terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Celso Amorim: pressão pró-Israel contra Lula vem “mais da mídia brasileira” do que de qualquer outro lugar

O assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Celso Amorim, com 81 anos, compartilha sua visão um tanto pessimista sobre as possibilidades de diálogo com o governo de Israel, a menos que, segundo ele, Tel Aviv pare com a ‘matança’ na Faixa de Gaza.

“Na situação atual não há como negociar”, ele diz. Enquanto conselheiro do presidente Lula, o diplomata também rotula a ofensiva israelense em Gaza como genocídio e critica “uma estranha aliança” entre Israel e a extrema direita brasileira.

Em resposta à exigência de que Lula se desculpe com Israel por comparar as ações em Gaza aos métodos de Hitler, Amorim é direto. “Vai ficar pedindo. Se é que ele está insistindo mesmo. Não sei se ele [Binyamin Netanyahu] faz isso por demagogia interna ou por qualquer outra razão, mas certamente se ele está esperando isso não vai receber. Não posso falar pelo presidente, mas eu não vejo nada, não vejo razão para o presidente se desculpar”.

>>>> Abaixo, alguns trechos da entrevista:

·        Passada uma semana desde a declaração do presidente Lula, o senhor acredita na possibilidade de reaproximação com o governo de Israel?

Nunca estivemos afastados do povo judeu, nem sequer do Estado de Israel, cuja existência nós defendemos. O problema é que esse governo, além do que ele está fazendo em Gaza, comportou-se de uma maneira diplomaticamente inadmissível.

Nunca vi nem na Guerra Fria o Khrushchev [União Soviética] dizer que o Kennedy [Estados Unidos] era uma persona non grata ou vice-versa. A maneira como o nosso embaixador foi tratado também foi lamentável. Fizeram um espetáculo público.

·        O sr. acha que foi uma armadilha?

Foi uma armadilha porque eles fizeram um circo. Então são duas coisas. Uma é a relação mais profunda Brasil-Israel que é uma relação boa. O presidente Lula foi o primeiro presidente brasileiro a visitar Israel. Como é que podem dizer que ele negou o Holocausto? É um absurdo, é mentira.

Agora, a condição mais importante [para reaproximação com Israel] é parar a matança. Muito difícil negar que é genocídio. Atiraram bomba para matarem cem, porque talvez tenha uma pessoa do Hamas. Não sou eu que estou dizendo isso. Há uma medida cautelar da Corte Internacional de Justiça.

·        Não tem possibilidade de diálogo com o governo Netanyahu?

Eu acho praticamente impossível. Pode ser que mude de atitude; eu sou um pouco pessimista. Obviamente esse governo não quer que exista a Palestina, nem em Gaza nem na Cisjordânia. Uma das declarações citada pela África do Sul, mas repetida pela Corte, é de que não há inocentes. Se não há inocentes, é preciso eliminar todo mundo. Diferenciar isso de genocídio é muito difícil.

Claro que nada é comparável diretamente ao Holocausto pelo número, pela quantidade, por uma série de coisas, mas ninguém também tem um monopólio do sofrimento.

·        O sr. diz que numericamente não dá para comparar a ofensiva a Gaza ao Holocausto. Mas o presidente o fez.

Mas a essência é igual. Não vejo diferença. Claro que você vai analisar cada caso. Todo mundo não disse que Ruanda é um genocídio? Ouvi isso do próprio secretário de Estado americano. Uma coisa que claramente se dirige contra todo um povo, toda uma população, não vejo outra maneira de definir.

·        O próprio líder do governo no senado, Jaques Wagner, falou que o presidente pode ter passado do ponto nessa declaração.

Discordo do meu querido amigo Jaques Wagner. Acho que não passou do ponto. A declaração do presidente ajudou a sacudir a opinião pública mundial. Fala-se muito de guerra do Israel com Hamas. Não é; é guerra de Israel com a Palestina. Só que antes era uma guerra em câmera lenta.

E, de repente, por causa do atentado terrorista, que nós condenamos obviamente —porque [houve] morte de civis, adolescentes, uma coisa bárbara, ninguém vai passar o pano em torno disso— tomou uma proporção maior.

·        O Netanyahu ainda insiste em um pedido de desculpas.

Vai ficar pedindo. Se é que ele está insistindo mesmo. Não sei se ele faz isso por demagogia interna ou por qualquer outra razão, mas certamente se ele está esperando isso não vai receber. Não posso falar pelo presidente, mas eu não vejo nada, não vejo razão para o presidente se desculpar.

Tenho certeza que essa pressão é mais da mídia brasileira do que de qualquer outro lugar. Ele não recebeu nenhuma pressão. Por exemplo, Antony Blinken [secretário de Estado americano] nem de longe sugeriu a ideia de pedido de desculpas. Ele fez uma referência ao Holocausto de maneira muito sutil. Ficamos com a opinião da Corte Internacional. É um genocídio. Não sei qual vai ser a decisão definitiva da corte, mas o que existe hoje é o seguinte: há uma plausibilidade na acusação de genocídio.

·        O sr. diz que só vai melhorar a relação se parar a matança. O sr. acredita nisso?

A pressão internacional vai aumentar. Nas resoluções da ONU, por exemplo, países aliados dos Estados Unidos todos têm votado a favor do cessar-fogo. Sabe aquela história que você está numa estrada, na contramão e começa a ver os carros. São milhares de pessoas na contramão e só você está na mão certa?

·        Quando o presidente se manifesta de uma maneira tão enfática ele não acaba sendo descredenciado como um negociador?

Há momentos em que você deve negociar e há momentos em que você deve denunciar. Na situação atual não há como negociar. Tem que parar a matança. E aí sim, pode negociar.

Como nós negociamos várias vezes. O próprio Netanyahu; não gosto do que ele falou com relação ao Brasil e que ele tenha a ação que ele tem. Mas ele mudou. Quando o Lula esteve lá, por exemplo, ele pediu que ajudássemos numa retomada de negociação com a Síria. Parecia querer negociar. Hoje em dia não quer. Acho que ele está jogando com o eleitorado interno.

Não vamos agir contra Israel. Não tem nada disso. Mas também não podemos apagar uma aliança estranha que existe entre o governo de Israel e a extrema direita brasileira.

·        Há muitas evidências do governo de Israel com a direita brasileira?

O embaixador de Israel teve uma conversa lá com o pessoal ligado ao [ex-presidente] Jair Bolsonaro. Não é com a direita moderada. Obviamente vamos esperar acabar o julgamento. Coloco essa ressalva sempre. Mas estão acusados de golpe. Não é qualquer direita.

·        Parece que na sua opinião, então, Israel poderia fazer um pedido de desculpas ao Brasil por tentar intervir na política interna.

Não estou preocupado que eles peçam desculpas. Acho melhor que eles parem de intervir. O importante é ter clareza que nós não temos nada por que nos desculpar. Quem tem que se desculpar é o Estado de Israel, perante a humanidade, perante o mundo, pelas barbaridades que acontecem. Não é pelo Brasil, nem pelo governo brasileiro.

·        Há uma crítica de que Lula não tenha sido igualmente duro com o governo de Vladimir Putin em relação à Guerra da Ucrânia.

Desculpe, mas não tem comparação. Você pode condenar. E nós condenamos. O uso da força, a quebra da integridade territorial da Ucrânia pela força, sem diálogo. Somos contra. Agora não se pode dizer que seja um genocídio como está sendo praticado [em Gaza].

Fui recentemente a uma reunião sobre Ucrânia, convidado pelos ucranianos. Citaram como uma coisa absurda —eu concordo que seja um absurdo— 500 crianças ucranianas que morreram. Eu fico espantado que as 10 mil crianças da Palestina não mereçam uma reunião do tamanho. Não dá para comparar. Toda guerra é condenável.

 

Ø  Lula, o PT e a Palestina: a história de uma aproximação e suas controvérsias

 

Uma crise recente nas relações entre Brasil e Israel foi causada por uma fala de Lula durante entrevista na Etiópia, após a Cúpula da União Africana. Lula chamou a atenção para o que está acontecendo na Faixa de Gaza, comparando a situação às práticas de perseguição de judeus por parte da Alemanha nazista.

Ao equiparar as ações de Israel em Gaza às práticas do regime nazista, Lula, que passou a receber diversos ataques da oposição e mesmo de parte da mídia, teve seu posicionamento acolhido por seu círculo mais próximo. Gleisi Hoffmann, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), saiu em defesa de Lula, criticando a truculência de Benjamin Netanyahu e a reação de Israel às palavras do presidente brasileiro. Hoffmann e a liderança do PT afirmaram que Lula não deve recuar em suas declarações quanto à equiparação das mortes em Gaza ao Holocausto. Ao longo dos anos, vale lembrar, o PT procurou estabelecer relações próximas com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), no sentido da formação de uma aliança política que pudesse fazer caminhar as reivindicações dos palestinos no Oriente Médio. O entorno de Lula, portanto, constitui-se de pessoas e de forças sociais que advogam em prol da causa palestina. Lula e a diplomacia brasileira, ademais, há anos defendem uma solução de dois Estados na região, um judeu e um árabe, de modo a que ambos possam conviver em paz nessa que é uma das áreas geopoliticamente mais conturbadas do planeta.

Voltando ao contexto nacional, outra força política próxima do PT, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) enviou mais de 13 toneladas de alimentos para Gaza somente no final do ano passado, como forma de ajuda humanitária aos palestinos. Em novembro de 2023, por sua vez, diversas entidades da esquerda brasileira lançaram um manifesto pelo fim do que consideravam um "genocídio em Gaza". Não obstante, manifestações pró-Palestina começaram a ocorrer em diversas partes do Brasil. Do outro lado do espectro político brasileiro, influenciadores de direita e apoiadores incondicionais de Israel começaram a tachar os manifestantes como "simpatizantes do terrorismo", dada a presença de algumas pessoas vestidas com camisas do Hamas, por exemplo. Todo esse contexto serviu apenas para acirrar os ânimos em torno dos acontecimentos em Gaza, outra das muitas questões políticas a causar polarização em praticamente todo o Ocidente. Seja como for, desde outubro o número de vítimas resultante da retaliação israelense já soma mais de 30 mil palestinos, o que causou demasiada comoção internacional.

Durante os primeiros dias do conflito, Lula condenou os ataques do Hamas a Israel e, na sequência, direcionou suas críticas às operações do Exército de Netanyahu em Gaza. Contudo, até recentemente, Lula ainda não tinha feito um discurso que provocasse tamanho alarido nas autoridades israelenses, nem tamanho desconforto, como foi o caso de sua fala realizada no dia 18 de fevereiro em Adis Abeba. Entretanto, tudo o que vem acontecendo em Gaza durante os últimos meses é sim motivo de grande preocupação não só para Lula, como para a comunidade internacional. Há anos os palestinos lutam para (re)conquistar o direito à obtenção de um Estado nacional, e hoje essa possiblidade parece ficar a cada dia mais e mais distante. Lula, ao proferir severos julgamentos contra Israel, não deixou de evidenciar suas preocupações com a questão palestina e com as perdas humanas em Gaza, muito embora suas declarações referentes ao Holocausto tenham sim causado uma ressonância negativa para a diplomacia brasileira.

No mais, acusações de que funcionários de agências da Organização das Nações Unidas (ONU) em Gaza tivessem ajudado o Hamas na deflagração dos ataques de 7 de outubro carecem de melhor investigação, de acordo com o mandatário brasileiro. Diversos países do Ocidente coletivo — apoiadores incondicionais de Israel — decidiram, no entanto, cancelar o financiamento a essas agências, mais uma vez evidenciando as linhas divisórias que hoje separam o Ocidente do chamado Sul Global. Falando em Sul Global, o Brasil se manifestou em apoio a um processo iniciado pela África do Sul junto à Corte Internacional de Justiça que visa julgar as ações de Israel em Gaza, no sentido de enquadrá-las como práticas de genocídio. Em meio a tudo isso, Lula e a liderança do PT vêm participando de uma verdadeira troca de farpas com autoridades de Israel, em uma crise diplomática que parece escalar a cada dia. No Congresso Nacional, desde que voltou ao Brasil de sua viagem pela África, Lula também precisou lidar com um pedido de impeachment levantado pela oposição, a interpretar que as palavras do mandatário brasileiro na Etiópia atravessaram a "linha vermelha".

Seja como for, seria o caso de dizer que a política internacional do Brasil sofreu um processo de partidarização em função da liderança de Lula no governo? A resposta pode estar na verdade na década de 1990. Afinal, desde o período de Fernando Henrique Cardoso (1995–2002) à frente da Presidência que a diplomacia brasileira tem sofrido maior influência por parte do chefe de Estado. Com isso, cresceram os efeitos e os impactos que o presidente do Brasil exerce sobre as relações exteriores do país. Não à toa, passaram então a ganhar mais importância os discursos e os posicionamentos das lideranças políticas à frente do Estado (seja Fernando Henrique, Lula, Dilma ou Bolsonaro), bem como suas visões de mundo e do papel do Brasil nas relações internacionais. O meio político do qual Lula se origina, assim como o próprio Partido do Trabalhadores e qualquer outro partido, certamente possui percepções próprias sobre os interesses nacionais e sobre como o Brasil deve ser conduzido e se posicionar a respeito desse ou daquele assunto.

Lula, em particular, fez sua carreira política em torno de discursos que enfatizavam as contradições existentes entre os poderes econômicos estabelecidos e os segmentos desprivilegiados da sociedade, em especial os trabalhadores. Para Lula, ao estender esse mesmo raciocínio para o âmbito dos conflitos internacionais, fica claro que o segmento menos favorecido hoje no Oriente Médio são justamente os palestinos quem está em flagrante desvantagem. É natural que as crenças e as formas de interpretar o mundo motivem chefes de Estado a posicionar-se contra ou a favor de determinadas lutas políticas. O que não é natural é esperar que o conflito em Gaza seja avaliado exclusivamente de modo frio e emocionalmente distanciado. Até hoje, nenhum ser humano, nenhum partido político, nem nenhum líder mundial foi capaz de dar esse passo.

 

Fonte: O Cafezinho/Sputnik Brasil

 

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