Líder do Invasão Zero na Bahia é ré por
tentativa de homicídio
O dia era 18 de julho
de 2013. João* estava na porta da sua casa, ao lado dos filhos e da esposa,
quando viu dois carros se aproximando. A família conseguiu se jogar na sala
segundos antes do motorista de um dos veículos acelerar e destruir a parede. Os
meninos, de 9 e 12 anos, e a mulher saíram ilesos. João, em estado de pânico,
precisou ser levado ao hospital. As fotos do buraco na parede e do laudo médico
estão no processo de tentativa de homicídio, que corre na Vara Criminal de
Wenceslau Guimarães (BA).
Os suspeitos do crime
são Renilda Maria Vitória de Souza e seus irmãos, Ruy Carlos dos Santos Souza e
Osvaldo José de Souza Junior — este último, o motorista do veículo Mercedes
lançado contra a parede. Depois de tentar atingir a família, Osvaldo gritou:
“Vou te matar”. Renilda, que chegara ali minutos antes, gritando ofensas e
segurando um pedaço de pau, entrou no carro. Ruy estava em outro veículo.
Conhecida como Dida
Souza, Renilda é fundadora e presidente do Movimento Invasão Zero na Bahia e
uma das principais expoentes nacionais do grupo, presente em oito estados.
Filha do ex-deputado Osvaldo José de Souza e funcionária comissionada do
Tribunal de Contas do Estado (TCE), Dida era a administradora do grupo de
WhatsApp do Invasão Zero, usado por fazendeiros para organizar a expulsão
forçada de uma retomada indígena no município de Pau Brasil (BA).
Realizada em 21 de
janeiro, a ação armada resultou no assassinato da pajé Maria Fátima Muniz de
Andrade — a Nega Pataxó. Seu irmão, o cacique Nailton Pataxó, foi baleado no
abdômen e submetido a cirurgia.
No dia que marca um
mês do crime, De Olho nos Ruralistas inaugura uma série de reportagens
detalhando o histórico de conflitos e as conexões políticas do Movimento
Invasão Zero, que vão de megaprodutores de cacau no Sul da Bahia aos lobistas
da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) em Brasília, passando por um
instituto de extrema direita apoiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e pelo
autoproclamado “príncipe herdeiro” do Brasil, Bertrand de Orleans e Bragança.
A face cacaueira de
Dida Souza e dos diretores do Invasão Zero será tema da segunda reportagem da
série, nesta quinta-feira (22).
LÍDER DO INVASÃO ZERO
AMEAÇOU FAMÍLIA COM JAGUNÇOS ANTES DE ATROPELAMENTO
Ocorrida uma década
antes do ataque à retomada Pataxó Hã Hã Hãe, a tentativa de homicídio contra
João e sua família foi também motivada por um conflito fundiário. De acordo com
as informações do processo, a vítima trabalhava na empresa Osvaldo Souza Empreendimentos
Patrimoniais Ltda, pertencente ao pai de Dida, e vivia em uma casa cedida pelo
empresário, em uma das fazendas dele, no município de Wenceslau Guimarães (BA).
“Tendo moradia em uma
pequena casa residencial, da qual sempre teve a posse mansa e pacífica,
inclusive com anuência do falecido Sr. Osvaldo”, informa um trecho da notícia
crime anexada ao processo acessado pelo De Olho nos Ruralistas.
Após a morte de
Osvaldo, em junho de 2012, os filhos passaram a disputar as terras do pai. Em
depoimento, João afirmou nunca ter sido informado sobre o desejo de Dida Souza
e de seus irmãos em reaver as propriedades até a manhã do dia 18 de julho de
2013. Horas antes de lançar a Mercedes no muro da família, a futura líder do
Invasão Zero esteve na casa das vítimas, acompanhada de três jagunços. O grupo
soltou os cavalos de João e destruiu as baias onde ficavam os animais. Antes de
ir embora, a agressora disse que voltaria.
“Toda essa situação
causou desespero e medo a toda a família, que até aquele momento desconhecia
qualquer motivo que justificasse aquela atitude da senhora Renilda”, informa o
documento.
Hoje, mais de dez anos
depois, o processo está parado, à espera das próximas decisões da Justiça. A
reportagem entrou em contato com o Ministério Público da Bahia, que acompanha o
caso, mas não obteve resposta até o fechamento da edição. As vítimas não foram
localizadas. De Olho nos Ruralistas também buscou contato junto aos
representantes de Dida Souza, mas não obteve retorno.
DISPUTA ENTRE IRMÃOS
VIROU CASO DE POLÍCIA
Renilda Maria Vitória
de Souza pertence a uma tradicional família de latifundiários e produtores de
cacau. A partir de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), o núcleo de pesquisas do De Olho nos Ruralistas identificou 37 propriedades
rurais em nome da coordenadora do Invasão Zero e de seus familiares. Os imóveis
somam 8.321,52 hectares, número equivalente à metade da área urbana de
Salvador.
Advogada de formação,
Dida é proprietária das Fazendas Bela Vista e Tararanga, nos municípios
vizinhos de Wenceslau Guimarães e Gandu. Outras 21 propriedades estão
registradas em nome dos pais Osvaldo José de Souza e Ceres dos Santos Lisboa, e
dos irmãos Osvaldo José de Souza Junior, Ruy Carlos dos Santos Souza, Rodrigo
Martins de Souza e Sara Costa Paixão. Quinze fazendas pertencem à empresa
Osvaldo Souza Agropastoril Ltda, registrada no nome do patriarca da família e
que tem Dida como sócia. As terras se estendem para outros quatro municípios
baianos: Apuarema, Itamari, Ituberá e Nilo Peçanha.
O cacau faz parte da
história da família. Ruy, irmão de Dida, já ocupou o cargo de presidente do
Conselho Municipal do Cacau em Wenceslau Guimarães. Em 1985, o patriarca
Osvaldo foi diplomado “Homem de Ouro do Cacau”, título concedido pela
Assembleia Legislativa da Bahia. Criado na década de 60, o reconhecimento era
concedido aos grandes produtores de cacau do estado. Além de produtor rural,
Osvaldo foi vereador em Nilo Peçanha e prefeito em Wenceslau Guimarães,
municípios onde a família tem terras. Em 1987, foi eleito deputado estadual
pelo Partido da Frente Liberal (PFL) de Antônio Carlos Magalhães, sendo
reeleito por três vezes.
A morte de Osvaldo em
2012 deu início a uma batalha judicial entre os filhos, levando o nome da
família para as páginas policiais da época. Fruto do segundo matrimônio do
deputado baiano, Rodrigo Martins teria falsificado documentos para passar para
o seu nome as fazendas do pai. Quando a farsa foi comprovada por peritos do
Departamento de Polícia Técnica, Rodrigo se escondeu em uma das propriedades.
Renilda pediu ajuda à Polícia Militar da Bahia, mas o irmão, apoiado por um
grupo de homens armados, trocou tiros com os soldados. Ela chegou a ser
agredida por Rodrigo e por um capanga.
De acordo com texto
publicado no portal Política Livre, no centro da disputa estavam 36 mil
hectares de terras divididos em fazendas de gado, cacau e seringa. O número é
quatro vezes superior à área total registrada pela família junto ao Incra.
FAMÍLIA DE DIDA SOUZA
SE CRUZA COM A DO MARQUETEIRO DUDA MENDONÇA
As páginas policiais e
o envolvimento em conflitos fundiários são um ponto fora da curva na trajetória
midiática de Dida Souza. Com ares de socialite, a advogada estampou seu sorriso
em publicações do portal Alô Alô Bahia, dedicado a notícias de entretenimento e
agenda cultural de Salvador. Em 2019, ela aparecia almoçando com amigas na
filial soteropolitana do restaurante Fasano. No ano seguinte, uma nota
detalhava a celebração de seu aniversário. No portal Michelle Marie, o destaque
foi o registro de uma viagem ao Pará, ao lado do marqueteiro político Duda
Mendonça e de sua esposa Aline Waxman Caetano.
Falecido em 2021,
Mendonça foi o responsável pela campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da
Silva em 2002, tendo ganhado projeção ao cunhar o slogan “Lulinha paz e amor”,
modernizando a imagem do petista. O publicitário trabalhou com outros nomes de
peso da política brasileira, como Paulo Maluf, Marta Suplicy, Roseana Sarney e
Siqueira Campos, além de ter coordenado a campanha do ex-primeiro ministro
Pedro Santana Lopes, em Portugal. Em 2006, Mendonça foi denunciado pela
Procuradoria-Geral da República por envolvimento no esquema do “mensalão”, mas
foi absolvido em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Duda e Dida eram
amigos pessoais. Em sua conta no Instagram, a líder do Invasão Zero presta
várias homenagens ao publicitário que, além da política, se dedicava à pecuária
e à criação de cavalos quarto de milha. “Hoje é a data do seu aniversário; data
que você amava tanto e que, por isso, tenho maravilhosas lembranças”, escreveu
Dida em agosto de 2023. “Cada ano comemorávamos em um lugar diferente, desde a
farra em Taipú até as comemorações em Las Vegas”.
A relação ia além da
amizade. O enteado de Duda Mendonça, Henrique Waxman Souza, é fruto da relação
entre a viúva do marqueteiro, Aline Waxman, com Osvaldo José de Souza Junior,
irmão de Dida e um dos envolvidos na tentativa de homicídio em Wenceslau
Guimarães. De acordo com as informações do processo, às quais a reportagem teve
acesso, era Osvaldo quem dirigia o veículo Mercedes que derrubou o muro da
casa.
Ele o filho Henrique
são sócios na empresa America Fruit Ltda, uma produtora de cacau com sede na
Fazenda Pedra Dourada, em Wenceslau Guimarães. Além de sobrinho, Henrique
Waxman Souza é afilhado de Dida.
DE SOCIALITE A LÍDER
DE MILÍCIA RURAL
Até 2022, o perfil de
Dida Souza no Instagram era dedicado quase inteiramente a exibir uma vida
luxuosa, com passeios de barco, almoços em restaurantes badalados de Salvador e
viagens à Europa. A partir das eleições daquele ano, a dolce vita deu lugar ao
conteúdo político. Após uma sequência de postagens de apoio ao ex-presidente
Jair Bolsonaro, então candidato à reeleição, em 13 de novembro de 2022, ela
publicou a imagem de uma bandeira do Brasil com a frase: “Aceitar uma derrota é
para os fortes. Aceitar uma trapaça é para os covardes”. Era o início de uma
nova fase na vida de Dida.
Em um dos primeiros
vídeos de caráter político publicados em sua rede social, no dia 18 de abril de
2023, a advogada diz: “Com a união de todos, nós vamos combater essa sigla
chamada MST, que vem espalhando baderna e terror pelo país”, referindo-se ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A postagem se referia ao ato de fundação do
Movimento Invasão Zero, lançado durante evento na Assembleia Legislativa da
Bahia.
Desde então, as redes
de Dida tornaram-se um dos principais espaços de divulgação do grupo. No dia do
assassinato da pajé Nega Pataxó, em 21 de janeiro, a presidente do Invasão Zero
publicou um vídeo mostrando dezenas de carros estacionados num gramado. Ao
redor deles, alguns homens caminhavam, outros se uniam em grupo. Na legenda,
ela escreveu: “Aos corajosos agricultores que oportunamente estão se deslocando
para impedir a invasão em Itapetinga, rogamos a Deus proteção”.
Uma semana depois do
assassinato da pajé Nega Pataxó, Dida publicou em seu perfil uma Cartilha
Orientativa para Proteção de Propriedades. De acordo com a publicação, o
objetivo é “orientar os produtores rurais de como agir em caso de suspeita ou
confirmação de invasão de uma propriedade”.
Entre as orientações,
a cartilha indica aos produtores que entrem em contato direto com um dos
administradores do Movimento Invasão Zero. “Esse contato deverá ser feito,
inicialmente, no privado, para que as informações sejam organizadas, antes da
mobilização do(s) grupo(s)”. Na sequência, outra imagem da publicação informa
que, a partir das informações fornecidas, o grupo irá se unir “em maior número
de pessoas possíveis, de forma ordeira e pacífica para dialogar com os
invasores”.
Em novembro de 2023,
ela coordenou o evento de lançamento da primeira subsede estadual do Instituto
Harpia, na Bahia. Focado na defesa da propriedade privada e dos valores
conservadores, o instituto tem Jair Bolsonaro como presidente de honra e é
liderado pelo deputado Major Vitor Hugo (PL-GO), um dos principais
interlocutores do Invasão Zero em Brasília. A conexão entre as duas
organizações será tema de uma das próximas reportagem da série.
Fonte: De Olho nos
Ruralistas
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