sábado, 2 de março de 2024

Bernardo Kocher: Gaza, ano zero - as raízes do Holocausto palestino

Dentro de algum tempo – quando se encerrar a “prática social genocida”[1] do povo palestino perpetrada pelo Estado de Israel na Faixa Gaza –, seremos forçados a olhar para a História do Oriente Médio no primeiro quartel do século XXI como uma totalidade, dividida em três partes: a  primeira é o 11 de setembro de 2001, e depois a invasão do Afeganistão seguida pela do Iraque; a segunda parte são as revoluções sociais que eclodiram em parte do Oriente Médio, a “Primavera Árabe”; finalmente, o terceiro momento é a tentativa de destruição física e simbólica do povo palestino que está em curso na Faixa de Gaza.  Se nada mais ocorrer após o encerramento da atual crise que possua o escopo destes três dramáticos episódios, teremos que tratá-los como parte de um único processo, mesmo que cada um possua sua própria dinâmica.

Este conjunto de conflitos possui raízes históricas longínquas, mas, da forma como se apresenta no momento, ele começou a se configurar no “ano mágico” de 1979. Neste ano, a combinação explosiva que ora se manifesta no Oriente Médio começou a tomar forma com o 2o. Choque do Petróleo, o choque dos juros, a invasão soviética no Afeganistão, a vitória da revolução iraniana, a assinatura dos acordos de Camp David, e a invasão da Grande Mesquita (em Meca) e a sua retomada por tropas sauditas e francesas. Aqui temos a base estrutural da atual crise conjuntural.  Todos estes contextos são decorrentes do rearranjo das classes sociais em meio a uma aguda crise econômica que combinou a inflação dos preços com a recessão econômica (a estagflação), iniciando a rota de reformas estruturais (privatização, desregulamentação, vulnerabilização do emprego e dos demais direitos sociais) que afetaram todo a classe operária, em todo o mundo. Depois dos “25 anos de ouro” do capitalismo, também o Oriente Médio perde suas referências políticas e sociais, passando a viver uma instabilidade nas suas recentes instituições políticas (formadas com a descolonização). Com isso, reanima uma antiga manifestação política de valorização da religião como orientadora da vida em sociedade, agora chamada de “islã político”.

Desde o início dos ataques a Gaza em outubro de 2023 e o aprofundamento da limpeza étnica no enclave, a situação política do Oriente Médio se deteriorou. Estados e regiões/grupos políticos das mais variadas origens passaram a fazer parte de um cenário de guerra regional com características muito próprias. A situação em Gaza expôs uma quantidade imensa de tensões que estavam ocultas numa espécie de “guerra mundial” regional onde o Estado de Israel, Europa ocidental e EUA agridem o povo palestino, os países vizinhos apenas interagem diplomaticamente, mantendo uma posição olímpica, o Irã aciona atores políticos por ele apoiados econômica e militarmente, a África do Sul e o Sul Global procuram justiça e Rússia e China… observam e esperam.

O principal grupo a interagir com os problemas de Gaza é o libanês Hezbollah (Partido de Deus).  Eles atacam com mísseis o território do Estado sionista, que por sua vez revida com bombardeios aéreos alcançando alvos sensíveis. Para os sionistas, a guerra aberta no Líbano é inviável sem uma prévia destruição da estrutura física da malha urbana, e ameaçam bombardear Beirute, no norte do Líbano.

Adentraram neste cenário os Houthis, do Iêmen (do Norte), que possuem posição estratégica ímpar: o controle “natural” do estreito de Bab-el-Mandeb, sendo capazes de bloquear com mísseis e drones não muito sofisticados a entrada de navios comerciais de grande porte no Mar Vermelho e, daí, inviabilizando a passagem da navegação pelo Canal do Suez. Os constantes ataques israelenses a altos oficiais militares iranianos na Síria e os atentados às tropas americanas em suas bases no Iraque e Síria (bem como a reação a estes) apontam outras duas vertentes do agravamento da atual crise.

Em artigo anterior definimos que existe no Estado sionista uma orientação do seu “sionismo externo” para a formação de uma pax israelensis. Esta seria uma forma de controle e dominação dos países vizinhos, prenúncio de uma nova expansão territorial para consolidar o projeto inicial do sionismo europeu, o Grande Israel. A assinatura dos Tratados de Abraão (2020) e o posterior encaminhamento de acordo de normalização de relações diplomáticas com a Arábia Saudita seriam uma quase consolidação da fase de pacificação do entorno do Estado sionista. Aqui o fator econômico integrar-se-ia ao processo de formatação da pax israelensis, estabelecendo (finalmente) laços de interdepedência entre o hegemon (Estado sionista) com os países vizinhos ou próximos.  O assalto à Faixa de Gaza por forças do islã político alterou esta rota dos acontecimentos – impedindo a sua execução ao menos no curto prazo –, e produziu o esgarçamento das tensões regionais, tornando-as visíveis.

Todos os atores que litigam atualmente contra o Estado de Israel contam com o apoio material e político do Irã, expressivo e poderoso representante do “islã político”. O país persa enfrenta a ameaça de uma instabilidade política induzida por forças externas, diferença marcante em relação ao rival sionista. Esta situação é ao mesmo tempo muito mais complexa e também mais simples do que a posição do Estado sionista. Estado Nacional com fronteiras e instituições definidas há milênios, herdeiro de tradições políticas sólidas, e com Estado forte, o Irã não possui uma necessidade obsessiva de expansão das fronteiras ou colonialismo econômico, mas luta contra a dominação econômica e interferência política pelo imperialismo europeu e norte-americano.  Seu objetivo é blindar interna e externamente seu espaço nacional para que este não seja dominado por forças estrangeiras, como ocorreu durante a dominação colonial inglesa e neo-colonial norte-americana. Sua posição geopolítica o obriga a estar permanentemente elaborando estratégias para a defesa da sua “soberania total”, colocando o país num pró-ativismo perene para dar conta da gestão de atores estatais e não-estatais fora do seu território e dentro do espectro do islã político.  Por seu turno, o desejo do sionismo externo e dos Estados Unidos é eliminar qualquer tentativa iraniana de controle de parte do mundo muçulmano; para o país persa a exportação das suas ações políticas e militares não é, no entanto, uma opção. A guerra também não é para o Irã uma alternativa aceitável, pois o exemplo do longo conflito com o Iraque (1980-1988) desgastou o país e expôs seu território. Atualmente o Irã encontra-se numa rota virtuosa de crescimento econômico e integração com um processo de elaboração de uma contra-hegemonia do Sul Global, via Brics, o que reforça ainda mais sua premente necessidade de estabilidade.

A solução estratégica para a instabilidade regional que afeta o Irã foi desenvolvida com sucesso  pelo general Qassem Soleimani, assassinado no Iraque em 2020 pelos Estados Unidos.  Ele elaborou uma política de apoio a grupos afins à causa iraniana, chamados de proxys, no intuito de produzir conflitos de baixa intensidade. Estes têm o duplo objetivo de encaminhar seus próprios problemas locais com apoio material iraniano confrontando também o sionismo externo e os Estados Unidos, expondo-os ao desgaste político, militar e econômico.

Seu único adversário geopolítico regional é também pertencente ao ethos do islã político: a Arábia Saudita. Este país possui uma outra perspectiva: a hegemonia religiosa no interior do mundo muçulmano; é neste campo que pesa a milenar desavença entre sunitas e xiitas, agora involucrada em Estados Nacionais e não mais em impérios. A posição saudita está sedimentada com a aliança figadal entre a política externa norte-americana e a monarquia dos Saud e seu corpo eclesiástico, os clérigos wahabitas. Não podemos deixar de relembrar que parte da explicação da crise atual pode estar vinculada à normalização das relações entre os dois países muçulmanos, patrocinada pela China.

 

Ø  Qual a verdade na declaração de Israel de que já matou 10 mil combatentes do Hamas

 

À medida que o número notificado de palestinos mortos em Gaza passa de 30 mil, Israel é alvo de preocupações cada vez maiores pelo número de civis mortos, além de pressão para provar que está eliminando o Hamas, como prometeu após 7 de outubro.

A BBC Verify, unidade de checagem da BBC, analisou as declarações sobre quantos combatentes do Hamas já foram mortos no conflito.

Os militares israelenses afirmam ter matado mais de 10 mil combatentes em bombardeios aéreos e operações terrestres em resposta ao ataque do Hamas, que deixou cerca de 1,2 mil mortos.

As Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) têm defendido repetidamente suas táticas, enfatizando que estão tentando ser precisas ao mirar nos combatentes e infraestruturas do Hamas, ao mesmo tempo que tentam minimizar as mortes de civis.

O Hamas não fornece nenhum número sobre as mortes de seus militares. A agência de notícias Reuters informou que um oficial havia admitido que 6 mil combatentes haviam sido mortos, mas o Hamas negou esse número à BBC.

O número de mortos registrado pelo Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, considerado confiável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não faz distinção entre civis e combatentes. Mas desde que a guerra começou, os números mostram que pelo menos 70% dos mortos foram mulheres e crianças.

A BBC Verify pediu repetidamente às IDF que explicassem sua metodologia de contagem das mortes de combatentes do Hamas, mas eles não responderam.

Analisamos referências à morte de combatentes em comunicados à imprensa e em canais de rede social das IDF.

Em 19 de fevereiro, o jornal The Times of Israel noticiou que as IDF afirmaram que 12 mil combatentes haviam sido mortos. Apresentamos esse número às IDF que, em duas respostas separadas, nos disse que o número é “aproximadamente 10 mil” e “mais de 10 mil”.

Em meados de janeiro, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, afirmou que Israel tinha “destruído” dois terços dos regimentos de combate do Hamas em Gaza, mas não contabilizou os combatentes mortos. Uma estimativa das IDF antes da guerra sugeria que o Hamas tinha cerca de 30 mil combatentes em Gaza.

E, em dezembro, as IDF descreveram a análise de que estão matando dois civis para cada combatente do Hamas como “tremendamente positiva”, dados os desafios que enfrentavam no campo de batalha.

Mas, em 14 de novembro, pouco mais de um mês após o início da guerra, o canal das IDF no Telegram se referiu a “1.000 terroristas” mortos por “forças de divisão”.

Na época, o Ministério da Saúde havia anunciado 11.320 mortes.

A BBC Verify também revisou todos os 280 vídeos publicados no canal das IDF no YouTube de 7 de outubro a 27 de fevereiro — e descobriu que muito poucos continham evidências visuais de um grande número de combatentes mortos.

Destes, apenas um — publicado em 13 de dezembro — parece mostrar corpos de combatentes. Um punhado de vídeos mostram combatentes sendo baleados.

Também tentamos contar o número de alegações feitas individualmente sobre combatentes do Hamas mortos no principal canal das IDF no Telegram. Encontramos 160 mensagens em que alegavam terem matado um número específico de combatentes, num total de 714 mortes.

Mas também havia 247 referências que usavam termos como “vários”, “dezenas” ou “centenas” de mortos, tornando impossível uma contagem global significativa.

Contabilizar as mortes de combatentes é um desafio em qualquer zona de guerra. Em Gaza, muitos combatentes usam roupas civis, operam principalmente em redes de túneis no subsolo, e grande parte das mortes resulta de ataques aéreos.

Desde o início da incursão das IDF em Gaza, os militares acusaram o Hamas de usar a população civil como escudo humano.

Mas alguns especialistas estão preocupados que as IDF possam estar contando alguns não-combatentes como combatentes só porque eles fazem parte da gestão do território administrado pelo Hamas.

Andreas Krieg, professor de estudos de segurança na Universidade King's College London, no Reino Unido, afirma:

"Israel adota uma abordagem muito ampla em relação aos 'membros do Hamas', que inclui qualquer ligação com a organização, incluindo gestores e funcionários públicos.”

Os dados de mortalidade do atual conflito fornecidos pelo Ministério da Saúde de Gaza mostram um aumento acentuado na proporção de mulheres e crianças entre os mortos, em comparação com as guerras anteriores.

“(Isso) indica uma taxa de morte de civis muito mais alta”, afirma Rachel Taylor, diretora-executiva da Every Casualty Counts, organização com sede no Reino Unido que visa registrar vítimas de conflitos violentos.

Quase metade da população de Gaza tem menos de 18 anos — e cerca de 43% dos mortos na guerra também são crianças. Para Taylor, o fato de que as mortes acompanham de perto os dados demográficos da população em geral "indica uma matança indiscriminada".

“Em contrapartida, em 2014, havia um percentual bastante elevado de homens em ‘idade de combate’ entre os mortos, mas isso é muito menos evidente hoje”, diz ela.

Em média, mais de 200 pessoas foram mortas por dia desde o início do conflito, conforme indicam os dados do Ministério da Saúde de Gaza.

O ritmo das mortes parece, à primeira vista, ter desacelerado em comparação com as primeiras fases do conflito, de outubro a dezembro. Mas especialistas disseram à BBC que a dimensão real de mortos pela ofensiva de Israel provavelmente vai ser significativamente maior, uma vez que muitos hospitais, onde normalmente as mortes são registradas, não estão mais funcionando.

Estes números também incluem apenas mortes causadas por ataques militares, e não as decorrentes da fome ou de doenças, que preocupam cada vez mais as organizações internacionais de ajuda humanitária.

A B'tselem, organização de direitos humanos com sede em Jerusalém, disse que a guerra atual é muito mais mortal do que os conflitos anteriores entre Israel e Gaza.

“Estes são números que nunca vimos em guerras e ataques anteriores em Gaza ou em outros territórios”, declarou Dror Sadot, porta-voz da organização.

Ele disse que o número de mortos ilustra a abordagem descrita por um porta-voz das IDF no início da guerra, que disse que "embora balanceamos a precisão com a dimensão dos danos, neste momento estamos focados no que causa dano máximo".

 

Fonte: Opera Mundi/BBC Verify

 

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