Poderemos livrar a sociedade brasileira do
nefasto bolsonarismo?
O Carnaval foi marcado
por uma onda de euforia relacionada ao avanço das investigações da Polícia
Federal contra o núcleo duro do governo Bolsonaro. Um vídeo em que a cúpula de
governo claramente discutia um golpe de Estado, a retenção do passaporte do ex-presidente
e a prisão de Valdemar Costa Neto, presidente do PL, criaram imensa excitação
numa opinião pública ávida pela punição do ex-presidente, que por sua vez
marcou manifestação de rua para 25 de fevereiro.
No entanto, como
afirma o cientista político Henrique Costa nessa entrevista, o quadro político
e social mantém suas perturbações e a polarização é um fator que tende a
permanecer com ou sem Bolsonaro no jogo. Frio em sua análise, Henrique Costa
mostra muita desconfiança com o protagonismo do STF na condução da suposta
estabilização política do país.
“Essa noção faz parte
do vocabulário dos políticos e dos juízes, que desde 2022 falam em ‘pacificar’
o país, quando a realidade e suas próprias ações só aprofundaram a tensão. Em
parte, isso acontece por conta da alienação de Brasília. Toffoli se importa com
a repercussão de suas anulações de condenações, por exemplo? Lula teve ameaçada
alguma de suas indicações para o STF? Era sabido desde sempre que o governo
enfrentaria oposição no Congresso, diferentemente de suas gestões passadas, mas
tem buscado enfrentá-la em aliança com o STF, o que retroalimenta a
insatisfação social que fortalece a mesma oposição”.
Como deixa claro na
entrevista, não se trata de ignorar ou mesmo conciliar com a noção de que a
extrema-direita, ainda liderada por Bolsonaro, não represente riscos a um
projeto crível de democracia. A questão é que, como em todas as democracias
liberais orientadas pelos grandes grupos econômicos, a instabilidade política
reflete tensionamentos muito mais amplos. E grandes espetáculos comandados por
uma instituição conservadora que parece operar ao sabor dos ventos políticos
não prometem redenção alguma.
“Pessoalmente, tenho
certeza da culpa de Bolsonaro em crimes suficientes para tirá-lo
definitivamente da vida pública. Contudo, a produção dessas provas segue um
tempo de investigação diferente do tempo político, e a urgência de produzir
resultados para as próximas eleições com objetivo de minar o desempenho de seus
aliados (e, portanto, dele mesmo em 2026), vai certamente alimentar sua
narrativa de perseguição e trazer consequências para o acirramento da
polarização”, analisou.
Na visão de Henrique
Costa, o Brasil continua governado por poderes e instituições perigosamente
apartados da realidade objetiva da população. Para além dos espetáculos
midiáticos de buscas, apreensões, prisões e ansiedade pelos próximos capítulos,
permanece um mal-estar pouco ou nada interpretado pelos operadores do poder.
“Na verdade, esta
relação ambígua com os políticos, ministros do Supremo e militares é parte da
alienação geral do poder tradicional com relação ao pulso da população: eles
são seduzidos pelas câmeras e pela nostalgia, que alimentam sua vaidade e sua
autoindulgência, assim como os juízes acreditam que estão salvando a democracia
porque aparecem assim nos jornais. Mas pelo menos metade da população acha
exatamente o contrário”, afirmou.
Portanto, é necessário
pé no chão e compreensão de que os problemas reais precisam ser atacados em
aspectos variados. Políticas sociais e assistenciais são úteis e podem servir
para estancar o golpismo. Mas, como Costa assevera, seguimos carentes de projetos
mais ousados de transformação das relações sociais. E, ao reduzir a atuação
política aos muros institucionais, devemos nos questionar até que ponto não se
inviabiliza o que viria a ser um verdadeiro projeto de “pacificação nacional”.
“É controverso que os
programas sociais lulistas possam ser caracterizados como políticas de
bem-estar social, assim como a condução da economia não tem se destacado por
ser ‘contra-hegemônica’, como o próprio PT reclama, aliás. Se fosse o caso,
talvez estivéssemos em melhor situação econômica e política. É claro que
programas como o bolsa-família são fundamentais e têm grande importância na
vida dos mais pobres, mas, no plano macro, as iniciativas governamentais têm
pouco impacto e ainda somos muito dependentes do agronegócio e das exportações
de matérias-primas, situação que não deve mudar no curto ou médio prazo”.
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Leia a entrevista completa:
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Como recebeu a nova
operação da Polícia Federal que efetivou na quinta, 8, prisão de importantes
militares e assessores que fizeram parte do governo de Jair Bolsonaro? Com a
revelação de vídeo que torna definitivamente inequívoco o intento golpista do
ex-presidente, qual reflexão caberia fazer aos que ainda se importam em viver
num sistema democrático capaz de satisfazer as necessidades reais da população?
A operação da Polícia
Federal contra Bolsonaro e seu entorno era esperada, assim como os sinais
indicam que ele pode ser preso ainda este ano. Do ponto de vista jurídico,
parece que ainda há controvérsias se, com o que foi apresentado até o momento,
é o caso e não tenho qualificação para afirmar. O que me parece óbvio é que sua
eventual prisão seja justificada por fatos robustos e inquestionáveis,
conduzidos de maneira transparente pela Justiça, a reduzir o espaço para que
ele e seus asseclas coloquem em dúvida o processo.
Evidentemente, tudo
que envolve o ex-presidente, a favor ou contra, é espetacularizado, e ele logo
se encarrega de usar esses episódios a seu favor. É um roteiro bastante
semelhante ao que acontece nos EUA, em que a foto de Trump fichado pela polícia
virou estampa de camisetas e seus apoiadores mais fiéis veem nisso uma virtude.
O fato é que a inelegibilidade de Bolsonaro não o colocou à margem do processo
político, o que talvez fosse a expectativa de seus algozes. Pelo contrário, ele
tem mantido a aposta de que uma eventual prisão pode convulsionar o país,
fazendo com que as instituições não tenham conseguido, até o momento, dar o
passo final. E ele faz isso porque as instituições até aqui não foram capazes
de afastar as suspeitas de julgamento político – pelo contrário.
Pessoalmente, tenho
certeza da culpa de Bolsonaro em crimes suficientes para tirá-lo
definitivamente da vida pública. Contudo, a produção dessas provas segue um
tempo de investigação diferente do tempo político, e a urgência de produzir
resultados para as próximas eleições com objetivo de minar o desempenho de seus
aliados (e, portanto, dele mesmo em 2026), vai certamente alimentar sua
narrativa de perseguição e trazer consequências para o acirramento da
polarização.
Isso não quer dizer
que ele deva sair impune, mas admitir que sua prisão, em última instância, será
uma decisão política, e não jurídica, o que tem sido o padrão no Brasil desde o
impeachment de Dilma Rousseff, passando pela condenação de Lula e sua libertação.
É notável que, em todos esses casos, tenha existido uma considerável exposição
do Supremo Tribunal Federal, cada hora atuando para um lado diferente e
decidindo ao sabor das conveniências e da opinião pública. Será este o caso
novamente?
É sintomático que
diversas pesquisas venham reafirmando a polarização – segundo pesquisa
AtlasIntel de 5 de fevereiro, 42,2% respondem que ele está sendo perseguido
injustamente, uma ligeira maioria diz não confiar nos ministros do STF. Para
Lula, a cristalização da imagem de que está buscando vingança a qualquer custo
sinaliza dificuldades à frente. Mantido este cenário, não nos veremos livres do
bolsonarismo tão cedo, mesmo que ele ganhe outro nome.
·
É possível acreditar
numa duradoura solução por meios exclusivamente institucionais, diante da
dinâmica política de tensionamento da democracia que extrapola o Brasil e está
globalizada? Mais uma tradicional “saída por cima” na história do país seria
suficiente?
A história recente tem
mostrado que as “saídas por cima” têm alcance limitado em sociedades
polarizadas. Mesmo em países tradicionalmente autoritários, questionamentos aos
regimes passaram a fazer parte do jogo político, que não se contém com a mera
repressão, como vimos recentemente no Irã. No Brasil, a acomodação social que
se seguia a esse tipo de arranjo acabou em 2013, lembrando que na mesma época
uma série de eventos semelhantes aconteceram pelo mundo porque, de fato, essas
dinâmicas hoje são globalizadas em um ciclo de alimentação mútua.
Essa noção faz parte
do vocabulário dos políticos e dos juízes, que desde 2022 falam em “pacificar”
o país, quando a realidade e suas próprias ações só aprofundaram a tensão. Em
parte, isso acontece por conta da alienação de Brasília. Toffoli se importa com
a repercussão de suas anulações de condenações, por exemplo? Lula teve ameaçada
alguma de suas indicações para o STF? Era sabido desde sempre que o governo
enfrentaria oposição no Congresso, diferentemente de suas gestões passadas, mas
tem buscado enfrentá-la em aliança com o STF, o que retroalimenta a
insatisfação social que fortalece a mesma oposição.
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O que pensa do
discurso de uma mídia ainda hegemônica que fala em “alas legalistas das forças
armadas” e trata com subserviência o atual presidente da Câmara, Arthur Lira,
notória exceção dos planos de vingança orquestrados no gabinete do golpe?
A mídia tradicional
tem cada vez menos relevância nesse processo, ela tem pouco a contribuir para o
incitamento ou para o fim da polarização – o que ademais é ruim para os
negócios. Até a Jovem Pan teve de se livrar de seus radicais para não perder
dinheiro e mesmo a concessão pública. Obviamente, todos tentam manter uma
aparência de independência, fazem críticas pontuais aos dois lados e defendem
genericamente a democracia, mas é fato que uma parcela muito grande da
sociedade se afastou da influência desses veículos, espaço ocupado pela
pulverização das redes sociais. A antiga noção de que a Rede Globo colocava e
tirava governos ao seu bel-prazer não é mais comprovada pelos fatos, e a
empresa vive hoje de lampejos da audiência que tinha no passado graças a
extravagâncias como o Big Brother Brasil.
Na verdade, esta
relação ambígua com os políticos, ministros do Supremo e militares é parte da
alienação geral do poder tradicional com relação ao pulso da população: eles
são seduzidos pelas câmeras e pela nostalgia, que alimentam sua vaidade e sua
autoindulgência, assim como os juízes acreditam que estão salvando a democracia
porque aparecem assim nos jornais, mas pelo menos metade da população acha
exatamente o contrário.
Quanto a Arthur Lira,
o temor que ele desperta é sintoma de um poder desproporcional e provavelmente
exagerado. Eduardo Cunha tinha tanto poder quanto Lira e terminou na cadeia –
aquele fez muito estrago, mas não fez sozinho.
·
Como desarmar essa
bomba, a considerar que há todo um espraiamento das direitas radicais pelos
estados brasileiros, em especial sul e sudeste, e permanece no chão social uma
militância paranoica que se mantém fiel ao núcleo golpista? Reforçar políticas
de bem estar social e enfrentamento ao neoliberalismo que reorientou boa parte
da gestão do Estado nos últimos anos se tornaria uma espécie de ousadia
necessária?
É controverso que os
programas sociais lulistas possam ser caracterizados como políticas de
bem-estar social, assim como a condução da economia não tem se destacado por
ser “contra-hegemônica”, como o próprio PT reclama, aliás. Se fosse o caso,
talvez estivéssemos em melhor situação econômica e política. É claro que
programas como o bolsa-família são fundamentais e têm grande importância na
vida dos mais pobres, mas, no plano macro, as iniciativas governamentais têm
pouco impacto e ainda somos muito dependentes do agronegócio e das exportações
de matérias-primas, situação que não deve mudar no curto ou médio prazo.
Reforçar políticas
mais ousadas de bem-estar social certamente mudaria o panorama das relações
sociais no Brasil, mas isso atualmente enfrenta muitos obstáculos, com o baixo
crescimento, orçamento extremamente comprometido e o apetite do centrão,
materializado em orçamento impositivo, emendas parlamentares etc.
De todo modo, focar em
ações que tenham impacto real na vida da população, como valorização do
salário-mínimo ou a renegociação de dívidas, podem ter um bom resultado de
curto prazo que faça ceder minimamente a resiliência nas franjas do
bolsonarismo, sobretudo na classe média baixa. Infelizmente, do ponto de vista
institucional, é um caminho longo e sujeito a percalços. Mas é claro que uma
completa e inequívoca desmoralização de Bolsonaro e seu entorno podem
contribuir para, pelo menos, colocar seus apoiadores mais radicais em
quarentena por tempo indeterminado e reduzir a fervura.
·
Para além da
administração pública e da institucionalidade, o que imagina como esforços a
serem empreendidos por democratas, progressistas, esquerdistas e legalistas em
geral?
Nem sempre esses
coletivos couberam na mesma frase, portanto, é uma novidade da história que
hoje tenham de atuar juntos. Acredito que a defesa da legalidade não é um
consenso dentro da diversidade da esquerda contemporânea, apesar de
conjunturalmente ser necessária. Também há muitas dúvidas quanto à condução das
pautas, às alianças formadas etc. As militâncias são combativas, mas nem sempre
falam a mesma língua e suas prioridades são diferentes, como vimos nas
divergências quanto às indicações para o Supremo.
Assim, acredito que o
papel realista desses atores é a defesa de um julgamento rigoroso das
tentativas de rompimento democrático por Bolsonaro e seus apoiadores, mas que
seja tecnicamente inatacável para que sua desmoralização seja inquestionável, o
que me parece ser a posição de Lula. Senão, o bolsonarismo tem tudo para
retornar lá na frente – mas novamente, é provável que o tempo político é quem
determine e a pressa para vê-lo fora do jogo pode ter consequências
imprevisíveis.
Para além disso, não é
nenhuma novidade dizer que os movimentos sociais precisam fazer a sua parte e
sair para as ruas, retomar o trabalho de base e construir alternativas vindas
de baixo. É claro que isso é necessário para que a esquerda volte a ter enraizamento
popular. Por ora, os partidos da esquerda tradicional decidiram pelo papel de
fiadores das instituições democráticas e carregaram toda a sua base para a sua
defesa. É uma decisão tática, na medida em que os disruptores do sistema estão
do outro lado. Mas é difícil saber se no futuro ela vai conseguir se desprender
disso.
Fonte: Por Henrique
Costa em entrevista a Gabriel Brito, no Correio da Cidadania
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