quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Gaudêncio Frigotto: Quatro décadas do MST - reforma agrária e educação

Acompanho ativamente desde seu nascimento o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Um movimento que surge não somente pela negação histórica da Reforma Agrária, mas, além disto, como expressão da forma que o capitalismo canibal, como o define a filósofa americana Nancy Fraser, avançou no campo a partir, sobretudo, da década de 1970. Um processo escandaloso de concentração de propriedade de propriedade sob o manto da ditadura empresarial militar deflagrada em 1964 e que se prolongou por 21 anos.

O MST, ao lutar pela Reforma Agrária Popular, reitera a luta dos escravos e de suas lideranças no processo da abolição da escravidão. Como observa Luiz Felipe Alencastro, a oligarquia agrária somente concordou com a abolição formal da escravidão, mediante a negação da luta dos abolicionistas que queriam que os escravos não apenas fossem libertos, mas tivessem como indenização uma quantidade de terra para produzir sua sobrevivência. O fracasso da reforma agrária, observa Alencastro, teve seu início nesta negação.

O que é cínico é que, 136 anos depois, vindos não mais dos barões da escravidão, mas de seus sucedâneos, da expansão agrícola e concentração de propriedade das terras pelo agronegócio, os argumentos dos  grandes proprietários de terras, do capital financeiro e industrial sejam os mesmos do escritor e político cearense Jose de Alencar. Percebendo as tendências abolicionistas nos quadros da Monarquia em 1871, advertia o que poderia ocorrer com a abolição: "Tolerado semelhante fanatismo do progresso, nenhum princípio social fica isente de ser ele atacado mortalmente ferido. A mesma monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estritas e obsoletas. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo". (Ver: Juremir Machado da Silva. Raízes do conservadorismo brasileiro. A abolição na imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018, p. 75).

Nestes quarenta anos a luta, como destacou ao final da década de 1990 João Pedro Stédile, uma de suas mais importantes lideranças, o MST teve e tem que enfrentar três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital. Desde sua fundação como movimento orgânico, bravamente avançou na ruptura das duas primeiras cercas. A terceira, a do capital, desde os debates da Reforma Agrária Popular o MST sinaliza que esta é uma questão a ser coletivamente enfrentada por todos os movimentos do campo e da cidade que queiram alimento saudável e futuro minimamente previsível.

O que se tem de Reforma Agrária nestes 40 anos é o rompimento das cercas do latifúndio improdutivo ou de terras públicas apropriadas indevidamente, forçando assentamentos. Isto à custa de muito sofrimento e de muitas perdas de seus lutadores. Quando os grandes proprietários e a mídia que os representa propalam que o agronegócio dá segurança alimentar, escondem duas realidades perversas em nossa sociedade: a fome endêmica de mais de trinta milhões de brasileiros e de outros 170 milhões com insuficiência alimentar; e, que uma reforma agrária como a maioria das nações civilizadas já fez, com pequenas e médias propriedades com assistência técnica com base na ciência da agroecologia, produziria a mesma quantidade ou mais, dando-nos soberania alimentar.

Mas, certamente, é  no enfrentamento da cerca da ignorância que o MST é amplamente vitorioso e exemplar para o conjunto da sociedade. Nestas quatro décadas, o MST afirmou a tese da educação "do campo" e não para ou no campo. "Do campo" para superar uma dupla deformação: a de um ensino e processos formativos colonizadores e de uma educação que ignorava que os campesinos são sujeitos de cultura, de conhecimento e, portanto, o ponto de partida do processo pedagógico para uma formação por inteiro. Um processo, como afirma Roseli Caldart, educadora do MST em seu clássico livro Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola (Petrópolis/RJ, Editora Vozes 2000), que não começa na escola, mas na sociedade e retorna para a sociedade.

Esta é a perspectiva de  educação, realçando os valores do coletivo, da solidariedade, do principio do trabalho socialmente útil como tarefa de todos que se pautam nas escolas dos assentamentos. A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, referência mundial de formação de novas lideranças, tem  este DNA. Desde o processo de construção, deu-se pelo trabalho coletivo e solidário de brigadas de jovens e adultos campesinos e se repete  em todas as atividades formativas que lá se realizam.

Com a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 1998, e especialmente ao longo dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhares (PT), deu novas perspectiva para os jovens do campo. A perspectiva da educação "do campo" penetrou os umbrais das universidades, especialmente as públicas, criando centenas de cursos de licenciatura do campo, alguns programas de pós-graduação com esta modalidade, formação de pesquisadores, etc. Um passo ainda mais importante foi a criação da Universidade Fronteira Sul, fruto da luta coletiva do MST e de outros movimentos sociais do campo. Em nenhum desses espaços o "céu é de brigadeiro". Pelo contrario, move-se no duro e cotidiano embate da luta de classe.

O fechamento do Pronera pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL) e a patética e desmoralizada CPI contra o MST são o reconhecimento de que o que se plantou e ampliou nestes 40 anos não vai ser interrompido. Mais que isto, o horizonte da Reforma Agrária Popular para o conjunto da sociedade brasileira tem como interpelação e exigência um projeto de educação sob a direção dos trabalhadores do campo e da cidade. Esta é a diretriz que nos lega o patrono do MST Florestan Fernandes.

"O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da educação que obedeça apenas à fórmula abstrata da 'educação para um mundo em mudança', mas sim da educação como meio de autoemancipação coletiva dos oprimidos e de conquista do poder pelos trabalhadores" (Florestan Fernandes, O desafio educacional. São Paulo, Editora Expressão Popular, 2020, p. p.29).

Um viva os 40 anos do MST e  às bravas e bravos lutadores que dia a dia o sustentam e o ampliam.

 

Ø  MST celebrou 40 anos em ato político com presença de ministros e lideranças partidárias e populares

 

No sábado (27), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizou um ato político em celebração aos seus 40 anos, na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP). O movimento popular camponês está organizado em 24 estados do país, com 185 cooperativas, 120 agroindústrias e cerca de 400 mil famílias assentadas.

Durante a celebração, o movimento lançou uma carta aberta ao povo brasileiro. O documento cita várias medidas para combater a fome, estimular a produção de alimentos saudáveis, educação, cultura, combater as violências e levar mais vida ao campo.

O ato contou com a presença de aproximadamente mil pessoas. Estiveram presentes, inclusive os ministros Silvio Almeida, dos Direitos Humanos; Márcio Macêdo, da Secretaria-Geral da Presidência; Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; e Luiz Marinho, do Trabalho.

"O MST ensina que nós não podemos cair na ilusão de separar o conhecimento da prática", comentou o ministro Silvio Almeida. "Nós estamos fazendo essa celebração dentro de uma escola. Não se faz revolução sem ciência. O MST tem feito política de direitos humanos há muito tempo", disse Almeida.

O ministro da Agricultura, Paulo Teixeira destacou que o MST "escreve a história do Brasil ao atuar com os mais pobres e organizá-los para lutar pela reforma agrária e produzir alimentos saudáveis. O movimento tem uma enorme expressão como modelo de organização de luta pela terra".

Também participam da cerimônia representantes do cônsul de Cuba, Benício Pérez, movimentos populares e partidos políticos de todo o país.

José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil, disse que a luta do MST é uma luta pedagógica. "Nos ensina e mais do que isso, nos convoca e nos alinha a uma direção. O MST tem empurrado as nossas forças políticas e tem nos alertado sobre os desafios que temos pela frente", analisa.

·        Coletiva sobre os 40 anos do MST

Antes do ato político foi realizada uma coletiva sobre os 40 anos do MST, com Ceres Hadich, da direção nacional e Jaime Amorim, da coordenação nacional do movimento. “Apesar da direita e de parte da imprensa nos chamarem de invasores, na verdade é o contrário. Quem sempre invade é o latifúndio", disse Jaime Amorim.

Amorim também afirma que o movimento irá lançar candidaturas no próximo ano. “Precisamos ter representantes nas câmaras municipais e fazer a disputa com o fundamentalismo evangélico nos municípios.” Um dos nomes já sedimentados para enfrentar a disputa municipal é o de Rosa Amorim para a Prefeitura de Caruaru, em Pernambuco. Hoje, Amorim é deputada pelo PT no estado. 

"A luta pela terra, a luta pela reforma agrária transcende gerações. Ela não nasceu com o MST. A gente é herdeiro de uma luta histórica que tem mais de 500 anos no Brasil", comentou Ceres Hadich, da direção nacional do movimento.

·        Como foi o nascimento do movimento de camponeses em Cascavel (PR)

Há 40 anos, em Cascavel, no oeste do Paraná, camponeses de todo o Brasil se reuniam para formar um movimento nacional de luta pela reforma agrária. Surgia ali o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

“Fui com essa clareza de que nós íamos formar uma organização firme e forte. Definimos os objetivos, que era terra, reforma agrária e organização social. E os princípios: ia ser um movimento popular de massa, independente”, conta Jaime Calegari, militante histórico do MST-PR, que esteve naquele I Encontro Nacional e hoje é acampado na comunidade Herdeiros da Terra, em Rio Bonito do Iguaçu.

O ano era 1984, a democracia era recente no país e os movimentos populares estavam em ebulição. No campo, a luta pela terra acontecia de forma regional, por movimentos como o dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (Mastro) e o dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paraná (Mastes), do qual Calegari fazia parte.

“A mecanização do campo estava avançando forte e estava excluindo a juventude”, conta o militante. “Eram jovens que queriam permanecer na terra, a gente fazia reuniões em cada município e os jovens diziam que queriam trabalhar”, relembra.

No início do movimento, Calegari conta que foi preciso superar preconceitos que existiam até mesmo entre alguns camponeses, que não concordavam com a ocupação de terras. “Até explicar que estamos fazendo ocupação para mostrar para o governo que existe terra e existe demanda”, pontua.

Na faixa, a frase: “As ocupações são ilegais, mas são justas” / Arquivo MST-PR

A primeira ocupação de que Calegari participou foi em junho de 1984, em Mangueirinha, no sudoeste do Paraná. Era um jovem de 23 anos. Desde então, passou 34 anos atuando na frente de massas do MST e viveu diversas ocupações em diferentes partes do estado. "Fizemos caminhadas, trabalho de base mostrando o que era o MST, que era uma luta por terra, alimento, comida saudável", afirma. 

Ao longo dos anos, o militante conta que viu o movimento ir se adequando às necessidades de cada época. Além dos camponeses que precisavam de terra para trabalhar e viver, houve expansão da atuação também para as cidades, com o intuito de recuperar quem havia saído do campo e queria voltar.

Daquele encontro de 1984, com cerca de 100 pessoas, o MST chega aos 40 anos com cerca de 400 mil famílias assentadas e outras 70 mil acampadas, organizado em 24 estados do Brasil. Fruto do trabalho das famílias sem terra, o movimento conta com 185 cooperativas, 1,9 mil associações e 120 agroindústrias.

Calegari lembra que, lá em 1984, tinha a esperança de que estivesse surgindo em Cascavel um movimento nacional de camponeses que iria “superar governos”, escapar das tentativas de eliminação que viriam por parte da direita e de cooptação que viriam do centro. Hoje, ele afirma que o surgimento do MST foi um ganho para o país como um todo.

“A sociedade ganhou milhares de famílias sem terra que não passam fome e estão produzindo alimentos para todos. Além da terra, tem a educação, o movimento tirou muita gente do analfabetismo”, pontua Calegari, em alusão aos mais de 100 mil adultos alfabetizados pelo MST em campanhas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com base no método de alfabetização cubano “Sim, eu Posso”.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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