quinta-feira, 28 de março de 2024

A miséria da Economia, entre mitos e preguiça

A necessidade de mudança drástica na disciplina econômica nunca foi tão urgente. A humanidade enfrenta crises existenciais, com a saúde planetária e os desafios ambientais se tornando grandes preocupações. A economia global já estava mancando e frágil antes da pandemia. A recuperação subsequente expôs as desigualdades profundas e agravadas, não apenas em renda e riqueza, mas também no acesso às necessidades humanas básicas. As tensões sociopolíticas resultantes e conflitos geopolíticos estão criando sociedades que em breve podem ser disfuncionais a ponto de não serem mais vivíveis. Tudo isso requer estratégias econômicas transformadoras. No entanto, a corrente principal da disciplina persiste em fazer negócios, como de costume, como se mexer nas margens, com pequenas mudanças, pudesse ter algum impacto significativo.

Há um problema de longa data. Muito do que é apresentado como sabedoria econômica sobre como as economias funcionam e as implicações das políticas é, na melhor das hipóteses, enganoso e, na pior hipótese, simplesmente errado. Por décadas, um lobby poderoso dentro da disciplina vendeu meias-verdades e até falsidades em muitas questões críticas. Por exemplo, como os mercados financeiros funcionam e se eles podem ser “eficientes” sem regulamentação; as implicações macroeconômicas e distributivas das políticas fiscais; o impacto do mercado de trabalho e a desregulamentação salarial no emprego e no desemprego; como os padrões de comércio e investimento internacionais afetam os meios de subsistência e a possibilidade de diversificação econômica; como o investimento privado responde a incentivos políticos, incentivos e subsídios fiscais e déficits fiscais; como o investimento multinacional e as cadeias de valor globais afetam produtores e consumidores; os danos ecológicos decorrentes de padrões de produção e consumo; se os direitos de propriedade intelectual mais rígidos são realmente necessários para promover a invenção e a inovação; e assim por diante.

Por que isso acontece? O pecado original pode ser a exclusão do conceito de poder do discurso – o que efetivamente reforça as estruturas e desequilíbrios de poder existentes. As condições subjacentes são varridas ou encobertas. Entre elas, estão o maior poder de capital em comparação com os trabalhadores; a exploração insustentável da natureza; o tratamento diferencial dos trabalhadores por meio da segmentação do mercado de trabalho social; o abuso privado de poder de mercado e da busca de rentas; o uso do poder político para impulsionar os interesses econômicos privados no interior das nações e entre elas; e os impactos distributivos das políticas fiscais e monetárias. As preocupações profundas e contínuas com a insuficiência do PIB como uma medida de progresso são ignoradas. Mesmo com todas as suas muitas falhas conceituais e metodológicas, continua sendo usado como o indicador básico, apenas porque está lá.

•        Verdades inconvenientes

Existe uma tendência relacionada a subestimar o significado crucial das suposições na construção dos resultados analíticos e na apresentação desses resultados em discussões de políticas. A maioria dos economistas teóricos convencionais argumentará que se afastaram das suposições neoclássicas iniciais, como concorrência perfeita, retornos constantes à escala e emprego pleno, que não têm relação com o funcionamento econômico real em qualquer lugar. Mas essas suposições ainda persistem nos modelos que sustentam explícita ou implicitamente muitas prescrições de políticas (inclusive sobre políticas comerciais e industriais ou estratégias de “redução da pobreza”), particularmente para o mundo em desenvolvimento.

As estruturas de poder dentro da profissão reforçam o mainstream de diferentes maneiras, inclusive através da tirania das chamadas “publicações principais” e do emprego acadêmico e profissional. Tais pressões e incentivos desviam muitas das mentes mais brilhantes, que deixam de se dedicar a um estudo genuíno da economia (para tentar entender seu funcionamento e as implicações para as pessoas) e dedicam-se ao que só pode ser chamado de “atividades triviais”. Muitas publicações acadêmicas destacadas publicam contribuições esotéricas que agregam valor apenas flexibilizando uma pequena suposição em um modelo, ou usando um teste econométrico ligeiramente diferente. Os elementos que são mais difíceis de modelar, ou que podem gerar verdades inconvenientes, são simplesmente excluídos, mesmo que contribuam para uma melhor compreensão da realidade econômica. Restrições ou resultados fundamentais são apresentados como “externalidades”, e não como condições a serem abordadas. Economistas que conversam principalmente um com o outro, depois simplesmente proselitizam suas descobertas aos formuladores de políticas, raramente são forçados a questionar essa abordagem.

Como resultado as forças econômicas (que são necessariamente complexas – devido ao impacto de muitas variáveis diferentes – e refletem os efeitos da história, da sociedade e da política) não são estudadas à luz dessa complexidade. Em vez disso, são espremidas em modelos matematicamente tratáveis, mesmo que isso remova qualquer semelhança com a realidade econômica. Para ser justa, alguns economistas convencionais muito bem sucedidos criticaram essa tendência – mas com pouco efeito até agora nos guardiões da ortodoxia da profissão.

•        Hierarquia e discriminação

A aplicação de hierarquias estritas de poder dentro da disciplina suprimiu o surgimento e a disseminação de teorias, explicações e análises alternativas. Isso se combina com as outras formas de discriminação (por gênero, raça/etnia, localização) para excluir ou marginalizar perspectivas alternativas. O impacto da localização é enorme: a disciplina convencional é completamente dominada pelo Atlântico Norte – especificamente os EUA e a Europa – em termos de prestígio, influência e capacidade de determinar o conteúdo e a direção da disciplina. O enorme conhecimento, os insights e contribuições para a análise econômica feitos por economistas localizados nos países onde vive a maior parte da população do planeta são amplamente ignorados, devido à suposição implícita de que o conhecimento “real” se origina no Norte e é disseminado para fora.

A arrogância em relação a outras disciplinas é uma grande desvantagem, expressa, por exemplo, pela falta de um forte senso de história, que deve permear todas as análises sociais e econômicas atuais. Recentemente, tornou -se elegante para os economistas se envolverem em psicologia, com o surgimento da economia comportamental e “cutucadas” para induzir certos comportamentos. Mas isso também é frequentemente apresentado sem reconhecer contextos sociais e políticos variados. Por exemplo, os testes randomizados de visão focada [worm’s eye tests], que se tornaram tão populares na economia do desenvolvimento estão associados a uma mudança que abandonou o estudo de processos evolutivos e tendências macroeconômicas, para se concentrar nas tendências microeconômicas que efetivamente apagam os contextos que moldam o comportamento e as respostas econômicas. A base subjacente e profundamente problemática do individualismo metodológico persiste, principalmente porque poucos economistas contemporâneos ousam fazer uma avaliação filosófica de sua própria abordagem e trabalho.

Essas falhas empobreceram muito a economia e, sem surpresa, reduziram sua credibilidade e legitimidade entre o público em geral. A disciplina convencional precisa muito de maior humildade, um melhor senso de história e reconhecimento do poder desigual e incentivo ativo à diversidade. Claramente, muito precisa mudar para que a economia seja realmente relevante e útil o suficiente para enfrentar os principais desafios de nossos tempos.

 

       Juros: queda a conta-gotas. Por Paulo Kliass

 

O Comitê de Política Monetária (Copom) realizou na semana passada sua reunião de número 261. A orientação seguiu praticamente à risca as previsões anunciadas nas atas e nos comunicados relativos aos encontros anteriores. Assim, não houve maiores surpresas quanto ao resultado do patamar da taxa referencial de juros. A Selic foi reduzida mais uma vez em 0,5%, de acordo com proposição votada por consenso entre os 9 integrantes do colegiado. Desta forma, a partir do dia 21 de março, a taxa foi estabelecida em 10,75% ao ano.

É importante recordarmos que, em 2021, Bolsonaro e Paulo Guedes atuaram fortemente junto ao Congresso Nacional para que fosse aprovada uma norma que aumentasse ainda mais a autonomia já concedida ao Banco Central (BC). Assim, entrou em vigência a Lei Complementar 179/2021, por meio da qual os diretores da instituição passaram a contar com um mandato fixo, praticamente inamovível. Com isso, Lula iniciou seu terceiro período no Palácio do Planalto em 1 de janeiro de 2023 com a equipe do BC toda composta por indicados ainda por Bolsonaro. O presidente do órgão, Roberto Campos Neto (RCN), e seus colegas fizeram, inclusive, campanha aberta pela reeleição do chefe na disputa presidencial de outubro de 2022.

Em razão dos novos dispositivos legais, a política monetária do novo governo começou sequestrada por um grupo que estava alinhado com uma visão econômica oposta ao que Lula havia prometido na campanha. As perspectivas de recolocar o Brasil na trilha do desenvolvimento e a adoção de um conjunto amplo de investimentos públicos se viam embarreiradas pela obstinação financista e ortodoxa de RCN, além da novidade trazida pela manutenção da obsessão pela austeridade fiscal pelas mãos do novo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Passaram-se 15 meses e a maioria dos membros da direção do banco (e integrantes do Copom) permanece sendo uma herança bolsonarista. De acordo com o calendário de ingresso de novos dirigentes no órgão estabelecido na legislação, apenas 4 foram indicados por Lula até o momento.

•        A sabotagem do Copom

No início da gestão de Lula, a opção de RCN foi por implementar uma sabotagem ao novo governo em sua esfera de influência. Assim, a política monetária foi mantida em níveis estratosféricos. Contrariando as solicitações do Presidente da República, o Copom manteve a Selic em 13,75% ao longo de quatro reuniões no início de 2023 e só aceitou iniciar um processo lento e insuficiente de redução da taxa em agosto do ano passado. Assim foram encontros em sequência com diminuições de 0,5% em cada um deles.

Ocorre que a magnitude e a velocidade da queda da queda da SELIC significaram muito pouco em termos de estímulo à retomada das atividades econômicas no setor real. Tal fato se deve à ocorrência de uma diminuição na inflação no mesmo período, de maneira que a taxa real de juros caiu muito pouco. O Brasil continuou ocupando as principais posições na liderança mundial do quesito rentabilidade financeira real. Atualmente, mesmo depois da última diminuição da Selic, estamos no segundo lugar entre os principais países do mundo, atrás apenas do México. Na verdade, seguimos sendo o paraíso do financismo global.

Um dos problemas no equacionamento do dilema da política monetária refere-se ao comportamento dos quatro diretores nomeados por Lula. Todos eles têm votado sistematicamente junto com a maioria encabeçada por RCN, aceitando de forma passiva essa orientação minimalista na redução da taxa oficial. Na verdade, a Selic já deveria estar em um patamar bem mais baixo do que o atual e há muito tempo atrás. Ocorre que a política de bom mocismo que vem sendo levada a efeito por Haddad junto ao financismo tem feito com que seus indicados no BC (e por consequência no Copom) não apresentem nenhuma estratégia alternativa mais ousada para estimular o setor real e produtivo da economia.

•        Brasil segue líder mundial na taxa de juros

Além de provocar um encarecimento do custo do dinheiro e inviabilizar uma retomada mais efetiva das atividades econômicas de forma mais geral, a Selic nas alturas provoca um aumento das despesas governamentais. Afinal, ela é a referência básica para o custo da dívida pública e do volume de despesas financeiras do governo federal. Não é por acaso ou coincidência que o País tem apresentado recordes sucessivos também neste quesito. Ao longo dos últimos 12 meses, o volume de recursos direcionados para o pagamento de juros da dívida pública atingiu R$ 720 bilhões. E tal cifra, jamais antes atingida, ocorre em uma conjuntura de arrocho fiscal, limites, tetos e contingenciamentos das demais despesas não financeiras.

Outro aspecto que merece destaque refere-se aos spreads absurdos que sempre foram cobrados pelos bancos em suas operações de crédito e empréstimo junto aos seus clientes. Essa sistemática de super espoliação que o financismo pratica contra o restante da sociedade permanece inalterada. Ora, se o governo decidisse estimular a banca a praticar por aqui padrões minimamente “civilizatórios” para tais mecanismos, muito provavelmente o custo financeiro poderia ser bastante reduzido.

Trata-se de um escândalo com tinturas criminosas o próprio órgão regulador fiscalizador do sistema financeiro apresentar em sua página na internet as informações relativas à prática de taxa de juros em diferentes modalidades de crédito e empréstimo. As informações são a revelação mais límpida e cristalina de que o BC não atua em defesa da sociedade contra os abusos dos bancos e demais instituições do financismo. Pelo contrário, a instituição faz cara de paisagem e naturaliza a espoliação pura e simples. A Selic caiu por volta de 22% no período e as taxas praticadas pela banca ficaram praticamente inalteradas.

Para dar conta de tal missão, a primeira medida seria constranger o BC a cumprir com sua função precípua de agência reguladora e fiscalizadora do sistema bancário e financeiro. Nesse caso, bastaria estabelecer regras e procedimentos para os spreads que fossem aplicados pelas instituições que oferecem crédito. Na ausência de tal regulamentação, o céu é o limite para os gigantes do mercado concentrado e oligopolizado. Além disso, o governo deveria orientar os bancos estatais a reduzirem imediatamente seus spreads nas operações com indivíduos, famílias e empresas. Não faz sentido que instituições como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco da Amazônia e Banco do Nordeste cobrem de seus clientes os mesmos ganhos que o oligopólio da banca privada.

•        Lula precisa intervir na área econômica: fiscal e monetária

A estratégia de se equiparar aos mastodontes privados do financismo só faz despontarem cifras bilionárias nos balanços de resultados dos bancos estatais. Mas isso não faz sentido. Eles deveriam ter um comportamento no chamado “mercado financeiro” que faça justiça à natureza pública e estatal dos mesmos. É um verdadeiro absurdo eles buscarem lucros exorbitantes às custas da extração de renda de seus clientes e da sociedade de forma geral. Banco público tem que se pautar pelo cumprimento de função pública em sua atuação. E banco privado, ainda mais em mercado oligopolizado e sem concorrência, deveria ser regulamentado de forma efetiva pelo Estado.

Faz todo o sentido apontar para necessidade de se romper a armadilha do austericídio e abrir espaço no orçamento para que o governo possa realizar os investimentos públicos e as despesas com políticas sociais. Isso significa apontar e emergência da política fiscal para o momento atual. Mas não se deve, por outro lado, menosprezar ou negligenciar mudanças progressistas também na política monetária.

Baixar os juros é um imperativo fundamental. Seja reduzindo a Selic a níveis mais baixos, seja provocando uma queda acentuada igualmente nos spreads bancários. O sucesso do governo Lula 3.0 depende fundamentalmente de sua capacidade em cumprir as promessas de campanha e de fazer a economia deslanchar.

 

Fonte: Por Jayathi Ghosh | Tradução: Antonio Martins, para Outras Palavras

 

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