José Luis Fiori: a vitória estratégica da
Rússia em 2023
Ao encerrar-se o ano
de 2023 e passados 22 meses desde o início da guerra na Ucrânia, duas coisas
estão absolutamente claras: a primeira é que os russos já venceram a guerra, do
ponto de vista de seus objetivos políticos e militares; e a segunda é que os
Estados Unidos e a Inglaterra não admitirão jamais a sua derrota, devendo
manter seu apoio ao exército ucraniano e à sua “guerra de atrito” com as forças
russas, mesmo sabendo não já não existe nenhuma possibilidade real de vitória.
Mesmo que a Ucrânia amplie seus ataques ao território russo utilizando o
armamento de longo alcance que lhe vem sendo fornecido pela OTAN.
Depois do fracasso da
grande “contraofensiva ucraniana” de meados de 2023, longamente anunciada,
planejada e treinada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, e executada com as
armas e o apoio logístico da OTAN, as forças russas conquistaram as cidades de
Soledar, Artemolsk e Maryinka, ampliando seu controle sobre os 20% do
território ucraniano que já ocupavam.
Em torno desse
território, as forças russas construíram uma barreira defensiva praticamente
intransponível, e passaram a ocupar uma posição privilegiada, de onde podem
atacar ou conquistar – se quiserem – as duas principais cidades da Ucrânia –
Kiev e Odessa. E frente a essa verdadeira “fortaleza russa”, as forças
ucranianas têm se mostrado incapazes de avançar, ou mesmo de manter suas
próprias trincheiras, mesmo contando com o apoio massivo dos EUA e da OTAN.
O significado dessa
vitória militar da Rússia, entretanto, vai muito além do campo imediato de
batalha, porque derrubou a crença na invencibilidade das armas e dos planos de
guerra da OTAN. E, sobretudo, porque demonstrou a capacidade russa de defender
seus interesses nacionais com seus próprios recursos, e com suas próprias
armas, mesmo contra os desígnios e a vontade das potências euro-americanas do
Atlântico Norte, também conhecidas pelo nome genérico de “potências
ocidentais”. Deste ponto de vista, a simples resistência vitoriosa da Rússia já
se transformou, por si mesma, numa derrota do poder militar global dos Estados
Unidos, e numa verdadeira pedra fundamental do novo mundo multipolar que está
nascendo e que não se sabe ainda como deverá funcionar.
Não é mera
casualidade, neste sentido, a sucessão de revoltas ao redor do mundo que vêm
questionando o arbítrio e a legitimidade das intervenções euro-americanas na
África Negra e no Oriente Médio. E não está errado pensar que a própria
expansão global da China esteja avançando neste momento, e em grande medida, no
espaço que foi aberto pelo questionamento vitorioso da Rússia, sobre o
“mandonismo geopolítico” das “potências ocidentais”.
Em março de 2022, os
Estados Unidos e a Inglaterra intervieram e vetaram diretamente as negociações
de paz entre a Ucrânia e a Rússia, que estavam em curso na cidade de Istambul,
mediadas pelo governo turco. E apostaram na sua capacidade econômica e financeira
de vencer a Rússia, isolando o povo russo e destruindo sua economia nacional
através de um “pacote de sanções” econômicas sem precedentes, por seu grau de
violência, extensão e detalhamento.
Um verdadeiro ataque
econômico que foi muito além de tudo o que já havia sido feito contra Irã,
Coreia do Norte, ou mesmo China. A previsão inicial das duas potências
anglo-saxônicas e de seus aliados europeus era de que PIB russo caísse uns 30%
já em 2022, que a inflação alcançasse a casa do 50%, e que a moeda russa se
desvalorizasse algo em torno dos 100%, provocando uma revolta interna da
população russa contra o seu próprio governo, sobretudo depois da exclusão da
economia russa do sistema de pagamentos internacionais, feitos em dólar, e
através do sistema SWIFT controlado pelos Estados Unidos e seus sócios do G-7.
O objetivo imediato
dessas sanções era paralisar a ofensiva militar russa dentro do território da
Ucrânia, mas no longo prazo era aleijar a economia russa de forma permanente, e
por muitas décadas. Além disso, havia a expectativa de que o caos econômico provocado
pelas sanções ocidentais pudesse provocar uma revolta separatista das dezenas
de povos e etnias que compõem o tecido nacional russo, repetindo o que ocorrera
com a Ucrânia e com os países bálticos na década de 1990.
No entanto, a Rússia
resistiu ao impacto imediato das sanções econômicas em 2022. Em 2023, o PIB
russo cresceu 3,5% (umas das taxas mais altas do mundo), sua taxa de desemprego
caiu para 2,9%, sua massa salarial aumentou 8%, sua renda per capita 5% e sua
produção manufatureira aumentou 9,4 %, entre março e agosto do mesmo ano. Além
disso, a própria guerra na Ucrânia se transformou num grande desafio externo e
provocou uma profunda redefinição da estratégia de desenvolvimento econômico e
de inserção internacional da Rússia, com o fortalecimento do papel do Estado,
da indústria nacional e do mercado interno.
Em dois anos, o uso do
dólar nas transações externas da Rússia caiu de 87%, em 2021, para 24% em 2023,
e o país logrou se reposicionar dentro da economia internacional, aumentando
sua integração com a China, a Índia e com os inúmeros países que não aderiram
às sanções impostas aos russos pelos Estados Unidos e pela União Europeia. E
hoje, dois anos depois do início da guerra na Ucrânia, em termos “da paridade
do poder de compra”, a economia russa já é a primeira economia da Europa e a
quinta economia mundial.
Neste sentido, já não
cabe mais dúvida de que os europeus e os norte-americanos avaliaram
equivocadamente a capacidade de resistência da Rússia como potência militar,
energética, mineral, agrícola e atômica, nem conseguiram prever a importância
de longo prazo da integração da economia russa com as economias chinesa e
indiana. Um “erro de cálculo” das potências ocidentais que já provocou um dano
enorme, sobretudo dentro da União Europeia, que entrou num processo prolongado
de recessão, com aumento da inflação e da revolta social, junto com um
verdadeiro tufão de ultradireita que pode acabar enterrando os últimos
vestígios do projeto de unificação europeu.
Por último, as
potências ocidentais tentaram isolar a Rússia, inclusive com o “cancelamento”
cultural, esportivo e até turístico dentro da comunidade internacional. Mas
apenas 21% dos países membros da ONU apoiaram as sanções econômicas dos Estados
Unidos e seus aliados europeus, e nesses dois anos desde o início das
hostilidades na Ucrânia, a Rússia manteve e ampliou suas relações políticas,
diplomáticas e culturais com China, Índia e com a maioria dos países da Ásia,
Oriente Médio, África e América Latina. Aliás, é muito provável que tenha sido
exatamente nesta área diplomática da política externa que a Rússia tenha
alcançado sua maior vitória sobre as “potências ocidentais”.
Apesar da tentativa de
cerco e isolamento por parte dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus,
inclusive com a criminalização do presidente russo, Vladimir Putin, por parte
do Tribunal Penal Internacional, tutelado pelos europeus, o presidente russo
visitou a China, em meados de 2023, e mais recentemente, visitou também a
Arábia Saudita e o Qatar.
Recebeu em Moscou o
Presidente do Irã, Ebrahim Raisi, e o Ministro das Relações Exteriores da
Índia, Subrahmanyau Jaishankar, que reafirmou a decisão do governo indiano de
aprofundar seus laços econômicos e estratégicos com a Rússia, na contramão do
projeto concebido pelo governo americano de formação de um bloco militar com
Japão, Coreia e Índia, o QUAD, visando cercar e conter a China e a própria
Rússia. Na mesma ocasião, os governos da Rússia e da Índia reafirmaram sua
decisão de levar à frente o “Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul”,
que unirá São Petersburgo a Mumbai, através dos territórios do Azerbaijão e do
Irã.
Além disso, em
setembro de 2023, a Rússia organizou e liderou o Sétimo Fórum Econômico
Oriental, na cidade Vladivostok, reunindo convidados de mais de 60 países;
organizou e liderou do 26º Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, em
julho, reunindo políticos e empresários de todo mundo; no mesmo mês, realizou a
Segunda Cúpula Rússia-África, na cidade de São Petersburgo, com a presença de
49 delegações oficiais e 17 chefes de Estado africanos.
E ainda, a Rússia teve
participação destacada na Reunião do G-20, realizada na Índia no mês de
novembro, e participou, no final de dezembro, da Sexta Sessão do Fórum de
Cooperação Russo-Árabe, na cidade de Marrakech, recebendo a sinalização do
Ministro das Relações Exteriores do Brasil favorável à participação do
presidente Vladimir Putin na próxima reunião dos governantes do G-20, que se
realizará na cidade do Rio de Janeiro, em novembro de 2024.
Por fim, a Rússia
assumiu na primeira hora de 2024, a presidência rotativa do grupo BRICS, agora
ampliado com a entrada de cinco novos membros, junto com a solicitação de
ingresso no grupo de mais 30 países. Solicitação que deverá analisada na
próxima reunião anual de seus dirigentes máximos, que se realizará na Rússia em
outubro de 2024. E ao assumir a presidência do novo BRICS, o presidente russo
externou sua vontade e decisão de ocupar e ter papel ativo e combativo dentro
do sistema internacional que vem atravessando um profundo de crise e
fragmentação.
Além disso, Vladimir
Putin anunciou sua decisão de desdolarizar as relações comerciais entre os
membros do BRICS, e já demonstrou sua simpatia pela incorporação da Venezuela
ao grupo – o que, se vier a ocorrer, transformará o grupo do BRICS no maior
detentor das reservas energéticas do mundo.
Resumindo: do ponto de
vista militar, econômico e diplomático, no ano de 2023, a Rússia obteve uma
extraordinária vitória estratégica – muito difícil de ser revertida – com
relação aos Estados Unidos e seus aliados europeus, que parecem cada vez mais
ilhados dentro do cenário internacional, sobretudo depois do seu apoio inicial
e incondicional ao massacre israelense da Faixa de Gaza.
Ø
Rússia diz que 'fórmula de paz' de Zelensky
é 'absurda e inaceitável'
A representante
oficial do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova,
comentou na última terça-feira (16/01) os resultados da participação do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no
Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça.
De acordo com a
diplomata, "há uma compreensão crescente no mundo de que sem a
participação da Rússia é impossível alcançar uma solução sustentável para
a situação na Ucrânia".
"Hoje, cada vez
mais países do Sul e do Leste globais, incluindo aqueles que participaram nas
reuniões no formato de Copenhagen, dizem abertamente que sem a Rússia, qualquer
discussão sobre os possíveis contornos da resolução da crise ucraniana não faz
sentido", diz Zakharova em comunicado publicado no site da Chancelaria
russa, se referindo à cúpula sobre a guerra da Ucrânia, organizada por Kiev em
agosto de 2023.
Anteriormente, foi
relatado que a participação de Zelensky em Davos nesta semana tinha como
objetivo promover o plano ucraniano de resolução da guerra e, ao mesmo tempo,
angariar apoio dos países do Sul Global para a sua "fórmula de paz"
de dez pontos, inicialmente apresentada na cúpula do G20, em novembro de 2022.
O plano, entre outras
coisas, inclui a retirada das tropas russas de todo o território
internacionalmente reconhecido da Ucrânia, incluindo a Crimeia. A proposta
também prevê a punição de criminosos de guerra e o pagamento de indenizações.
Maria Zakharova, por
sua vez, destacou que também há um entendimento - entre os países do Sul Global
- de que a paz na Ucrânia não pode ser alcançada colocando a "fórmula
Zelensky" em primeiro plano. Segundo ela, as exigências do líder ucraniano
são apartadas da realidade.
"Todas as
reuniões no formato de Copenhagen, incluindo a reunião em Davos e as rondas
subsequentes, são sem sentido e prejudiciais para a resolução da crise
ucraniana. Os 'princípios de paz para a Ucrânia' que os seus organizadores
estão tentando desenvolver são a priori inviáveis, uma vez que são baseado em
uma 'fórmula' absurda e inaceitável de Zelensky, que também estabeleceu uma
autoproibição legal de conduzir negociações de paz com a Rússia", afirmou
Zakharova.
Ela ainda observou que
um acordo abrangente sobre Ucrânia só é possível declarando o regresso do país
a um status neutro, não alinhado e livre de armas nucleares, assim como a
garantia de pleno respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos de qualquer
nacionalidade que vivem no seu território.
"Infelizmente,
estas questões não estão incluídas nem na fórmula de Zelensky nem na agenda das
reuniões no formato de Copenhagen", concluiu Zakharova.
Zelensky rechaça
congelamento da guerra
Durante o seu discurso
em Davos, presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, rechaçou a ideia de um
congelamento da guerra, afirmando que isso não acabaria com o conflito.
"Deixe-me lembrar
que depois de 2014 houve tentativas de congelar a guerra em Donbass. Houve
fiadores muito influentes deste processo - o então chanceler da Alemanha, os
então presidentes da França. Mas Putin é um predador que não está satisfeito com
alimentos congelados", disse Zelensky.
De acordo com o
presidente ucraniano, qualquer conflito congelado irá, mais cedo ou mais
tarde, reacender-se novamente. Zelensky também se queixou que os apelos
prolongados dos países ocidentais "para não agravar" a situação
levaram à perda de tempo e oportunidades, bem como a morte de muitos soldados
ucranianos experientes que lutaram desde 2014.
"Pedimos novos
tipos de armas e em resposta ouvimos: 'não escalem'. Mas então as armas
chegaram e não houve escalada. Um míssil russo caiu em território da OTAN – a
resposta foi novamente 'não escalar'. Mas a retaliação nesse momento poderia
ensinar muito à Rússia e dar ao Ocidente a confiança de que necessita",
disse o presidente ucraniano.
Fonte: Opera Mundi
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