Quando
eles voltarão? Isolamento de Israel reacende uma hipótese-tabu
E se os
palestinos tiverem direito a um Estado, e puderem retornar às terras roubadas a
partir de 1948? Tel-Aviv busca caminho oposto: completar o genocídio,
despejando-os no Egito
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Abdul Rahman Yassin
tinha 8 anos quando se iniciou a Nakba (“catástrofe”, em árabe). 750 mil
palestinos foram expulsos de suas casas, num processo violento de ocupação de
terras, voltado à formação do Estado de Israel. “Eu me mudei com minha família
da aldeia ocupada de Al-Joura em 1948 e me estabeleci com eles no campo de
refugiados de Nuseirat, no meio da Faixa de Gaza”, conta Yassin ao Palestine
Chronicle.
Yassin já chegou aos
83. Sua trajetória de vida reflete um pouco da história de seu povo desde
então. Ele conta que durante a Primeira Intifada, em 1987, seu filho mais
velho, Alaa, foi gravemente ferido, mas conseguiu sobreviver, com sequelas em
função de uma lesão craniana.
Já em 2014, na chamada
Operação Margem Protetora, a ação militar mais mortífera promovida por Israel
em Gaza desde 2008, Yassin perdeu seu filho Rashad, morto por um ataque aéreo.
“Ele tinha acabado de se casar, e Deus o abençoou com uma linda filha que tinha
apenas alguns meses de idade na época”, lembra.
No primeiro dia dos
ataques israelenses iniciados em 7 de outubro passado, ele conta ter perdido
seu único sobrinho, Hussein. A casa de seu filho Alaa foi totalmente destruída
pelos bombardeios israelenses.
“Eu vivi todos os
massacres cometidos pela ocupação. Sou mais velho que o Estado de Israel, e
todas as suas guerras são dolorosas e atrozes. No entanto, os massacres
cometidos pela ocupação nesta guerra são sem precedentes. Israel não quer
deslocar o povo de Gaza, quer nos eliminar completamente”, pontua.
A vida de Yassin
poderia ilustrar o que tem sido a jornada dos palestinos desde 1948. Aliás,
desde antes, já que, durante o Mandato Britânico, 2 mil casas palestinas haviam
sido destruídas na chamada Revolta Árabe, que durou entre 1936 e 1939. No
período de menos de seis meses, de dezembro de 1947, quando o plano de partição
da ONU foi aprovado, até meados de maio de 1948, grupos armados sionistas
expulsaram cerca de 440 mil palestinos de 220 aldeias. Uma história de
opressão, violências e incerteza a respeito do próprio futuro.
“Para alguns
palestinos, tanto dentro de Gaza como no exterior, o atual deslocamento reflete
a Nakba original, que deslocou 750 mil palestinos das suas casas. É importante
compreender que a Nakba não se refere apenas a um único evento em 1948, mas sim
a um processo contínuo de desapropriação. Por isso, para muitos, o atual
deslocamento e as mortes em massa que ocorrem em Gaza é uma continuação de 75
anos de deslocamentos, expropriações e ocupação, embora com uma velocidade e
escala sem precedentes”, aponta a diretora do Programa de Direitos da Mulher,
Direitos Humanos e Refugiados do Instituto Baker de Políticas Públicas, Kelsey
P. Norman, em entrevista a Outras Palavras.
* * *
Os sinais de um
aprofundamento do processo de expulsão dos palestinos de suas casas, no
entanto, já vinham se intensificando antes da atual ofensiva na Faixa de Gaza.
Em artigo publicado em agosto de 2023, a
professora de estudos interdisciplinares de raça, gênero e pós-coloniais na
University College London, Anne Irfan, havia alertado para alguns paralelos
entre o período que antecedeu 1948 e o ambiente político armado a partir da
assunção do governo extremista de Benjamin Netanyahu no final de 2022.
Entre os pontos em
comum, a violência em ascensão, desta vez, “encorajada pela inclusão de
extremistas de extrema-direita no governo israelense”. “Um dos piores ataques
ocorreu em fevereiro, quando cerca de 400 colonizadores israelenses invadiram a
cidade de Huwara e aldeias vizinhas no norte da Cisjordânia. Incendiando
Huwara, eles deixaram um civil morto e outros 100 feridos, quatro em estado
crítico”, apontou a professora, que menciona ainda a invasão do exército
israelense do campo de refugiados de Jenin, em julho do ano passado, que
deslocou até 4 mil palestinos.
“Desde outubro já
foram deslocados mais palestinos em Gaza do que durante todo o ano de 1948”,
diz Anna Irfan, ao Outras Palavras. Até 19 de fevereiro, segundo a Agência
das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), 1,7 milhão
de pessoas (mais de 75% da população) foram deslocadas em toda a Faixa de Gaza.
Algumas delas várias vezes.
·
Sem lugar seguro e a “solução” Egito
Além dos ataques a
Gaza, a Cisjordânia também vê o recrudescimento da onda de violência que a ONU
classificou como “alarmante e urgente” em janeiro. A região tem sido tratada
como uma zona militar fechada, o que inclui restrições de acesso, ataques das forças
de segurança israelense quase diários, além de registros de ações armadas por
parte de colonos israelenses.
Ali também está
presente o fenômeno do deslocamento forçado. Segundo o Escritório das Nações
Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha), em 2023,
aproximadamente 4 mil palestinos foram deslocados devido a políticas e práticas
implementadas pelas autoridades ou pelos colonos israelenses. A própria agência
da ONU afirma que o número pode estar subestimado.
Uma parte das pessoas
que são forçadas a sair de suas residências precisa fazê-lo por conta da
demolição de suas casas. “A maioria das estruturas demolidas na Cisjordânia são
alvo de falta de licenças de construção emitidas por Israel, que são quase impossíveis
de serem obtidas pelos palestinos diante do planejamento discriminatório de
Israel e das leis e políticas de autorização”, aponta relatório do Ocha.
Assim, mesmo quem não
está em Gaza também tem que enfrentar a possibilidade de ter que sair de suas
casas, sem saber se poderá voltar. “A primeira coisa a notar é que a maioria
dos palestinos em Gaza (1,7 milhão) são originalmente refugiados deslocados em
1948, a quem foi negada a possibilidade de regressar às suas casas após a
criação de Israel. São vítimas de uma ‘transferência retroativa’, ou de uma
política que transformou os refugiados em povos permanentemente deslocados ou,
mais precisamente, em vítimas de limpeza étnica”, explica o professor-associado
da Universidade de Memphis, Michael Vicente Pérez, ao Outras Palavras.
“Esta experiência, que não é específica dos refugiados palestinos em Gaza –
aplica-se a todos os palestinos deslocados durante as guerras de 1948 e 1967 –,
justifica o medo atual entre eles de que um ataque israelita ao campo de
refugiados de Rafah possa levar a um deslocamento permanente da Palestina.”
Como a ofensiva
militar israelense tem atingido campos de refugiados, hospitais, sedes de
organizações internacionais e outros locais que não deveriam ser alvo, o risco
para os deslocados é ainda maior do que em situações similares no passado. “Ao
contrário de casos anteriores de expulsão em massa, hoje, em Gaza, os
palestinos que fogem permanecem sitiados. Israel atacou repetidamente áreas que
designou como ‘zonas seguras’, o que significa que os palestinos em Gaza não
têm nenhum lugar seguro para onde ir. Isto pode fazer parte dos objetivos de
Israel”, argumenta Pérez.
No caso, a meta
israelense seria fazer com que os palestinos saíssem da região sem ter a
garantia de que poderiam voltar. “Ao atacar áreas de refúgio em Gaza, está se
aumentando a pressão sobre o Egito para que aceite refugiados palestinos.
Presumivelmente, se os palestinos fossem autorizados a entrar no Egito, Israel
não os atacaria, uma vez que estariam no território de outro Estado. Mas o
Egito recusou-se a aceitar refugiados palestinos porque teme que Israel possa
impedir o seu regresso caso cruzem a fronteira”, diz o professor de Memphis.
Um documento vazado do
ministério da Inteligência de Israel, com data de 13 de outubro, relatava uma
proposta para transferir à força e de forma permanente os palestinos de Gaza
para a Península do Sinai, no vizinho Egito. “As mensagens devem girar em torno
da perda de terras, deixando claro que não há esperança de retornar aos
territórios que Israel ocupará em breve, seja isso verdade ou não”, afirmava o
documento revelado pela revista +972. O
documento apontava para a criação de uma campanha pública no mundo ocidental
para promover o plano de transferência “de uma forma que não incite ou difame
Israel”. Sua execução seria feita apresentando a expulsão da população de Gaza
como uma “necessidade humanitária”, argumentando que a relocalização levaria a
“menos vítimas entre a população civil em comparação com as vítimas esperadas
se a população permanecer”.
O Egito é hoje o
segundo maior devedor do Fundo Monetário Internacional (FMI) e tem uma inflação
anual que supera a casa dos 30%. A estratégia de utilizar perdão de dívidas ou
mesmo injeção de recursos como forma de persuasão não seria nova. Em 2023, o governo
egípcio acolheu 200 mil pessoas que fugiam da violência do Sudão em troca de 21
milhões de euros em financiamento da União Europeia, evitando que o fluxo
migratório chegasse ao continente europeu. Em 1991, os Estados Unidos e outras
potências aliadas perdoaram metade de U$S 20,2 bilhões de dívidas do Egito para
que o país fizesse parte da coalizão anti-Iraque na Guerra do Golfo.
No entanto, a situação
hoje é diferente. Aceitar que refugiados ocupassem a Península do Sinai seria
visto como se o país não tivesse autonomia sobre uma área que foi anexada por
Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e retomada apenas depois do Acordo de
Paz de 1979. Além disso, caso o governo egípcio aceite receber refugiados
palestinos, seria praticamente sacramentar que eles teriam o seu direito de
retorno extinto, já que Israel nunca permitiu que retornassem a suas casas após
terem se deslocado. Isso seria mal recebido pela própria população do país como
também por outros vizinhos da região.
·
UNRWA e direito de retorno
Em 11 de dezembro a
Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a resolução 194 (III), determinando
que “os refugiados que desejam regressar às suas casas e viver em paz com os
seus vizinhos devem ser autorizados a fazê-lo o mais cedo possível, e que deve ser
paga uma compensação pela propriedade daqueles que optam por não retornar e por
perda ou dano a bens que, segundo os princípios do direito internacional ou da
equidade, deveriam ser reparados pelos governos ou autoridades responsáveis.” A
norma se refere aos refugiados palestinos, que teriam direito ao regresso às
suas casas de onde foram deslocados à força, restituição de propriedade e
reparações.
Israel nunca cumpriu a
resolução. Nem outras, também aprovadas pela Assembleia Geral desde então, que
reafirmavam este direito. Para auxiliar os deslocados, a Agência das Nações
Unidas de Auxílio e Trabalhos para os Refugiados da Palestina (UNRWA) foi criada
e iniciou suas operações em 1950 com a missão de ajudar “pessoas cujo local de
residência normal era a Palestina durante o período de 1 de junho de 1946 a 15
de maio de 1948, e que perderam a casa e os meios de subsistência como
resultado resultado do conflito [árabe-israelense] de 1948”. É uma agência
subsidiária das Nações Unidas, com financiamento fornecido voluntariamente por
vários países ao redor do mundo, e que hoje é responsável por 58 campos
oficiais de refugiados na Jordânia, no Líbano, na Síria, na Cisjordânia, em
Gaza e em Jerusalém Oriental.
“Ela [a UNRWA] deveria
ser temporária, imaginava-se que rapidamente esses refugiados palestinos
pudessem retornar às suas terras. Isso não aconteceu. Desde 1949, o mandato da
UNRWA é renovado periodicamente. Nesse tempo, os descendentes desses primeiros 450
a 500 mil refugiados se multiplicaram na região. Atualmente, a UNRWA registra e
atende 6 milhões de refugiados”, conta Giancarlo Summa, pesquisador na Escola
de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) em Paris, jornalista e cientista
político, em entrevista a Outras Palavras.
A agência tornou-se um
dos principais alvos do governo de Israel, que acusou 12 funcionários, em um
universo de 13 mil que trabalham ali, de terem participação no ataque liderado
pelo Hamas no ano passado. Ainda que não tenham sido apresentadas provas, dezesseis
países suspenderam o financiamento À UNRWA de pronto, o que pode afetar não só
a manutenção dos campos de refugiados existentes como a ajuda humanitária aos
novos deslocados pela ofensiva militar em Gaza.
“Em geral, o trabalho
e os relatórios da UNRWA servem como prova do contínuo impacto prejudicial da
Nakba e da ocupação, o que não pinta Israel de uma forma positiva”, afirma a
professora Anne Irfan. Para ela, é mais um elemento que ajuda a explicar a natureza
excepcionalmente duradoura da situação dos refugiados palestinos. “Esta é uma
questão complexa, uma vez que as instituições em questão (como a UNRWA) foram
deliberadamente criadas de forma a serem insuficientes. No entanto, em termos
gerais, podemos dizer com certeza que há uma falta de preocupação por parte da
‘comunidade internacional’ (assim dominada pelo Ocidente) em relação aos
direitos palestinos.”
Em meio aos ataques
militares e ao cerco feito a Gaza, seria prudente para os países doadores da
agência da ONU suspenderem seus aportes, com base em um dossiê de seis páginas?
“O comissário geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, já despediu todos os funcionários
acusados e abriu uma investigação em resposta às alegações. Este não é o
momento de punir coletivamente todos os beneficiários da ajuda palestina,
cortando o financiamento à organização, quando a sua liderança tomou as medidas
responsáveis necessárias.”
A animosidade
israelense com a agência é antiga e, além de ser uma lembrança dos impactos
negativos da ocupação, também inclui outros fatores. “Israel sempre teve uma
relação difícil com a UNRWA. Dado que ela presta serviços e opera em campos de
refugiados palestinos, e os campos já foram um local privilegiado para difundir
e construir apoio à resistência armada palestina, Israel tem criticado o
trabalho da organização. Israel também criticou os livros didáticos usados nas
escolas da UNRWA, alegando que os materiais educacionais aumentam a oposição a
Tel Aviv entre as crianças em idade escolar. Mas os livros didáticos usados nos
Territórios Palestinos Ocupados (TPO) são aprovados por Israel e, em outros
casos, a UNRWA usa os livros didáticos nacionais dos países em que atua
(Jordânia, Síria e Líbano)”, explica Kelsey P. Norman. “Na realidade, Israel
depende da UNRWA para fornecer os serviços sociais nos TPO que, de outra forma,
o próprio país teria de fornecer como potência ocupante, poupando assim a Israel
milhões de dólares.”
A hipótese de um
desmantelamento da agência, opção defendida pela autoridade israelense, não
seria uma opção aceitável, segundo Norman. “Aqueles que afirmam que a UNRWA
deveria ser abolida desejam que os refugiados palestinos sejam absorvidos pelos
países árabes anfitriões (Síria, Jordânia e Líbano). Na realidade, porém, a
grande maioria deles não tem plenos direitos econômicos e sociais nestes
países, e os palestinos temem que a integração signifique abandonar a esperança
de eventualmente regressar à Palestina. Por isso, o desmantelamento da agência
poderia deixar os palestinos numa posição ainda mais precária do que estão
agora, e não ajudaria a resolver o conflito israelo-palestiniano, como alguns
argumentam”, diz a professora.
“Israel também não
gosta que a UNRWA, de muitas maneiras, promova a identidade dos palestinos como
tal. A UNRWA é dirigida principalmente por palestinos e educa os palestinos de
uma forma que reforça a sua identidade como refugiados palestinianos. A agência,
num certo sentido, pertence aos palestinos e mantém um aspecto da sua
identidade como refugiados”, pondera Michael Pérez. “Israel opõe-se ao direito
de regresso dos palestinos e gostaria muito que toda a questão dos refugiados
fosse apagada da comunidade internacional. Destruir a UNRWA seria uma forma de
fazê-lo.”
Este é um ponto
central para qualquer discussão que possa levar a uma paz efetiva na região. “O
processo de paz de Oslo na década de 1990 procurou negociar sem cobrir os
direitos dos refugiados palestinos, incluindo o direito de regresso. Não teve
sucesso, pelo menos em parte, por esse motivo. O deslocamento e a expropriação
do povo palestino são fundamentais para toda a questão e não podem ser
marginalizados”, pontua Anne Irfan. O direito de retorno foi um dos pontos que
seria elaborado no que foi chamado de “acordo de status final”, que nunca
aconteceu dada a interrupção do processo.
Peréz acredita que a
criação de um Estado palestino e a resolução da questão das pessoas que foram
deslocadas podem andar de mãos dadas, embora exista um sério obstáculo: a
posição estadunidense. “A comunidade internacional pode basicamente afirmar que
o fim do conflito deve abordar a questão dos refugiados”, acredita. “O
principal obstáculo hoje, a meu ver, são os Estados Unidos. Têm a maior
influência sobre Israel e, no entanto, recusam-se a fazer com que Tel-Aviv
concorde ou cumpra com as expectativas mais básicas de uma solução permanente.
Não estou otimista quanto à possibilidade de os EUA mudarem a sua abordagem e
vejo os EUA como um dos principais problemas do conflito. Até que mude a sua
posição em relação a Israel, Israel não mudará a sua posição em relação aos
palestinos.”
Fonte: Por Glauco
Faria, em Outras Palavras
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