Cândido Grzybowski: Por que a nossa
democracia continua encurralada?
Volto a uma questão
central em minhas análises e reflexões sobre a democracia de baixa intensidade
que temos. A conjuntura política atual me impõe tal questão. No início do
Governo Lula 3 levantei a hipótese do
desencurralamento da democracia brasileira como um necessidade e uma
possibilidade, desde que… houvesse tal objetivo estratégico e vontade política.
Mas parece que estamos mais patinando do que avançando com determinação no
enfrentamento de uma questão central para sonharmos com uma democracia ecossocial
transformadora, em busca de direitos de igualdade na diversidade, como forma de
cuidar de gente e da natureza.
Já se foram um ano e
alguns meses do Lula 3 e até agora não vejo sinais de desencurralamento a
partir do Poder Executivo, que recebeu nosso voto vitorioso na última eleição.
As maiores novidades ainda continuam sendo produzidas pelo Poder Judiciário,
num lento mas virtuoso processo institucional, que cabe a ele mesmo, de
desmonte e condenação dos responsáveis pela trama criminosa de golpe que vinha
sendo armado desde o Palácio do Planalto, pelo governo da extrema direita. Seu
papel é este mesmo, dentro da institucionalidade democrática. Mas isto tudo é
pouco diante dos desafios que temos para voltar a acreditar e sonhar que “outro
Brasil é possível”. Retomada de políticas sociais, praticadas no período dos
governos petistas de 2003-2016, vem se mostrando importante, mas por si só é
pobre para a reconstrução democrática necessária. Precisamos, sobretudo, voltar
a pensar e construir estrategicamente um projeto de país de democracia viva,
que supõe disputar e conquistar hegemonia democrática desde o chão da sociedade.
Lamentavelmente, tal tarefa é adiada, em nome da governabilidade. É isto que
queremos? Ficar patinando e se contentando com pequenos avanços aqui e ali?
Deixar a extrema direta definir a agenda e o quanto dá ou não dá para avançar?
Isto não é ter um projeto democrático!
Será que o Governo
Lula tem alguma estratégia para romper com o que nunca foi rompido
politicamente e que impede a democracia
brasileira de avançar? Afinal, se houve o golpe de 2016 e depois a derrota
eleitoral, em 2018, e um governo de extrema direita com uma agenda autoritária
e fascista entre 2019-2022 é porque nossa democracia ainda não conseguiu
extirpar o câncer destrutivo que vem lá da ditadura. Os grandes avanços na
Constituição de 1988 não foram capazes
de impedir a “conciliação de interesses e forças” como regra institucional de
governabilidade. Ela se manifesta no
imaginário politicamente fraco, que não nos permite avançar em “memória,
verdade e reparação”, no controle democrático das Forças Armadas, portanto na
segurança cidadã, nem num elemento fundamental que é ter um Congresso Nacional
com uma genuína representação da diversidade do que somos como povo e nação.
Propor o “avançar com
calma” é não romper o encurralamento da democracia. Pior do que isto, é não ter
perspectiva de real mudança. Evitar o enfretamento político somente com
composições caso a caso, cedendo sempre aqui e lá, em votações no Congresso e
se entregando ao poder do Centrão conciliador, “das bancadas do agronegócio, da
mineração, da bíblia e da bala”, não é uma estratégia de desmonte do mal
antidemocrático. Pequenos avanços combinados com concessões só são vantajosos
para a estratégia da extrema direita e suas bases, contando com o Centrão
fisiológico em seu apoio. Isto é um sinal desmobilizador, que não nos incentiva
a participar para romper correlações de forças na intensidade e determinação
necessárias, sabendo que temos as estratégicas eleições municipais deste ano,
nos territórios locais em que vivemos todas e todos.
Sem dúvida, como
cidadanias ativas não estamos fazendo a nossa parte, pois também estamos
encurralados e nem sabemos onde e como incidir a partir do chão da sociedade.
Queremos desencurralar o governo e
livrá-lo das artimanhas que diariamente lhe são impostas para governar, mas
precisamos de sinalizações de rumos possíveis. Nossas lideranças de movimentos
sociais e de partidos de esquerda parecem estar esperando por algo, quando
deveriam assumir seu papel com mais vontade e garra. A disputa de ideias está como que adiada,
apesar do pipocar de iniciativas as mais diversas entre nós mesmos, porém sem
maior impacto no seio da sociedade civil.
O imaginário caldo de visões, análises e ideias, criado pela difusão
sistemática de fake news, articulada pela extrema direita através de redes
sociais, penetra no cotidiano de grandes contingentes da população. Estamos
diante de um desafio estratégico, que não é fazer o mesmo de nosso lado, mas
fazer com responsabilidade, criatividade e determinação a disputa de ideias e
propostas.
O fato objetivo é que não vemos sinais e nem
sentimos vontade por parte de nossos representantes lá na esfera do poder
estatal em relação a tal questão estratégica. Creio que os setores mais
organizados das redes de cidadanias ativas concordam comigo de que não foram
abertos verdadeiros canais de comunicação, participação social e diálogo
virtuoso para nos mobilizar nas ruas em torno a propostas que valham a pena.
Não existem dúvidas, na minha análise, sobre o quão fundamental que foi a
vitória eleitoral de 2022. Mas o 8 de janeiro de 2023 mostrou a cruel realidade
política polarizada que temos. E o que nos é passado pela estratégia
governamental é para ter paciência… que os bons resultados virão… algum dia.
Virão mesmo?
Celebrar algo aqui e
lá é não ter estratégia de enfrentamento da disputa de propostas e de políticas
para a nossa democracia encurralada há muito tempo. O trabalho político
fundamental está longe de se limitar às necessárias negociações democráticas no Congresso, que é
parte da institucionalidade, mas não é espaço de monopólio da política capaz de
fazer avançar as coisas. A disputa democrática para valer se faz no chão da
sociedade e não lá no Planalto!
O que está sendo
produzido e comunicado pelo Governo Lula não está sendo no tamanho e na direção
necessária. Os índices de aprovação do
governo, em baixa, demonstram muito bem que algo fundamental não está funcionando. Fazer bom discurso lá fora ajuda e aumenta
nossa autoestima, mas… não desencurrala
a democracia aqui dentro. Também pouco ou nada ajuda a mera retomada de boas
políticas, sem um verdadeiro desmonte das ruins e, sobretudo, sem inovações e
novos horizontes. Pior de tudo, ficamos de fora e não temos nenhum sinal virtuoso no desmonte do cruel arcabouço fiscal feito sob medida
para a “convivência” com o parasitário financismo dos 1% de especuladores, a
maior demonstração que continuamos com uma agenda neoliberal antidemocrática,
limitante fundamental para avanços em mudanças econômicas democraticamente
necessárias.
A sensação que está no
ar é que a estratégia do Governo Lula 3 é mais de composição com o Congresso e
menos de composição com a cidadania que o elegeu e que precisa ser alargada,
para realmente evitar que a extrema direita volte. Temos um inimigo claro a
enfrentar para poder avançar com uma democracia
ecossocial capaz de realizar transformações: o bloco da direita
autoritária, sua estratégia e seus apoios fortes entre empresários e até no
meio popular, sobretudo pela estratégia das igrejas de teologia do empreendedorismo
e sucesso individual. Apostar numa estratégia de “desmonte da polarização” escancarada na sociedade e no
ambiente político é deixar uma avenida
aberta para a direita antidemocrática e suas agressivas estratégias de
comunicação, com muitas inverdades, mas eficazes na construção do ambiente
político, como nos lembra o Altman.
Uma questão intrigante
é já ter passado quase um terço do mandato de Lula 3 e ainda não termos
retomado e renovado um pacto amplo entre as forças políticas democráticas com
mandatos, as lideranças partidárias, especialmente da esquerda, mas também
muitas do centro democrático. Temos necessidade de um potente projeto
inspirador para o Brasil. Mas projeto que precisa reconhecer o fundamental papel das cidadania ativas,
suas redes e fóruns, verdadeiros celeiros de iniciativas e ideias, com
elaboração e disputa de propostas. São as cidadanias ativas organizadas que se
articulam virtuosamente com expressões territoriais e locais, nas cidades,
periferias, campos, rios e matas. Um potente projeto de democracia só poderá
ser inspirador e mobilizador se valorizar a vibrante diversidade e
potencialidade das milhares de iniciativas territoriais locais, no
enfrentamento das questões cotidianas, onde a vida real se faz. Afinal, penso
que concordamos que a democracia que queremos precisa cuidar de gente e da
natureza, como sua razão de ser.
Mas voltando ao
mal-estar com a perigosa continuidade do encurralamento da democracia, como
defino, não podemos esperar para ver no que vai dar. Ou assumimos de forma mais
incisiva a tarefa da reconstrução com Lula e seu governo ou o deixaremos
amarrado aos impasses do Centrão e das investidas da direita autoritária. Pior,
vamos continuar tendo um governo que se vê obrigado a contemporizar com as
Forças Armadas e nos pede para esquecer o que foi a ditadura. Mas, também, não
podemos simplesmente nos render ao agronegócio, mineração e petróleo, porque
daí nunca virá outra economia voltada ao cuidado de gente e da natureza.
Extraio uma indicação
imediata de algo a ser feito de
conversas de conjuntura, de que participo, junto com um pequeno grupo de
parceiros de várias décadas, verdadeiros cúmplices da empreitada por um outro
Brasil. No grupo temos lembrado a necessidade de fortalecer nossos meios
alternativos de comunicação, que funcionam como referência para cidadanias
ativas. Mas são frágeis. Como combatemos os “donos de gado e gente” não podemos
esperar daí financiamento necessário e que amplie o impacto de nossos meios na tarefa de
disputa de ideias e propostas. Estamos
dependentes dos fracos apoios solidários, fundamentais para a autonomia
política, mas por si só são insuficientes. Para ampliar impacto dependemos da
atenção e comprometimento estratégico de forças políticas democráticas,
especialmente as que têm acesso ao Estado, pois do outro lado nada virá. São
destinados importantes recursos públicos aos grandes meios de comunicação,
especialmente TVs, em geral mais inclinados à direita e centro-direita, pouco
ou nada sensíveis às iniciativas, agendas e propostas de cidadanias ativas. O
pior é que os meios mais importantes para o ativismo democrático são ignoradas
pelas políticas públicas. Mas estes meios voltando atenção às cidadanias ativas
organizadas, com potentes narrativas e avaliações de quem está com a gente, são
estratégicos para a questão que levanto nesta postagem.
Termino, lembrando que
não se trata de submeter as iniciativas a uma determinação e orientação
política governamental. Pelo contrário, trata-se de reconhecer a potência
democrática que brota da sociedade civil em termos de produção de análise de
propostas de qualidade, muitas vezes até com críticas construtivas aos
responsáveis políticos do nosso campo. Não conseguiremos desencurralar a
democracia se tais iniciativas forem deixadas na sombra, entregues à própria
sorte. São estas iniciativas que privilegiam a investigação dos sinais
virtuosos que brotam do chão da sociedade. Desconhecer isto é um grande risco
para a tarefa do necessário desencurralamento e, sobretudo, de disputa de
hegemonia democrática ecossocial de direitos iguais para todas e todos. Está
dado o recado, para quem está disposto a ouvir!
Fonte: Sentidos e
Rumos
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