O que pensam segmentos da sociedade civil sobre governo Lula um ano após
subida na rampa
Quando tomou posse para cumprir o seu terceiro
mandato à frente do governo federal, em 1º de janeiro de 2023, o presidente
Lula (PT) convidou para a subida da rampa do Palácio do Planalto representantes
de oito segmentos civis que o acompanharam no trajeto. Foram lideranças das
categorias dos artesãos, catadores, professores, metalúrgicos e cozinheiros,
além de um atleta de 10 anos de idade, um militante da luta anticapacitista e
do icônico cacique Raoni Metuktire, de 90 anos, uma das principais vozes do movimento
indígena no Brasil e figura conhecida em diferentes partes do mundo.
Passado exatamente um ano após a cena que marcou a
história do país, o Brasil de Fato buscou ouvir nomes de alguns desses grupos
para saber como eles avaliam o desempenho da gestão petista até aqui,
considerando aspectos como avanços, gargalos e também eventuais retrocessos.
Confira a seguir os destaques feitos por cada segmento procurado.
·
Pessoas com deficiência
Ativista histórico da pauta das pessoas com
deficiência, Rubens Linhares acompanhou com atenção os passos da administração
federal neste primeiro ano de gestão. Entre outras coisas, o militante integrou
o núcleo de direitos humanos do governo de transição, após as eleições de 2022,
com a atribuição de cuidar da agenda do segmento. Ele atua na Associação das
Pessoas com Deficiência do Pirambu, em Fortaleza (CE), e ainda na Associação
das Pessoas com Deficiência de Maracanaú (CE). Linhares diz que, em 2023, passou
a haver uma “perspectiva de avanço” nas políticas de inclusão, consideradas
prioridade na área.
“A gente já vê isso na questão da educação
inclusiva do MEC [Ministério da Educação], na questão da avaliação
biopsicossocial, na qual o governo vem fazendo estudos, na questão da política
de cuidados, que também é alvo de debate [na gestão], e na questão do Plano
Viver sem Limites II. Tudo isso é um pacote que abre um horizonte de uma nova
era, um novo tempo para as pessoas com deficiência.”
Linhares menciona também a volta da Conferência
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, cuja última edição se deu em
abril de 2016, que discute e propõe políticas públicas. O evento foi alvo de
uma portaria publicada em abril pelo Ministério dos Direitos Humanos e
Cidadania, estipulando prazos para as conferências municipais e estaduais para
que a edição nacional do evento possa ocorrer em julho de 2024. “Nós temos um
lema, que é ‘nada sobre nós sem nós’. A nossa conferência nacional é algo que
responde a essa ideia de a gente participar das coisas”, afirma o militante.
Ele pontua também a existência de desafios que
ainda esperam uma atuação incisiva do governo no chamado “Atendimento
Educacional Especializado (AEE)”, política que prevê a elaboração de recursos
pedagógicos e de acessibilidade que ajudem a eliminar barreiras para a
manutenção de alunos com deficiência no sistema regular de ensino. “É muito
duro ouvir uma mãe dizendo que, quando chega na escola, o filho dela está
sozinho no meio da quadra ou na biblioteca. Tem que melhorar a educação
inclusiva no processo de formação. Infelizmente, o nosso quadro ainda deixa a
desejar. Até mesmo a formação nas universidades tem que se melhorar, que é para
os educadores saírem de lá preparados para lidarem com isso”, defende Rubens
Linhares.
·
Movimento negro
A Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), avalia que o governo deu passos
positivos ao tomar medidas como a instituição do Programa Aquilomba Brasil,
feita em março. A política é coordenada pelo Ministério da Igualdade Racial,
que foi recriado por Lula em janeiro, e tem o objetivo de promover medidas
intersetoriais que favoreçam os direitos dessa parte da população.
A entidade também conta que vê avanços em algumas
frentes da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e na chamada pública do
Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), um braço do Minha Casa Minha Vida
que busca subsidiar a produção ou reforma de imóveis para trabalhadores rurais.
Apesar disso, a organização pondera que sente falta de “vontade política” da
gestão para se avançar em outras direções.
Biko Rodrigues, coordenador da Conaq, conta que o
segmento vem pedindo a revisão de instruções normativas (IN) do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que burocratizam o processo
de regularização de terras quilombolas, mas até agora não teve sucesso. Entre
os pleitos estão a IN 57/2009, editada na segunda gestão Lula, e a IN 128/2022,
herança do governo Bolsonaro.
“Entendemos que o momento é marcado pelo orçamento
deixado pela gestão passada, mas a gente precisa avançar nesses processos, que
não demandam recursos, mas sim vontade política para se fazer [isso]”, diz
Biko. Entre os 5.994 territórios quilombolas existentes no país, 97% aguardam
regularização. O dirigente menciona que há um gargalo ainda sem avanço também
na inclusão dos territórios quilombolas no cadastro do Programa Nacional de
Reforma Agrária (PNRA).
“As comunidades quilombolas já são público da
reforma agrária desde 2004, mas mesmo assim há uma postura dentro das
estruturas do Incra de não aceitar as comunidades quilombolas como público da
reforma agrária. Hoje nós somos, inclusive, o maior público a ser atendido pelo
programa, segundo as regras do Cadastro Único (CadÚnico), por isso a gente
precisa avançar”, ressalta o líder da Conaq.
A Coalizão Negra por Direitos, que congrega 292
organizações da sociedade civil interessadas na pauta da igualdade racial,
acrescenta alguns aspectos na avaliação do primeiro ano da gestão Lula. A volta
do Ministério da Igualdade Racial, fundado em 2003 por Lula e extinto em 2016
por Michel Temer (MDB), em uma fase em que já havia se fundido com outras
secretarias da área de direitos humanos por decisão de Dilma Rousseff (PT), é
considerada um ponto alto. A Coalizão, no entanto, analisa que falta transparência
na pasta.
“Dizem que orçamento é um problema grande do
ministério, mas a verdade é que esse assunto nunca foi publicamente ressaltado
do ponto de vista da sua magnitude. Faço a crítica de que nunca soubemos de
quanto precisamos e o quanto ainda não temos. Agora, orçamento também não pode
ser uma justificativa pra não se fazerem certas coisas”, afirma a historiadora
e consultora Wania Sant’Anna, que integra a coalizão. Ela considera que a
atuação do Executivo federal na busca pela igualdade racial carece também de
vontade política em algumas frentes.
“Tivemos, em 2023, uma campanha para que o
presidente indicasse uma mulher negra ao STF, por exemplo. Ninguém [do governo]
veio conversar com a gente, e eu tenho certeza de que seus pares políticos
sabiam da existência da campanha. A pergunta que não quer calar: por que não
houve essa interlocução? Não quero dizer que necessariamente teríamos
resultados, mas a conversa é importante.”
·
Indígenas
O ano de 2023 também foi marcado por uma forte
relação institucional entre o governo e o movimento indígena organizado. Além
de ter criado oficialmente o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), um
ineditismo na arquitetura administrativa do Executivo federal, a gestão Lula
convidou para a liderança da pasta Sônia Guajajara (PSOL), até então integrante
da cúpula da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal
entidade representativa do segmento. Dinaman Tuxá, da coordenação executiva da
organização, vê a criação do MPI como “positiva”.
Entre outras coisas, ele comenta que a existência
da pasta contribuiu para chamar a atenção para aspectos importantes da agenda
indígena. Uma delas foi o reconhecimento da crise humanitária nas comunidades
da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Em janeiro, o governo decretou estado
de calamidade pública na área e passou a promover ações de socorro à população
local. Outro ponto de realce foi a ida de Sônia Guajajara a diferentes
territórios ao longo do ano, em uma atitude que interrompeu os anos de ausência
de diálogo entre o governo federal e o segmento.
“A ida de um ministro a esses locais acaba
mobilizando o Estado para o atendimento aos indígenas em suas necessidades. É
que a demarcação das terras é competência federal, mas tem outras que podem
partir de outras instâncias porque nós somos munícipes, tanto é que também
participamos do processo eleitoral”, ilustra Tuxá. Ele realça, no entanto, que
a limitação orçamentária do MPI acabou ditando o ritmo e o desenho das ações da
pasta.
“O espaço institucional dentro de uma estrutura de
Estado no alto escalão é muito positivo, se tiver estrutura. Como não estava
dentro do orçamento, o ministério não conseguiu desenvolver ações que se
refletissem nos territórios. Neste primeiro ano o que nós enxergamos foi um
ministério de articulação, de mobilização dentro da estrutura do Estado, mas
não de implementação. Não vimos ações realizadas pelo ministério, nem em
parceria com outras pastas, dentro das terras. Ainda não é um ministério que
tenha conseguido efetivar políticas públicas.”
A Apib pontua também outras questões. “Tivemos
dificuldade de diálogo, de acesso [ao governo] e de se implementar o prometido
pelo presidente em campanha. Tivemos avanços com as seis terras que foram
demarcadas, reconhecemos isso, mas ainda é preciso melhorar [a gestão]. Coisas
simples poderiam ter sido realizadas e não foram, como a revogação de pareceres
e portarias”, ressalta Tuxá.
O dirigente cita como exemplo a manutenção do
Parecer nº 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), que traz argumentos em
defesa da tese do marco temporal. O documento foi editado pelo governo Temer e
encaminhado, na época, ao Supremo Tribunal Federal (STF) para marcar posição no
debate sobre o tema.
Tuxá destaca ainda que a postura da gestão do PT
diante do projeto de lei que institucionaliza o marco temporal incomodou a
Apib. Apesar de o presidente ter vetado uma parte da proposta aprovada pelo
Congresso Nacional, a entidade considera que faltou interesse da gestão em
barrar a derrubada dos vetos na sequência, quando os parlamentares votaram
novamente a pauta, no último dia 14.
“Nós poderíamos ter tido um maior engajamento do
Palácio do Planalto no que tange à permanência dos vetos na votação no
Congresso. Isso não ocorreu, por isso tivemos aí um retrocesso nos nossos
direitos. Tentamos por diversas vezes dialogar com a Casa Civil e outros
ministérios que ficam no Planalto para tentar articular com eles uma estratégia
para manutenção dos vetos, mas sequer responderam nossos e-mails. Nós somos
aliados do governo, mas não somos submissos a ele, por isso a importância de se
destacar isso aqui”, frisa o representante da Apib.
·
Catadores
No que tange à pauta dos trabalhadores que atuam na
área da reciclagem, o segmento menciona a recriação do antigo programa
Pró-Catador, extinto pelo governo Bolsonaro, e a instituição do Programa Diogo
Sant’Ana Pró-Catadoras e Catadores para a Reciclagem Popular. A política tem o
objetivo de articular, em todos os níveis federativos, projetos da
administração pública que promovam os direitos humanos do segmento. A gestão
Lula também pôs fim ao Recicla+, projeto criado pelo governo anterior. O
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) afirma que a
extinção da política era uma demanda da categoria.
“Era um projeto construído pelo governo Bolsonaro
com as empresas privadas e, por exemplo, eles falavam sobre encerrar lixões,
mas não falavam sobre a inclusão dos catadores nisso. Antes de se encerrar
lixões é preciso incluir os catadores, implantar coletiva seletiva, galpões de
reciclagem, mas nada disso era previsto”, diz Alex Cardoso, da equipe de
articulação nacional do MNCR. A organização engloba um total de 1.590
cooperativas e associações do ramo, reunindo 89 mil trabalhadores.
O ano também foi marcado pela recriação do Comitê
Interministerial para Inclusão Socioeconômica de Catadoras e Catadores de
Materiais Reutilizáveis e Recicláveis, responsável pelo monitoramento do
Pró-Catador. Questionado sobre o andamento dessas e de outras políticas, o MNCR
diz entender que o ano foi uma fase de resgate da pauta da categoria. A
entidade ressalta que a falta de orçamento foi um entrave para as ações
voltadas ao setor.
“A primeira medida foi a criação do programa e, com
ele, [a área] pôde começar a receber recursos, mas, como houve uma dificuldade
enorme de verbas para investimentos, a gente ficou construindo projetos e
agora, no Natal dos catadores [em 22 de dezembro], é que o governo assinou um
dos primeiros projetos com recursos específicos para catadores, que foi o
programa Cataforte”, diz o dirigente, ao citar um dos eixos de atuação de um
acordo recém-anunciado que inclui diferentes ações voltadas ao segmento. O Cataforte
prevê um edital – ainda a ser lançado – para incentivar a capacitação de
catadores.
“Diante da dificuldade de conseguirmos recursos
para a área, este foi um ano muito mais de articulação. Nós tivemos muitas
agendas com o governo, por exemplo. Voltamos a ter agendas, no caso, porque na
gestão anterior não se tinha nada em relação aos catadores, já que toda a nossa
pauta foi cortada. Ver os catadores como parte do Estado foi o mais importante.
Para o ano que vem um dos desafios é a gente conseguir avançar na pauta que
prevê para os catadores um pagamento por serviços ambientais”, finaliza Alex
Cardoso.
Fonte: Brasil de Fato
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