sábado, 27 de janeiro de 2024

José Luis Fiori: a vitória estratégica da Rússia em 2023

Ao encerrar-se o ano de 2023 e passados 22 meses desde o início da guerra na Ucrânia, duas coisas estão absolutamente claras: a primeira é que os russos já venceram a guerra, do ponto de vista de seus objetivos políticos e militares; e a segunda é que os Estados Unidos e a Inglaterra não admitirão jamais a sua derrota, devendo manter seu apoio ao exército ucraniano e à sua “guerra de atrito” com as forças russas, mesmo sabendo não já não existe nenhuma possibilidade real de vitória. Mesmo que a Ucrânia amplie seus ataques ao território russo utilizando o armamento de longo alcance que lhe vem sendo fornecido pela OTAN.

Depois do fracasso da grande “contraofensiva ucraniana” de meados de 2023, longamente anunciada, planejada e treinada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, e executada com as armas e o apoio logístico da OTAN, as forças russas conquistaram as cidades de Soledar, Artemolsk e Maryinka, ampliando seu controle sobre os 20% do território ucraniano que já ocupavam.

Em torno desse território, as forças russas construíram uma barreira defensiva praticamente intransponível, e passaram a ocupar uma posição privilegiada, de onde podem atacar ou conquistar – se quiserem – as duas principais cidades da Ucrânia – Kiev e Odessa. E frente a essa verdadeira “fortaleza russa”, as forças ucranianas têm se mostrado incapazes de avançar, ou mesmo de manter suas próprias trincheiras, mesmo contando com o apoio massivo dos EUA e da OTAN.

O significado dessa vitória militar da Rússia, entretanto, vai muito além do campo imediato de batalha, porque derrubou a crença na invencibilidade das armas e dos planos de guerra da OTAN. E, sobretudo, porque demonstrou a capacidade russa de defender seus interesses nacionais com seus próprios recursos, e com suas próprias armas, mesmo contra os desígnios e a vontade das potências euro-americanas do Atlântico Norte, também conhecidas pelo nome genérico de “potências ocidentais”. Deste ponto de vista, a simples resistência vitoriosa da Rússia já se transformou, por si mesma, numa derrota do poder militar global dos Estados Unidos, e numa verdadeira pedra fundamental do novo mundo multipolar que está nascendo e que não se sabe ainda como deverá funcionar.

Não é mera casualidade, neste sentido, a sucessão de revoltas ao redor do mundo que vêm questionando o arbítrio e a legitimidade das intervenções euro-americanas na África Negra e no Oriente Médio. E não está errado pensar que a própria expansão global da China esteja avançando neste momento, e em grande medida, no espaço que foi aberto pelo questionamento vitorioso da Rússia, sobre o “mandonismo geopolítico” das “potências ocidentais”.

Em março de 2022, os Estados Unidos e a Inglaterra intervieram e vetaram diretamente as negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia, que estavam em curso na cidade de Istambul, mediadas pelo governo turco. E apostaram na sua capacidade econômica e financeira de vencer a Rússia, isolando o povo russo e destruindo sua economia nacional através de um “pacote de sanções” econômicas sem precedentes, por seu grau de violência, extensão e detalhamento.

Um verdadeiro ataque econômico que foi muito além de tudo o que já havia sido feito contra Irã, Coreia do Norte, ou mesmo China. A previsão inicial das duas potências anglo-saxônicas e de seus aliados europeus era de que PIB russo caísse uns 30% já em 2022, que a inflação alcançasse a casa do 50%, e que a moeda russa se desvalorizasse algo em torno dos 100%, provocando uma revolta interna da população russa contra o seu próprio governo, sobretudo depois da exclusão da economia russa do sistema de pagamentos internacionais, feitos em dólar, e através do sistema SWIFT controlado pelos Estados Unidos e seus sócios do G-7.

O objetivo imediato dessas sanções era paralisar a ofensiva militar russa dentro do território da Ucrânia, mas no longo prazo era aleijar a economia russa de forma permanente, e por muitas décadas. Além disso, havia a expectativa de que o caos econômico provocado pelas sanções ocidentais pudesse provocar uma revolta separatista das dezenas de povos e etnias que compõem o tecido nacional russo, repetindo o que ocorrera com a Ucrânia e com os países bálticos na década de 1990.

No entanto, a Rússia resistiu ao impacto imediato das sanções econômicas em 2022. Em 2023, o PIB russo cresceu 3,5% (umas das taxas mais altas do mundo), sua taxa de desemprego caiu para 2,9%, sua massa salarial aumentou 8%, sua renda per capita 5% e sua produção manufatureira aumentou 9,4 %, entre março e agosto do mesmo ano. Além disso, a própria guerra na Ucrânia se transformou num grande desafio externo e provocou uma profunda redefinição da estratégia de desenvolvimento econômico e de inserção internacional da Rússia, com o fortalecimento do papel do Estado, da indústria nacional e do mercado interno.

Em dois anos, o uso do dólar nas transações externas da Rússia caiu de 87%, em 2021, para 24% em 2023, e o país logrou se reposicionar dentro da economia internacional, aumentando sua integração com a China, a Índia e com os inúmeros países que não aderiram às sanções impostas aos russos pelos Estados Unidos e pela União Europeia. E hoje, dois anos depois do início da guerra na Ucrânia, em termos “da paridade do poder de compra”, a economia russa já é a primeira economia da Europa e a quinta economia mundial.

Neste sentido, já não cabe mais dúvida de que os europeus e os norte-americanos avaliaram equivocadamente a capacidade de resistência da Rússia como potência militar, energética, mineral, agrícola e atômica, nem conseguiram prever a importância de longo prazo da integração da economia russa com as economias chinesa e indiana. Um “erro de cálculo” das potências ocidentais que já provocou um dano enorme, sobretudo dentro da União Europeia, que entrou num processo prolongado de recessão, com aumento da inflação e da revolta social, junto com um verdadeiro tufão de ultradireita que pode acabar enterrando os últimos vestígios do projeto de unificação europeu.

Por último, as potências ocidentais tentaram isolar a Rússia, inclusive com o “cancelamento” cultural, esportivo e até turístico dentro da comunidade internacional. Mas apenas 21% dos países membros da ONU apoiaram as sanções econômicas dos Estados Unidos e seus aliados europeus, e nesses dois anos desde o início das hostilidades na Ucrânia, a Rússia manteve e ampliou suas relações políticas, diplomáticas e culturais com China, Índia e com a maioria dos países da Ásia, Oriente Médio, África e América Latina. Aliás, é muito provável que tenha sido exatamente nesta área diplomática da política externa que a Rússia tenha alcançado sua maior vitória sobre as “potências ocidentais”.

Apesar da tentativa de cerco e isolamento por parte dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus, inclusive com a criminalização do presidente russo, Vladimir Putin, por parte do Tribunal Penal Internacional, tutelado pelos europeus, o presidente russo visitou a China, em meados de 2023, e mais recentemente, visitou também a Arábia Saudita e o Qatar.

Recebeu em Moscou o Presidente do Irã, Ebrahim Raisi, e o Ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyau Jaishankar, que reafirmou a decisão do governo indiano de aprofundar seus laços econômicos e estratégicos com a Rússia, na contramão do projeto concebido pelo governo americano de formação de um bloco militar com Japão, Coreia e Índia, o QUAD, visando cercar e conter a China e a própria Rússia. Na mesma ocasião, os governos da Rússia e da Índia reafirmaram sua decisão de levar à frente o “Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul”, que unirá São Petersburgo a Mumbai, através dos territórios do Azerbaijão e do Irã.

Além disso, em setembro de 2023, a Rússia organizou e liderou o Sétimo Fórum Econômico Oriental, na cidade Vladivostok, reunindo convidados de mais de 60 países; organizou e liderou do 26º Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, em julho, reunindo políticos e empresários de todo mundo; no mesmo mês, realizou a Segunda Cúpula Rússia-África, na cidade de São Petersburgo, com a presença de 49 delegações oficiais e 17 chefes de Estado africanos.

E ainda, a Rússia teve participação destacada na Reunião do G-20, realizada na Índia no mês de novembro, e participou, no final de dezembro, da Sexta Sessão do Fórum de Cooperação Russo-Árabe, na cidade de Marrakech, recebendo a sinalização do Ministro das Relações Exteriores do Brasil favorável à participação do presidente Vladimir Putin na próxima reunião dos governantes do G-20, que se realizará na cidade do Rio de Janeiro, em novembro de 2024.

Por fim, a Rússia assumiu na primeira hora de 2024, a presidência rotativa do grupo BRICS, agora ampliado com a entrada de cinco novos membros, junto com a solicitação de ingresso no grupo de mais 30 países. Solicitação que deverá analisada na próxima reunião anual de seus dirigentes máximos, que se realizará na Rússia em outubro de 2024. E ao assumir a presidência do novo BRICS, o presidente russo externou sua vontade e decisão de ocupar e ter papel ativo e combativo dentro do sistema internacional que vem atravessando um profundo de crise e fragmentação.

Além disso, Vladimir Putin anunciou sua decisão de desdolarizar as relações comerciais entre os membros do BRICS, e já demonstrou sua simpatia pela incorporação da Venezuela ao grupo – o que, se vier a ocorrer, transformará o grupo do BRICS no maior detentor das reservas energéticas do mundo.

Resumindo: do ponto de vista militar, econômico e diplomático, no ano de 2023, a Rússia obteve uma extraordinária vitória estratégica – muito difícil de ser revertida – com relação aos Estados Unidos e seus aliados europeus, que parecem cada vez mais ilhados dentro do cenário internacional, sobretudo depois do seu apoio inicial e incondicional ao massacre israelense da Faixa de Gaza.

 

Ø  Rússia diz que 'fórmula de paz' de Zelensky é 'absurda e inaceitável'

 

A representante oficial do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, comentou na última terça-feira (16/01) os resultados da participação do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça

De acordo com a diplomata, "há uma compreensão crescente no mundo de que sem a participação da Rússia é impossível alcançar uma solução sustentável para a situação na Ucrânia".

"Hoje, cada vez mais países do Sul e do Leste globais, incluindo aqueles que participaram nas reuniões no formato de Copenhagen, dizem abertamente que sem a Rússia, qualquer discussão sobre os possíveis contornos da resolução da crise ucraniana não faz sentido", diz Zakharova em comunicado publicado no site da Chancelaria russa, se referindo à cúpula sobre a guerra da Ucrânia, organizada por Kiev em agosto de 2023.

Anteriormente, foi relatado que a participação de Zelensky em Davos nesta semana tinha como objetivo promover o plano ucraniano de resolução da guerra e, ao mesmo tempo, angariar apoio dos países do Sul Global para a sua "fórmula de paz" de dez pontos, inicialmente apresentada na cúpula do G20, em novembro de 2022.

O plano, entre outras coisas, inclui a retirada das tropas russas de todo o território internacionalmente reconhecido da Ucrânia, incluindo a Crimeia. A proposta também prevê a punição de criminosos de guerra e o pagamento de indenizações.

Maria Zakharova, por sua vez, destacou que também há um entendimento - entre os países do Sul Global - de que a paz na Ucrânia não pode ser alcançada colocando a "fórmula Zelensky" em primeiro plano. Segundo ela, as exigências do líder ucraniano são apartadas da realidade.

"Todas as reuniões no formato de Copenhagen, incluindo a reunião em Davos e as rondas subsequentes, são sem sentido e prejudiciais para a resolução da crise ucraniana. Os 'princípios de paz para a Ucrânia' que os seus organizadores estão tentando desenvolver são a priori inviáveis, uma vez que são baseado em uma 'fórmula' absurda e inaceitável de Zelensky, que também estabeleceu uma autoproibição legal de conduzir negociações de paz com a Rússia", afirmou Zakharova.

Ela ainda observou que um acordo abrangente sobre Ucrânia só é possível declarando o regresso do país a um status neutro, não alinhado e livre de armas nucleares, assim como a garantia de pleno respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos de qualquer nacionalidade que vivem no seu território.

"Infelizmente, estas questões não estão incluídas nem na fórmula de Zelensky nem na agenda das reuniões no formato de Copenhagen", concluiu Zakharova.

Zelensky rechaça congelamento da guerra

Durante o seu discurso em Davos, presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, rechaçou a ideia de um congelamento da guerra, afirmando que isso não acabaria com o conflito. 

"Deixe-me lembrar que depois de 2014 houve tentativas de congelar a guerra em Donbass. Houve fiadores muito influentes deste processo - o então chanceler da Alemanha, os então presidentes da França. Mas Putin é um predador que não está satisfeito com alimentos congelados", disse Zelensky. 

De acordo com o presidente ucraniano,  qualquer conflito congelado irá, mais cedo ou mais tarde, reacender-se novamente. Zelensky também se queixou que os apelos prolongados dos países ocidentais "para não agravar" a situação levaram à perda de tempo e oportunidades, bem como a morte de muitos soldados ucranianos experientes que lutaram desde 2014.

"Pedimos novos tipos de armas e em resposta ouvimos: 'não escalem'. Mas então as armas chegaram e não houve escalada. Um míssil russo caiu em território da OTAN – a resposta foi novamente 'não escalar'. Mas a retaliação nesse momento poderia ensinar muito à Rússia e dar ao Ocidente a confiança de que necessita", disse o presidente ucraniano.

 

Fonte: Opera Mundi

 

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