Bernardo Kocher: Gaza, ano zero - as raízes
do Holocausto palestino
Dentro de algum tempo
– quando se encerrar a “prática social genocida”[1] do povo palestino
perpetrada pelo Estado de Israel na Faixa Gaza –, seremos forçados a olhar para
a História do Oriente Médio no primeiro quartel do século XXI como uma
totalidade, dividida em três partes: a
primeira é o 11 de setembro de 2001, e depois a invasão do Afeganistão
seguida pela do Iraque; a segunda parte são as revoluções sociais que eclodiram
em parte do Oriente Médio, a “Primavera Árabe”; finalmente, o terceiro momento
é a tentativa de destruição física e simbólica do povo palestino que está em
curso na Faixa de Gaza. Se nada mais
ocorrer após o encerramento da atual crise que possua o escopo destes três
dramáticos episódios, teremos que tratá-los como parte de um único processo,
mesmo que cada um possua sua própria dinâmica.
Este conjunto de
conflitos possui raízes históricas longínquas, mas, da forma como se apresenta
no momento, ele começou a se configurar no “ano mágico” de 1979. Neste ano, a
combinação explosiva que ora se manifesta no Oriente Médio começou a tomar
forma com o 2o. Choque do Petróleo, o choque dos juros, a invasão soviética no
Afeganistão, a vitória da revolução iraniana, a assinatura dos acordos de Camp
David, e a invasão da Grande Mesquita (em Meca) e a sua retomada por tropas
sauditas e francesas. Aqui temos a base estrutural da atual crise
conjuntural. Todos estes contextos são
decorrentes do rearranjo das classes sociais em meio a uma aguda crise
econômica que combinou a inflação dos preços com a recessão econômica (a
estagflação), iniciando a rota de reformas estruturais (privatização,
desregulamentação, vulnerabilização do emprego e dos demais direitos sociais)
que afetaram todo a classe operária, em todo o mundo. Depois dos “25 anos de
ouro” do capitalismo, também o Oriente Médio perde suas referências políticas e
sociais, passando a viver uma instabilidade nas suas recentes instituições
políticas (formadas com a descolonização). Com isso, reanima uma antiga
manifestação política de valorização da religião como orientadora da vida em
sociedade, agora chamada de “islã político”.
Desde o início dos
ataques a Gaza em outubro de 2023 e o aprofundamento da limpeza étnica no
enclave, a situação política do Oriente Médio se deteriorou. Estados e
regiões/grupos políticos das mais variadas origens passaram a fazer parte de um
cenário de guerra regional com características muito próprias. A situação em
Gaza expôs uma quantidade imensa de tensões que estavam ocultas numa espécie de
“guerra mundial” regional onde o Estado de Israel, Europa ocidental e EUA
agridem o povo palestino, os países vizinhos apenas interagem diplomaticamente,
mantendo uma posição olímpica, o Irã aciona atores políticos por ele apoiados
econômica e militarmente, a África do Sul e o Sul Global procuram justiça e
Rússia e China… observam e esperam.
O principal grupo a
interagir com os problemas de Gaza é o libanês Hezbollah (Partido de
Deus). Eles atacam com mísseis o
território do Estado sionista, que por sua vez revida com bombardeios aéreos
alcançando alvos sensíveis. Para os sionistas, a guerra aberta no Líbano é
inviável sem uma prévia destruição da estrutura física da malha urbana, e
ameaçam bombardear Beirute, no norte do Líbano.
Adentraram neste
cenário os Houthis, do Iêmen (do Norte), que possuem posição estratégica ímpar:
o controle “natural” do estreito de Bab-el-Mandeb, sendo capazes de bloquear
com mísseis e drones não muito sofisticados a entrada de navios comerciais de
grande porte no Mar Vermelho e, daí, inviabilizando a passagem da navegação
pelo Canal do Suez. Os constantes ataques israelenses a altos oficiais
militares iranianos na Síria e os atentados às tropas americanas em suas bases
no Iraque e Síria (bem como a reação a estes) apontam outras duas vertentes do
agravamento da atual crise.
Em artigo anterior
definimos que existe no Estado sionista uma orientação do seu “sionismo
externo” para a formação de uma pax israelensis. Esta seria uma forma de
controle e dominação dos países vizinhos, prenúncio de uma nova expansão
territorial para consolidar o projeto inicial do sionismo europeu, o Grande
Israel. A assinatura dos Tratados de Abraão (2020) e o posterior encaminhamento
de acordo de normalização de relações diplomáticas com a Arábia Saudita seriam
uma quase consolidação da fase de pacificação do entorno do Estado sionista.
Aqui o fator econômico integrar-se-ia ao processo de formatação da pax
israelensis, estabelecendo (finalmente) laços de interdepedência entre o
hegemon (Estado sionista) com os países vizinhos ou próximos. O assalto à Faixa de Gaza por forças do islã
político alterou esta rota dos acontecimentos – impedindo a sua execução ao
menos no curto prazo –, e produziu o esgarçamento das tensões regionais,
tornando-as visíveis.
Todos os atores que
litigam atualmente contra o Estado de Israel contam com o apoio material e
político do Irã, expressivo e poderoso representante do “islã político”. O país
persa enfrenta a ameaça de uma instabilidade política induzida por forças externas,
diferença marcante em relação ao rival sionista. Esta situação é ao mesmo tempo
muito mais complexa e também mais simples do que a posição do Estado sionista.
Estado Nacional com fronteiras e instituições definidas há milênios, herdeiro
de tradições políticas sólidas, e com Estado forte, o Irã não possui uma
necessidade obsessiva de expansão das fronteiras ou colonialismo econômico, mas
luta contra a dominação econômica e interferência política pelo imperialismo
europeu e norte-americano. Seu objetivo
é blindar interna e externamente seu espaço nacional para que este não seja
dominado por forças estrangeiras, como ocorreu durante a dominação colonial
inglesa e neo-colonial norte-americana. Sua posição geopolítica o obriga a
estar permanentemente elaborando estratégias para a defesa da sua “soberania
total”, colocando o país num pró-ativismo perene para dar conta da gestão de
atores estatais e não-estatais fora do seu território e dentro do espectro do
islã político. Por seu turno, o desejo
do sionismo externo e dos Estados Unidos é eliminar qualquer tentativa iraniana
de controle de parte do mundo muçulmano; para o país persa a exportação das
suas ações políticas e militares não é, no entanto, uma opção. A guerra também
não é para o Irã uma alternativa aceitável, pois o exemplo do longo conflito
com o Iraque (1980-1988) desgastou o país e expôs seu território. Atualmente o
Irã encontra-se numa rota virtuosa de crescimento econômico e integração com um
processo de elaboração de uma contra-hegemonia do Sul Global, via Brics, o que
reforça ainda mais sua premente necessidade de estabilidade.
A solução estratégica
para a instabilidade regional que afeta o Irã foi desenvolvida com sucesso pelo general Qassem Soleimani, assassinado no
Iraque em 2020 pelos Estados Unidos. Ele
elaborou uma política de apoio a grupos afins à causa iraniana, chamados de
proxys, no intuito de produzir conflitos de baixa intensidade. Estes têm o
duplo objetivo de encaminhar seus próprios problemas locais com apoio material
iraniano confrontando também o sionismo externo e os Estados Unidos, expondo-os
ao desgaste político, militar e econômico.
Seu único adversário
geopolítico regional é também pertencente ao ethos do islã político: a Arábia
Saudita. Este país possui uma outra perspectiva: a hegemonia religiosa no
interior do mundo muçulmano; é neste campo que pesa a milenar desavença entre
sunitas e xiitas, agora involucrada em Estados Nacionais e não mais em
impérios. A posição saudita está sedimentada com a aliança figadal entre a
política externa norte-americana e a monarquia dos Saud e seu corpo
eclesiástico, os clérigos wahabitas. Não podemos deixar de relembrar que parte
da explicação da crise atual pode estar vinculada à normalização das relações
entre os dois países muçulmanos, patrocinada pela China.
Ø Qual a verdade na declaração de Israel de que já matou 10 mil
combatentes do Hamas
À medida que o número
notificado de palestinos mortos em Gaza passa de 30 mil, Israel é alvo de preocupações cada vez
maiores pelo número de civis mortos, além de pressão para provar que está
eliminando o Hamas, como prometeu após 7 de outubro.
A BBC Verify, unidade
de checagem da BBC, analisou as declarações sobre quantos combatentes do Hamas
já foram mortos no conflito.
Os militares
israelenses afirmam ter matado mais de 10 mil combatentes em bombardeios aéreos
e operações terrestres em resposta ao ataque do Hamas, que deixou cerca de 1,2
mil mortos.
As Forças de Defesa de
Israel (IDF, na sigla em inglês) têm defendido repetidamente suas táticas,
enfatizando que estão tentando ser precisas ao mirar nos combatentes e
infraestruturas do Hamas, ao mesmo tempo que tentam minimizar as mortes de
civis.
O Hamas não fornece
nenhum número sobre as mortes de seus militares. A agência de notícias Reuters
informou que um oficial havia admitido que 6 mil combatentes haviam sido
mortos, mas o Hamas negou esse número à BBC.
O número de mortos
registrado pelo Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas,
considerado confiável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não faz
distinção entre civis e combatentes. Mas desde que a guerra começou, os números
mostram que pelo menos 70% dos mortos foram mulheres e crianças.
A BBC Verify pediu
repetidamente às IDF que explicassem sua metodologia de contagem das mortes de
combatentes do Hamas, mas eles não responderam.
Analisamos referências
à morte de combatentes em comunicados à imprensa e em canais de rede social das
IDF.
Em 19 de fevereiro, o
jornal The Times of Israel noticiou que as IDF afirmaram que 12 mil combatentes
haviam sido mortos. Apresentamos esse número às IDF que, em duas respostas
separadas, nos disse que o número é “aproximadamente 10 mil” e “mais de 10 mil”.
Em meados de janeiro,
o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, afirmou
que Israel tinha “destruído” dois terços dos regimentos de combate do Hamas em
Gaza, mas não contabilizou os combatentes mortos. Uma estimativa das IDF antes
da guerra sugeria que o Hamas tinha cerca de 30 mil combatentes em Gaza.
E, em dezembro, as IDF
descreveram a análise de que estão matando dois civis para cada combatente do
Hamas como “tremendamente positiva”, dados os desafios que enfrentavam no campo
de batalha.
Mas, em 14 de
novembro, pouco mais de um mês após o início da guerra, o canal das IDF no
Telegram se referiu a “1.000 terroristas” mortos por “forças de divisão”.
Na época, o Ministério
da Saúde havia anunciado 11.320 mortes.
A BBC Verify também
revisou todos os 280 vídeos publicados no canal das IDF no YouTube de 7 de
outubro a 27 de fevereiro — e descobriu que muito poucos continham evidências
visuais de um grande número de combatentes mortos.
Destes, apenas um —
publicado em 13 de dezembro — parece mostrar corpos de combatentes. Um punhado
de vídeos mostram combatentes sendo baleados.
Também tentamos contar
o número de alegações feitas individualmente sobre combatentes do Hamas mortos
no principal canal das IDF no Telegram. Encontramos 160 mensagens em que
alegavam terem matado um número específico de combatentes, num total de 714 mortes.
Mas também havia 247
referências que usavam termos como “vários”, “dezenas” ou “centenas” de mortos,
tornando impossível uma contagem global significativa.
Contabilizar as mortes
de combatentes é um desafio em qualquer zona de guerra. Em Gaza, muitos
combatentes usam roupas civis, operam principalmente em redes de túneis no
subsolo, e grande parte das mortes resulta de ataques aéreos.
Desde o início da
incursão das IDF em Gaza, os militares acusaram o Hamas de usar a população
civil como escudo humano.
Mas alguns
especialistas estão preocupados que as IDF possam estar contando alguns
não-combatentes como combatentes só porque eles fazem parte da gestão do
território administrado pelo Hamas.
Andreas Krieg,
professor de estudos de segurança na Universidade King's College London, no
Reino Unido, afirma:
"Israel adota uma
abordagem muito ampla em relação aos 'membros do Hamas', que inclui qualquer
ligação com a organização, incluindo gestores e funcionários públicos.”
Os dados de
mortalidade do atual conflito fornecidos pelo Ministério da Saúde de Gaza
mostram um aumento acentuado na proporção de mulheres e crianças entre os
mortos, em comparação com as guerras anteriores.
“(Isso) indica uma
taxa de morte de civis muito mais alta”, afirma Rachel Taylor,
diretora-executiva da Every Casualty Counts, organização com sede no Reino
Unido que visa registrar vítimas de conflitos violentos.
Quase metade da
população de Gaza tem menos de 18 anos — e cerca de 43% dos mortos na guerra
também são crianças. Para Taylor, o fato de que as mortes acompanham de perto
os dados demográficos da população em geral "indica uma matança
indiscriminada".
“Em contrapartida, em
2014, havia um percentual bastante elevado de homens em ‘idade de combate’
entre os mortos, mas isso é muito menos evidente hoje”, diz ela.
Em média, mais de 200
pessoas foram mortas por dia desde o início do conflito, conforme indicam os
dados do Ministério da Saúde de Gaza.
O ritmo das mortes
parece, à primeira vista, ter desacelerado em comparação com as primeiras fases
do conflito, de outubro a dezembro. Mas especialistas disseram à BBC que a
dimensão real de mortos pela ofensiva de Israel provavelmente vai ser
significativamente maior, uma vez que muitos hospitais, onde normalmente as
mortes são registradas, não estão mais funcionando.
Estes números também
incluem apenas mortes causadas por ataques militares, e não as decorrentes da
fome ou de doenças, que preocupam cada vez mais as organizações internacionais
de ajuda humanitária.
A B'tselem,
organização de direitos humanos com sede em Jerusalém, disse que a guerra atual
é muito mais mortal do que os conflitos anteriores entre Israel e Gaza.
“Estes são números que
nunca vimos em guerras e ataques anteriores em Gaza ou em outros territórios”,
declarou Dror Sadot, porta-voz da organização.
Ele disse que o número
de mortos ilustra a abordagem descrita por um porta-voz das IDF no início da
guerra, que disse que "embora balanceamos a precisão com a dimensão dos
danos, neste momento estamos focados no que causa dano máximo".
Fonte: Opera Mundi/BBC
Verify
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