quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

'Quem vai me chamar de papai?': o palestino que perdeu 103 parentes em bombardeios a Gaza

Ahmad al-Ghuferi não estava em casa quando uma bomba matou toda a sua família.

Quando 103 familiares foram mortos em um ataque à casa da sua família na cidade de Gaza, ele estava a 80 quilômetros dali, na cidade ocupada de Jericó, na Cisjordânia.

Em 7 de outubro, quando o Hamas atacou Israel, Ahmad estava trabalhando em um estaleiro de construção em Tel Aviv. Ele não conseguiu mais voltar para a sua mulher e três filhas devido à guerra e ao bloqueio militar de Israel.

Ele falava com eles no mesmo horário todos os dias, quando as conexões telefônicas permitiam, e estava ao telefone com sua esposa, Shireen, quando o ataque aconteceu na noite de 8 de dezembro.

"Ela sabia que iria morrer", disse ele. "Ela me disse para perdoá-la por qualquer coisa ruim que ela pudesse ter feito comigo. Eu disse a ela que não havia necessidade de dizer isso. E essa foi a última ligação entre nós."

Um grande ataque a bomba na casa de seu tio naquela noite matou sua esposa e suas três filhas — Tala, Lana e Najla.

Também matou a mãe de Ahmad, quatro dos seus irmãos e as suas famílias, bem como dezenas de tias, tios e primos. Mais de 100 mortos ao todo. Mais de dois meses depois, alguns dos corpos ainda estão presos sob os escombros.

Na semana passada, ele comemorou o aniversário da filha mais nova. Najla teria completado 2 anos. Ahmad ainda está tentando entender a perda.

Incapaz de segurar os corpos dos filhos ou de comparecer aos enterros realizados às pressas, ele ainda fala deles no presente, com o rosto cheio de lágrimas.

"Minhas filhas são passarinhos para mim", disse ele. "Eu sinto como se estivesse em um sonho. Ainda não consigo acreditar no que aconteceu conosco."

Ele removeu fotos das meninas das telas de seu telefone e laptop, para não ser surpreendido por elas.

Ele conseguiu juntar as peças da história do que aconteceu a partir dos relatos de alguns parentes e vizinhos sobreviventes.

Eles contaram que um míssil atingiu primeiro a entrada da casa de sua família.

"Eles saíram correndo e foram para a casa do meu tio ali perto", disse ele. "Quinze minutos depois, um caça atingiu essa casa."

O prédio de quatro andares onde a família foi morta ficava na esquina do Centro Médico Sahaba, no bairro de Zeitoun, na cidade de Gaza. Só sobrou um monte de escombros de concreto.

Um dos parentes sobreviventes de Ahmad, Hamid al-Ghuferi, disse à BBC que quando os ataques começaram, aqueles que fugiram subindo em uma colina perto da casa sobreviveram. Mas quem se abrigou na casa acabou morrendo.

"Era um cinturão de fogo", disse. "Houve ataques nas quatro casas próximas à nossa. Eles atingiam uma casa a cada 10 minutos."

"Na casa estavam 110 pessoas da família Ghuferi – nossos filhos e parentes", disse ele. "Todos, com exceção de uns poucos, foram mortos."

Os sobreviventes dizem que a vítima mais velha tinha 98 anos. O mais novo era um menino com apenas 9 dias de vida.

Outro parente, um primo também chamado Ahmad, descreveu duas grandes explosões causadas por um ataque aéreo.

"Não houve aviso prévio", disse ele. "Se [algumas das] pessoas ainda não tivessem saído desta área, acho que centenas teriam sido mortas. A área parece totalmente diferente agora. Havia um estacionamento, um local para armazenar água e três casas, mais uma casa grande. A explosão destruiu toda uma área residencial."

Hamid disse que os sobreviventes trabalharam até de madrugada para retirar os corpos dos escombros.

"Aviões sobrevoavam o céu e drones disparavam contra nós enquanto tentávamos retirá-los", disse o primo Ahmad.

"Estávamos sentados em casa e nos encontramos sob os escombros", disse Umm Ahmad al-Ghuferi à BBC. "Fui jogado de um lado para o outro. Não sei como me tiraram de lá. Nós vimos a morte diante de nossos olhos."

Dois meses e meio depois, eles ainda tentam encontrar alguns dos corpos enterrados sob os escombros. A família arrecadou dinheiro para contratar uma pequena escavadeira para remover os escombros.

"Nós recuperamos quatro corpos [hoje]", disse Ahmad à BBC, "incluindo a mulher do meu irmão e o meu sobrinho Mohammed, que foi retirado em pedaços. Eles estiveram sob os escombros durante 75 dias."

Suas sepulturas temporárias ficam em um terreno vazio próximo, marcado com paus e lonas plásticas.

Ahmad, que ainda não consegue sair de Jericó, não os visitou.

"O que eu fiz para perder minha mãe, minha esposa, meus filhos e meus irmãos?", ele perguntou. "Eles eram todos civis."

A BBC questionou o Exército israelense sobre as alegações de que a casa da família foi alvo de ataques aéreos. Em resposta, o Exército disse que não tinha conhecimento do ataque em questão e que as Forças de Defesa de Israel (IDF) tomaram "precauções viáveis para mitigar os danos civis" na sua guerra com o Hamas.

Houve intensos combates entre as forças israelenses e os homens armados do Hamas na área de Shejaiyya, alguns quarteirões ao sul da casa de al-Ghuferi, nos dias imediatamente anteriores e posteriores à morte da família de Ahmad.

Em uma atualização diária de 9 de dezembro, o Exército disse ter "identificado vários terroristas armados com mísseis antitanque" que se aproximavam das tropas em Shejaiyya e ordenou um ataque de helicóptero contra eles.

O Exército também disse que caças estão atacando alvos terroristas na Faixa de Gaza, à medida que as operações terrestres avançam.

A área de Zeitoun, onde ficava a casa da família, é agora o foco de novas operações das FDI.

O Ministério da Saúde do território palestino controlado pelo Hamas informa que pelo menos 29.700 pessoas, a maioria mulheres e crianças, foram mortas como resultado da ofensiva de Israel em Gaza.

Israel começou a ofensiva militar à região depois de homens armados liderados pelo Hamas terem matado cerca de 1.200 pessoas e feito 253 reféns num ataque surpresa ao seu território, em 7 de outubro de 2023.

Em Jericó com o seu pai – que também trabalha no setor de construção civil na Cisjordânia – Ahmad ainda telefona aos seus familiares sobreviventes em Gaza. Mas depois de meses desesperadamente tentando voltar, ele não tem mais certeza se algum dia regressará para lá.

"Meu sonho foi destruído em Gaza", disse ele. "Por quem devo voltar? Quem vai me chamar de pai? Quem vai me chamar de querido? Minha esposa costumava me dizer que eu era tudo na sua vida. Quem vai me dizer isso agora?"

 

Fonte: Por Lucy Williamson, da BBC News em Jericó (Cisjordânia)

 

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