de conflitos
agrários, migrações e crime organizado. Muitos deles, inclusive eu, esquecem do
fuso horário e ligam durante a madrugada para colocar os assuntos em dia. Foi
em uma conversa numa noite de sexta-feira (15/03) que pintou a história do
envolvimento do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) com a tentativa
do golpe de estado que tem como símbolo o quebra-quebra que seus seguidores
realizaram, em 8 de janeiro de 2023, nos prédios do Palácio do Planalto, do
Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três
Poderes, em Brasília (DF). Em depoimento à Polícia Federal (PF), os
ex-comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Força Aérea,
tenente-brigadeiro do ar Carlos Almeida Baptista Júnior, colocaram as digitais
de Bolsonaro em toda a articulação da tentativa do golpe.
Na conversa,
concordamos que foi fundamental os depoimentos terem atirado a bronca do colo
do ex-presidente. Até porque não era segredo para ninguém a disposição de
Bolsonaro de tentar um golpe de Estado. Ele sempre defendeu às claras os
saudosistas do golpe de 1964. E começou a articular o golpe no dia seguinte ao
que tomou posse na Presidência da República. Em 7 de julho de 2021 tratei do
assunto no post “Sonho de menino de Bolsonaro era ser um general nos tempos da
ditadura militar”. Nos dias atuais, há um fato que contribuiu para o fracasso
do golpe que precisa ser lembrado na cobertura da imprensa, que é o seguinte.
Os militares governaram o país de 1964 a 1985. Foram anos duros, sem liberdades
individuais, com censura à imprensa, prisões, tortura e morte de presos
políticos. A reação da sociedade civil à ditadura é uma longa história que pode
ser encontrada em livros, documentos e muitas reportagens. Uma dessas histórias
é a dos grandes movimentos populares que começaram a surgir e tomar corpo da década
de 1970, como o Movimento Feminino pela Anistia, em 1975, fundado pela advogada
e ativista pelos direitos humanos Therezinha Zerbini (1928-2015). Em 1979, a
Lei da Anistia trouxe de volta ao país lideranças políticas que viviam exiladas
em vários países. Anos depois, na década de 1980, o então senador alagoano
Teotônio Vilela (1917-1983) deu o chute inicial no que se tornaria um dos
maiores movimentos de massa do Brasil: a campanha das Diretas Já, que mobilizou
milhões de pessoas em todo o país pela aprovação do que ficou conhecido como
“emenda constitucional Dante de Oliveira”, porque levava o nome do deputado
mato-grossense que apresentou o projeto que reinstalava as eleições diretas
para presidente da República. Esses movimentos de massa serviram para conscientizar
várias gerações de brasileiros de seus direitos políticos. O regime militar
acabou em 1985. Em 1988 foi publicada a nova Constituição.
No golpe militar de
1964 eu tinha 14 anos e vivia no interior do Rio Grande do Sul. Na década de
1970, nas lutas pela democratização do país, era um jovem de 20 e poucos anos.
Tive quatro filhos, que foram educados dentro de um ambiente de plena liberdade
política. Imagina chegar para os meus netos e dizer que eles não podem fazer
tal coisa porque o governo proíbe. A geração dos meus filhos e netos é viciada
em liberdade e não tem como recuar. Se alguém desse um golpe militar hoje
haveria uma guerra civil no Brasil. Na ocasião em que o ex-presidente intimou o
general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista a apoiá-lo no golpe, eles
recusaram. Mas o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, concordou. Uma
pergunta que os repórteres precisam fazer para o almirante: no caso da
população civil reagir aos golpistas, ele daria a ordem para os navios
bombardearem as cidades costeiras do país, como o Rio de Janeiro? Recomendo
para os meus colegas e para quem não é jornalista a leitura de um livro.
Chama-se Todo aquele imenso mar de liberdade: a dura vida do jornalista Carlos
Castello Branco. Castelinho (1920-1993), como era conhecido, foi o maior
colunista político que já apareceu na imprensa brasileira. Tive a honra de
conhecê-lo em Brasília. Estava lá para receber um prêmio jornalístico e houve
um atraso na entrega. Ficamos conversando sobre política agrária por uma hora.
Ele falava de modo pausado e preocupado se quem o ouvia estava entendendo. O
livro revela os cantos escuros da política nacional. Não interessa se a
tecnologia mudou a nossa maneira de escrever as reportagens. O fato é que ainda
contamos uma história que tem início, meio e fim. E a liberdade imprensa é tão
fundamental para a nossa existência de repórter como o oxigênio é para todos os
seres vivos.
A democracia é
fundamental para o Brasil se perfilar entre os países desenvolvidos do mundo,
fui lembrado pelo meu amigo na conversa de sexta. Ele disse que, no seu
entendimento, a caminhada do país já enfrentou algumas barreiras. Mas continua
avançando. Respondi que durante a pandemia de Covid (2020 a 2021), quando
Bolsonaro transformou em política de governo o seu negacionismo em relação ao
poder de contaminação e letalidade do vírus, escrevi que a democracia no Brasil
era jovem. Mas tinha musculatura para sobreviver às investidas autoritárias do
governo federal e garantir a sobrevivência dos brasileiros. Não deu outra. Os
ministros do STF enquadraram o governo e asseguraram a compra de vacinas e a
instalação no país das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A derrota da tentativa de golpe de Bolsonaro começou lá nos anos 60, quando os
estudantes saíram às ruas e lutaram pela democracia. O sacrifício deles, dos
que lutaram pela anistia e pelas diretas não pode ser esquecido pela imprensa.
Temos um passado de lutas pela democracia que não pode ser esquecido.
Mauro Cid lamenta ter tido a vida
destruída por Bolsonaro
Áudio divulgado na
noite de quinta-feira (21), pela Revista Veja, o tenente-coronel Mauro Cid
desabafa com um conhecido a respeito dos últimos anos de sua vida, em que
serviu como ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e acabou
preso por conta de uma série de crimes do mandatário que, pela sua função, o
ajudou a cometer. Entre esses crimes está a tentativa de golpe de Estado que
impediria a posse de Lula (PT) e manteria o capitão reformado no poder.
Foi graças à delação
premiada de Mauro Cid, que aparentemente acaba de descobrir como funciona uma
investigação e um interrogatório policial, que a Polícia Federal foi fechando o
cerco ao próprio Bolsonaro, a seus assessores e comandantes militares que planejavam
solapar a democracia brasileira.
No áudio, Cid reclama
da abordagem dos policiais e diz que foi induzido a mentir para validar uma
narrativa que já estaria posta. No entanto, o desabafo só mostra o quando o
ex-ajudante de ordens não conhecia absolutamente nada a respeito de uma
investigação policial. Os investigadores fizeram uma devassa nos seus celulares
e foram descobrindo, aos poucos, cada detalhe da trama. Durante os seis
depoimentos que prestou após fechar o acordo de delação premiada, Cid foi
confrontado com as descobertas prévias. Mas como um bom bolsonarista, o
tenente-coronel se sente uma verdadeira vítima.
“Eles queriam que eu
falasse coisas que eu não sei, que não aconteceram. E não adianta, você pode
falar o que você quiser. Eu vi isso ontem. Podia falar o que quisesse, eles não
aceitavam e discutiam. Discutiam que a minha versão não era verdadeira, que não
podia ter sido assim, que eu tava mentindo. Já estão com a narrativa pronta,
não queriam saber a verdade. Só queriam que eu confirmasse a narrativa deles”,
afirmou no início do áudio vazado.
A seguir, Cid
demonstra mais um pouco do seu desconhecimento acerca da atividade policial. É
de conhecimento público que quando as autoridades vão fazer um acordo com um
criminoso, seja ele quem for, é comum que a barganha se dê a partir das
possíveis penas que o depoente irá cumprir caso seja condenado. Mesmo após
muitos anos no Exército, onde provavelmente teve aulas sobre como extrair
informações em interrogatórios, Cid simplesmente insiste em fazer uma narrativa
persecutória.
“Ele até falou:
‘vacina, por exemplo, você vai ser indiciado por nove negócios de vacina. Nove
tentativas de falsificação de vacina, vai ser indiciado por associação
criminosa e mais um termo lá’. Daí ele falou assim: ‘só essa brincadeira já são
30 anos pra você’. Senti que já estão com a narrativa pronta e querem o máximo
possível de gente para confirmar”, afirma.
Em outro trecho,
repete teorias conspiratórias bolsonaristas de que o ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal, seria uma espécie de “monarca”
extraoficial do país.
“O Alexandre de Moraes
é a lei. Ele prende e ele solta a hora que quiser. Com ou sem Ministério
Público, com ou sem acusação. Quando eu falei naquele encontro do Alexandre de
Moraes com o presidente, eles ficaram desconcertados. Eu falei: ‘ó, quer que eu
fale? Não vou botar no papel senão eu vou me foder’. Mas o presidente encontrou
secretamente o Alexandre de Moraes na casa do Ciro Nogueira. E aí? O Alexandre
de Moraes já tem a sentença pronta. Só está esperando passar o tempo, o momento
que ele achar conveniente denunciar todo mundo, o PGR acata, aceita e ele
prende todo mundo”, declarou.
A seguir Mauro Cid
finalmente tem um lampejo de lucidez e reclama, com todas as letras, sobre a
sua vida ter sido completamente destruída por Jair Bolsonaro, a quem serviu de
maneira tão fiel como ajudante de ordens por todos esses anos.
“Quem mais se fodeu
fui eu, quem mais perdeu coisa fui eu. Pega todo mundo aí. Ninguém perdeu
carreira, ninguém perdeu vida financeira como eu perdi. Todo mundo já era
quatro estrelas, já tinha atingido o topo, né? O presidente teve pix de
milhões, ficou milionário. Está todo mundo aí. Pra quem é político é até bom
essas porras porque depois ele consegue se eleger fácil. O único que teve pai,
filha e esposa envolvidos; o único que perdeu a carreira; o único que perdeu a
vida financeira, toda fudida, fui eu”, lamentou.
Por fim, Mauro Cid
concluiu dando a entender que não pretende ser a ‘bucha de canhão’ dos
preguiçosos golpistas. E que, se necessário for, entregará todo mundo.
“E se eu não colaborar
vou pegar 30 ou 40 anos porque estou em vacina, em joia. Então vai entrar todo
mundo em tudo. E se somar as penas vai dar mais de 100 anos pra todo mundo. E
arrisco dizer que os ‘bagrinhos estão pegando 17 anos, os mais altos vão pegar
quanto?”, questionou.
Logo após a divulgação
dos áudios, e dada a péssima repercussão para todos os lados, Mauro Cid teria
dito a aliados – conforme publicado por Igor Gadelha no Metrópoles – que o
áudio é verdadeiro e que se trata e um desabafo feito a amigo próximo. “Foi um
desabafo com um amigo. Alguém que teve a vida destruída e está desabando com um
amigo”, teria dito. O ex-ajudante de ordens aparentemente não tem muita sorte
com suas amizades.
Fonte: Observatório da
Imprensa/Fórum
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