De 'cidade-fantasma' a enchentes
frequentes: a bacia do Paraopeba 5 anos após o desastre da Vale
Há cinco anos, a
tranquilidade típica do interior mineiro dava espaço a um desastre sem
precedentes que estampava capas de jornais mundo afora. Nos céus, o ir e vir de
helicópteros com sons estrondosos em busca de sobreviventes. Na igreja
transformada em QG dos trabalhos de resgate, o choro desesperado de famílias
inteiras em busca de informações.
"Só que, hoje, o
Córrego do Feijão se transformou em uma cidade-fantasma", diz à Sputnik
Brasil a artesã Josefa Evangelista Braga, de 42 anos. Localizado a pouco mais
de 15 quilômetros do centro de Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte,
o bairro deu o nome à mina que por décadas foi responsável pela pujança
econômica de todo o município, até o rompimento da principal barragem no dia 25
de janeiro de 2019. Passados os dias angustiantes de busca e contabilização de
vítimas (das 272, até hoje 3 não foram localizadas), cujos trabalhos ficaram
concentrados no lugarejo, restou uma história reduzida a pó e lama, como define
a moradora.
Das cerca de 250
famílias que antes residiam na região, não restaram nem 50, contabiliza Josefa.
"Podemos contar nos dedos os antigos moradores que permanecem aqui. E quem
pensou que se fosse vender a casa e ir embora com a intenção de reduzir a dor
por tudo o que passamos, viu que não foi bem assim. Essa dor vai continuar onde
você estiver. E muita gente que foi embora se arrependeu, só que agora não tem
mais volta", conta.
Grande parte dos
moradores negociou casas e terrenos com a Vale, que se tornou proprietária das
estruturas, muitas em estágio de abandono cercadas por arame farpado e placas
que proíbem a entrada. As ruas com crianças brincando de pega-pega e calçadas
que reuniam vizinhos para "uma boa prosa" deram lugar ao tráfego
intenso de caminhões e veículos da mineradora. "Hoje tem pouca gente, mas
muitos carros da Vale passando para cima e para baixo. O sossego da comunidade
acabou desde então [o rompimento]", enfatiza.
Casa tomada pelo mato
em área próxima ao caminho da lama de rejeitos da Vale até o rio Paraopeba.
Brumadinho, janeiro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 22.01.2024
Casa tomada pelo mato
em área próxima ao caminho da lama de rejeitos da Vale até o rio Paraopeba.
Brumadinho, janeiro de 2021 © Lucas Morais
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Onde ocorreu o rompimento da barragem de
Brumadinho?
Quase uma dicotomia, o
relato da artesã que ainda insiste em reconstruir a vida em Córrego do Feijão
mostra, segundo ela, que a empresa "faz o que quer" na região perto
do seu então centro administrativo: menos moradores, mais veículos nas ruas.
"Os funcionários [da Vale] falam que quem manda aqui é ela, e a empresa
realmente se acha a dona da região. Tanto que quando compraram minha casa,
queriam que eu saísse daqui de qualquer jeito, só que eu tinha outro terreno e
construí em outra rua", acrescenta. Para Josefa, o bairro foi transformado
em um verdadeiro canteiro de obras sem vida.
"Muitas casas
ficaram abaladas e trincadas, isso também levou alguns moradores a venderem
seus imóveis para a Vale. E até hoje atrapalha, é muito barulho. As obras que
foi entregando, [a companhia] deixou de se responsabilizar pelas estruturas, a
exemplo do memorial, que está parado. A mesma coisa é o centro cultural, que
querem que a comunidade se responsabilize, mas não temos condições de manter
sozinhos esses espaços", justifica.
E só restaram as boas
lembranças de outrora, segundo a artesã. É o caso da pequena capela que ficava
próxima a uma outra tradicional comunidade atingida pelo rompimento: Tejuco,
onde acontece em todos os meses de setembro o Jubileu de Nossa Senhora das Mercês,
uma das principais festas de tradição católica de Brumadinho. "Íamos até
lá para fazer conferência, rezar o terço, e hoje não tem mais a passagem [até a
capelinha]. A lama da barragem acabou com a estrada […]. O Córrego do Feijão
era uma família, todo mundo conhecia todo mundo, e hoje não mais", afirma.
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Promessa de 'ressignificação' em Córrego do
Feijão
Desde o começo de
2023, segundo a Vale, os moradores do Córrego do Feijão voltaram a se encontrar
nas ruas da comunidade, com a entrega da praça 25 de Janeiro, do Mercado
Central Ipê-Amarelo, do Centro de Cultura e Artesanato Laudelina Marcondes,
além de duas cozinhas comunitárias. A mineradora ainda garante que as
intervenções são "fruto do diálogo com a comunidade".
"Por trás dos
equipamentos finalizados, há um trabalho que busca fomentar a economia e o
turismo local, além de apoiar a comunidade na administração desses espaços de
forma participativa. Para isso, a Vale oferece assessoria para a gestão e
ocupação desses locais, com capacitações e suporte técnico aos empreendedores.
São realizados encontros periódicos com o grupo gestor e todas as construções e
ações são definidas em conjunto", defende a mineradora.
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Vale leva conflito e divisões para aldeia
às margens do Paraopeba
Poucos quilômetros de
distância e um dilema parecido às margens do Paraopeba, em Brumadinho. A aldeia
batizada de Naô Xohã pelos indígenas Pataxó Hãhãhãe, que na língua-mãe da
comunidade significa espírito guerreiro, vivia quase sem ser conhecida pela maioria
das pessoas, até que veio o rompimento da barragem. O grupo chegou na região
anos antes, após fugirem de conflitos fundiários na região sul da Bahia, com a
esperança de reconstruírem a vida. Na época, eram 56 famílias, segundo contou o
cacique Sucupira, de 33 anos, à Sputnik Brasil.
"Antes do crime
da Vale, em 2019, a gente estava a caminho de terminar nossas casas, dentro das
nossas tradições, além de fazer o plantio das roças, trazer o ecoturismo para a
aldeia. E esse sonho foi paralisado. Tínhamos também a pesca, a caça e nossas
celebrações religiosas, e tudo isso foi tirado de nós. É o rio que faz o Pataxó
viver, porque nós temos um deus que se chama Tiô Pai, deus da água",
relembrou.
Junto com o desastre,
também vieram conflitos internos e a divisão na aldeia, que se espalhou entre
uma nova comunidade em São Joaquim de Bicas — após a doação de terras pela
Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira (AMCNB) — e barracões apertados na
periferia de Belo Horizonte.
"Somos um povo
que não sabe lidar com dinheiro; sabemos de terra, natureza e água. Chegou a
Vale e enganou nossos parentes, colocando um contra o outro. Isso nos separou.
Hoje em dia não falo mais com o meu irmão, o outro que é cacique também não",
revelou. Das famílias que ocupavam o território antes do rompimento, restaram
apenas três.
Parte da comunidade
indígena firmou acordos indenizatórios individuais com a empresa, e os
pagamentos são mantidos em sigilo pela mineradora. Porém, desde 2019, os Pataxó
Hãhãhãe sequer conseguiram acesso à contratação de uma assessoria técnica, que
auxilia outros atingidos ao longo de toda a bacia do Paraopeba.
"Essa região era
o nosso sonho. Nós não tínhamos desavenças, vivíamos reunidos, íamos na casa um
do outro", disse o cacique. Já quem seguiu na aldeia enfrenta uma série de
problemas: desde enchentes que ficaram mais frequentes até questões de saúde.
"As crianças
possuem contato com o solo, têm caroços e feridas pelo corpo e até
desenvolveram diabetes, talvez por conta da contaminação. As pernas dos adultos
também ficaram feridas, as galinhas nascem com muitos tumores e não podemos
consumir nenhum alimento que vem daqui", relatou.
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Novos atingidos: lama voltou a tomar casas
anos após o rompimento
A dona de casa
Fernanda Oliveira, de 42 anos, vive em uma casa construída a 72 metros do
Paraopeba na região de Citrolândia, em Betim, também na Grande Belo Horizonte,
desde a infância. Ela lembra como se fosse hoje quando viu o leito do rio
tomado pelo marrom cor de sangue dos rejeitos do rompimento, mas nunca imaginou
que o pior viria bem depois: com o assoreamento causado pela lama, as enchentes
ficaram mais frequentes no bairro.
Em janeiro de 2022, as
águas do rio subiram tanto após fortes chuvas que casas ficaram praticamente
submersas na região, onde mais de 18 mil pessoas foram afetadas. O quintal de
Fernanda, que contava com uma piscina e churrasqueira, foi tomado pela lama.
"Tomou uma proporção muito grande, porque esse rejeito que o rio trouxe é
muito denso, pegajoso e de difícil remoção, algo que nunca tinha acontecido
antes. Nos fundos da casa, a água ultrapassou três metros", relata.
Até hoje, Fernanda não
conseguiu retirar o material que, segundo ela, faz até as frutas das árvores
frondosas que possui no quintal já nascerem podres. "Qualquer chuvinha que
cai, o rio sobe muito rápido. A Vale fala que tudo isso existia antes do rompimento,
mas depois tomou uma proporção muito diferente do que era", acrescenta. No
ano passado, outra enchente afetou a região. Apesar do volume de água ter sido
menor, também foram registrados diversos estragos.
"Eu já não tenho
gosto nenhum de viver na minha casa, até pelo medo que dá em todo o fim de ano,
no período de chuva. Você não consegue dormir nem descansar. Não dá também para
viajar e deixar tudo aqui. E a situação só piora, a cada chuva desce ainda mais
rejeito", comentou. Após os alagamentos de 2022, a Vale chegou a contratar
empresas especializadas para avaliar a situação. Segundo a mineradora, nas mais
de 950 análises realizadas — também em Brumadinho, São Joaquim de Bicas, Mário
Campos e Esmeraldas — não constaram qualquer relação da lama com os rejeitos do
rompimento.
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Rio pavimentado por milhões de metros
cúbicos de rejeito
O diretor do Instituto
Guaicuy, Marcus Vinícius Polignano, explicou à Sputnik Brasil que o rejeito
praticamente pavimentou o rio Paraopeba ao longo do seu curso e, quanto mais
próximo ao ponto do rompimento, pior é a situação. "Esse é um dano contínuo,
porque não tem como fazer a retirada desse sedimento. Com isso, muda todas as
características, tanto da qualidade da água quanto em relação à cadeia
alimentar, que acaba contaminada", enfatiza.
Além disso, outro
problema grave em toda a bacia é a presença de metais pesados, principalmente manganês,
aponta o especialista. "Em alguns pontos do rio, há inclusive mercúrio e
cádmio. Quando ocorrem períodos de chuva, como o atual, todo esse sedimento
revolve do fundo, volta para a água e isso vai se perpetuando. Então temos um
rio que ainda não pode ser utilizado para a dessedentação [tirar a sede] dos
animais, irrigação e vários outros usos fundamentais para a população."
Conforme Polignano,
nos períodos de estiagem, quando o sedimento fica retido no fundo, a qualidade
da água apresenta aspectos melhores, em processo de recuperação lento, gradual
e progressivo, feito pela própria natureza. "Só que sempre que esse sedimento
é revolvido, a contaminação retorna e há esse processo contínuo que deve se
manter por décadas. O rio Doce [da barragem de Mariana] já mostrou que não tem
como fazer a limpeza do leito", finalizou.
Já a Vale informou
que, com a Estação de Tratamento de Água Fluvial, já devolveu ao Paraopeba 54
bilhões de litros de água limpa. "Os monitoramentos de qualidade da água
continuam a ser feitos em cerca de 80 pontos e apresentam resultados semelhantes
aos registrados antes do rompimento, especialmente em períodos secos. Os dados
convergem com os resultados produzidos pelo monitoramento do Instituto Mineiro
de Gestão das Águas (Igam)", concluiu.
<<<<< Nota
completa da Vale:
A Vale mantém o
diálogo aberto com as comunidades indígenas afetadas pelo rompimento da
barragem, sempre respeitando seus direitos e suas tradições.
Ainda em 2019, foi
assinado, junto ao Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União,
um Termo de Ajuste Preliminar Emergencial, que definiu repasses mensais e
outras obrigações da Vale, inclusive com relação à assistência de saúde e
contratação de entidade para prestar assessoria técnica independente aos
indígenas. Todas têm sido integralmente cumpridas.
A partir de 2020, uma
equipe de saúde multidisciplinar contratada pela Vale passou a atuar na aldeia
Naô Xohã, com atendimentos voltados para a saúde física e mental. O trabalho
vem sendo executado desde então, sem interrupções, em convergência com as políticas
sanitárias vigentes e com o Poder Público.
Sobre problemas de
pele ou quaisquer outras doenças, não há até o momento nenhum registro clínico
que indique relação de causalidade com o rompimento da barragem.
Entre 2022 e 2023,
reconhecendo e respeitando a autonomia e os protagonismos dos indígenas, três
grupos indígenas firmaram acordos com a empresa, homologados pelo Judiciário.
Esses acordos abrangem compensação integral dos danos, das perdas e dos prejuízos
individuais e coletivos, e garantem assistência à saúde complementar ao poder
público até dezembro de 2027, sendo que parte desses valores já foram inclusive
antecipados para os indígenas.
Recentemente, a Vale
adquiriu um terreno de mais de 300 hectares para a realização da realocação
temporária da aldeia Naô Xohã. Além disso, está em fase de contratação a
entidade que fará os estudos socioeconômicos e de saúde referentes aos danos
causados aos indígenas Pataxó e Pataxó HãHãHãe, conforme processo judicial em
curso.
Fonte: Sputnik Brasil
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