A saga de um grupo de produtores em busca de uma cerveja genuinamente
brasileira
No universo cervejeiro, costuma-se dizer “quem faz
a cerveja não é o homem, é a levedura”. Se isso é verdade, a cerveja produzida
no Brasil não é propriamente brasileira. O país é o terceiro maior produtor do
mundo, atrás somente de China e Estados Unidos, mas depende quase totalmente da
importação de levedura, esse fungo microscópico que faz mágica ao transformar a
mistura de água, malte e lúpulo na bebida favorita de tanta gente.
A falta de uma identidade nacional fez com que um
grupo de produtores artesanais saísse à procura de uma levedura brasileira.
Encontraram a mandioca. O tubérculo – também chamado de aipim, maniva,
macaxeira e outros tantos nomes, a depender da região do país – contém
microrganismos que podem ser usados para fermentar bebidas alcoólicas, entre
elas a cerveja. Assim nasceu, em 2022, o Projeto Manipueira Selvagem.
Mais de cinquenta cervejarias em quinze estados se
uniram, lideradas pela Associação Brasileira de Cervejas Artesanais
(Abracerva), para tentar fazer da mandioca uma bebida palatável. O objetivo,
desde então, tem sido criar uma receita colaborativa usando os microorganismos
presentes no caldo fermentado da manipueira, nome dado ao líquido amarelo que
se extrai do tubérculo e pode ser usado para produzir fertilizantes,
inseticidas e caldo de tucupi. Não se trata apenas de criar uma fórmula
comercial. Os produtores querem estimular reflexões técnicas e patrióticas.
Afinal, o que é cerveja? E o que seria uma cerveja brasileira?
“Se a gente quer falar de cerveja brasileira, temos
que usar os insumos daqui. A mandioca está espalhada de Norte a Sul do Brasil
desde a Antiguidade, por causa da expansão da civilização tupi. Quando os
europeus chegaram aqui, eles perceberam que não dava para plantar trigo e
cevada, mas se adaptaram à mandioca”, explica Diego Simão Rzatki,
sócio-fundador e mestre cervejeiro da Cozalinda, uma cervejaria artesanal
catarinense.
Tamanha esperança no tubérculo – cujo nome tem
origem indígena e significa “casa de Maní”, deusa venerada pelos guaranis – faz
lembrar um discurso da ex-presidente Dilma Rousseff que virou meme nas redes
sociais. Em junho de 2015, enquanto seu governo vivia uma grave crise política,
Dilma abriu os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, em Brasília, dizendo:
“Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação. E
aqui nós temos a mandioca”. Em seguida arrematou: “Eu estou saudando a mandioca.”
Rzatki não tem dúvidas: “O nosso projeto é, com
certeza, uma saudação à mandioca.”
Fanático pelo Figueirense, clube de Santa Catarina
que disputa a série C do Brasileirão, Diego Rzatki nunca foi daqueles
torcedores que enchem a cara. Sequer bebia cerveja. “Aos 24 anos, ganhei uma
viagem para a Polônia e lá comecei a beber. Quando passei pela Bélgica, fiquei
apaixonado por como eles veem a cerveja como algo cultural.” Formado em
Economia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rzatki buscava, no
começo dos anos 2010, uma empresa para chamar de sua. Autêntico manezinho – gíria
para quem nasce em Florianópolis –, ele queria empreender na capital
catarinense.
“Vi na cerveja o potencial de divulgar a cultura
manezinha, com cada garrafa da Cozalinda levando um pouco de Floripa. Mas não
bastava criar um storytelling e fazer um rótulo bonito. Eu
queria que as cervejas tivessem terroir”, diz Rzatki. Terroir é
uma expressão francesa que os cervejeiros têm tomado emprestada dos enólogos.
Um vinho com terroir tem gosto, aroma e sabor particulares do
solo em que a uva foi cultivada. Na cerveja, a levedura, o lúpulo e a
fermentação usados na fabricação podem conferir essa distinção.
Um pequeno passo a passo de como se faz uma
cerveja: é preciso, antes de tudo, liberar os açúcares de grãos como cevada,
trigo, milho ou outros, num processo conhecido como malteação. Esse malte,
cozinhado em água, vira um caldo açucarado, chamado de mosto cervejeiro. Depois
de coado, ele recebe adição de leveduras para se transformar em cerveja.
Durante a fermentação, que geralmente é feita dentro de tanques ou barris
fechados com centenas ou milhares de litros, os fungos transformam o açúcar em
álcool, além de gerar carbonatação e criar características de sabor. O lúpulo,
por sua vez, é adicionado para ajudar na conservação, além de dar aromas e
gostos à bebida (o amargor, por exemplo). Passadas algumas semanas (ou meses, a
depender do fabricante e da receita), a cerveja é filtrada e envasada para o
consumo. A nossa gelada industrial de cada dia é fabricada em ritmo bem mais
rápido: fermenta por apenas uma semana, e olhe lá.
Uma das principais inspirações de Rzatki, as
cervejas belgas do estilo Lambic costumam obter seu terroir de
maneira peculiar: a bebida fermenta espontaneamente em grandes tanques abertos,
sofrendo intervenção direta de bactérias que flutuam no ar. O resultado é um
líquido ácido que a população brasileira, habituada à Pilsen do boteco da
esquina, teria dificuldade em chamar de cerveja. “Disseram que eu era louco
quando resolvi fazer cerveja ácida aqui. Hoje, acho lisonjeiro quando alguém
fala que a Cozalinda é a Lambic brasileira. Mas não quero ser comparado: eu
quero ter identidade própria”, diz o cervejeiro, que em 2016 começou a
trabalhar com uma flora de microrganismos brasileiros em suas receitas.
Foi quando apareceu a mandioca. Em busca de novas
receitas experimentais, Rzatki resolveu tomar como inspiração o cauim, bebida
indígena dos tempos pré-colombianos, produzida a partir da fermentação da
manipueira. “E se eu usar os mesmos microrganismos que fermentam o cauim?”,
pensou o cervejeiro. A criação deu certo e recebeu o exótico nome de “Já Passou
o Paulo Lopix?”. É uma piada com a maneira como os catarinenses pronunciam o
nome da cidade de Paulo Lopes, situada a 40 km de Florianópolis. Foi lá onde Rzatki
encontrou um engenho de mandioca que o ajudou na empreitada etílica.
A quase mil quilômetros dali, um cervejeiro de
Minas Gerais vinha fazendo coisa parecida. Era Fabrício Almeida, fundador da
cervejaria ZalaZ, de Paraisópolis (MG). Sediada na Fazenda Santa Terezinha, que
pertence à família Almeida há gerações, a marca cria receitas e rótulos com
base no que é plantado por ali – café, frutas, tomate, hortaliças…
“Tem mais de 100 anos que a família vive da terra,
mas fazenda é um negócio instável. Fui pra São Paulo buscar meu caminho, mas
sempre quis voltar para viabilizar a fazenda. Com a cerveja, eu descobri o que
ia fazer da minha vida”, conta Almeida. “Minha ideia sempre foi usar o máximo
do que a gente consegue da terra nas cervejas: insumos, leveduras,
ingredientes, adições…” Assim nasceu o terroir mineiro. Na
ZalaZ, porém, a mandioca só entrava nas receitas como ingrediente extra – e
nunca doando seus microorganismos para a fermentação. Até que Jayro Pinto,
amigo de Fabrício e conselheiro da Abracerva, resolveu unir os fãs da mandioca
numa grande receita colaborativa. Era final de 2022.
A colaboração não é uma prática incomum no mundo
das cervejarias artesanais. Frequentemente, marcas se unem para fazer receitas
juntas, explorando o que cada uma sabe fazer de melhor. Há nisso uma dose de
marketing, algo parecido com o que fazem artistas pop quando convidam grandes
nomes da música para parcerias – inflando, com isso, seus números no streaming.
“Mas eu não queria produzir qualquer coisa: eu queria uma cerveja para a gente
comparar o terroir de cada região. Íamos fazer a mesma
receita, cada um na sua cervejaria, pra depois comparar o resultado”, diz
Rzatki, da Cozalinda. “Mas como o Jayro é da Abracerva, decidimos ampliar o
projeto para toda a associação.”
Num primeiro momento, o Projeto Manipueira Selvagem
foi recebido com olhos arregalados. “Quando o cara me falou que queria criar
uma levedura com o caldo da mandioca, achei que a ideia era de maluco. Gente
que mexe com levedura não é desse planeta”, brinca Gilberto ‘Giba’ Tarantino,
presidente da Abracerva e dono da Cervejaria Tarantino, de São Paulo. “Mas o
Diego [Rzatki] fala de levedura com tanta paixão que aos poucos fomos
percebendo que era um baita de um projeto que ele teve o desprendimento de doar
para nós.” A ideia se espalhou rapidamente. “Virou uma bola de neve: de
repente, tinha mais de cinquenta cervejarias interessadas em acompanhar o
projeto”, conta Rzatki.
Todas foram convidadas a produzir um lote de
cerveja seguindo a mesma receita: malte Pilsen (o mesmo usado no estilo mais
popular do Brasil), água local, lúpulo com baixo amargor (para não interferir
nos sabores criados pelos fungos) e uso de mandioca como ingrediente, fosse in
natura ou como tapioca/farinha, em volume que correspondesse entre 1,5% e 10%
do total – se possível, comprada de um produtor da mesma região da fábrica. A
manipueira, usada para transformar a mistura, com seus microrganismos, deveria
ser extraída de um engenho local ou produzida pela própria cervejaria. Os
cervejeiros não deveriam controlar a temperatura da fermentação, absorvendo o
clima de sua região.
“Sem querer, a gente se deparou com outra parte da
cultura local: pirão, polvilho azedo, farinha de mandioca, engenho. Teve gente
que achou mandioca rosa, teve gente que viu engenhos muito rústicos, e isso fez
o mundo da cerveja, tão industrial, entrar em contato com a ruralidade e a
agricultura familiar”, diz Rzatki. “Se a gente está falando de cerveja
artesanal, esse contato do produto com significado histórico e social é
importantíssimo.”
A beer sommelière, antropóloga e
marqueteira Aline Smaniotto, que participou da concepção do projeto, acha que a
questão não é só social, mas também gustativa: “Usar a produção de pequenos
produtores é o que traz o terroir de verdade, porque a gente
não quer justamente a esterilização e a padronização do sabor que existe na
cerveja industrial.” Nem todo mundo, porém, encontrou um engenho charmoso e
rústico para chamar de seu. “Eu mesmo comprei a mandioca e fiz a extração
usando um ‘juicer’ lá na cozinha de casa”, confessa Allan Maple de Oliveira,
fundador da Fermentaria Local, de Jarinu (SP).
Depois de fabricadas, as cervejas de mandioca
deveriam passar um ano fermentando em barris de madeira que já tivessem sido
usados para fermentar outra bebida (como os barris de carvalho americano ou
francês, usados respectivamente para bourbons e conhaques ou vinhos). Ficou
combinado que, ao final do processo, cada cervejaria deveria ter entre 180 e
225 litros de um rótulo com identidade própria, dos quais 50 litros seriam
doados para a criação de um megablend – uma mistura de todas
as criações, outro costume importado da Bélgica, onde receitas colaborativas
são comuns. “Achei que o pessoal ia querer mais liberdade de criar, mas todo
mundo pediu para sermos mais restritivos – o que é bom, porque quanto mais
próximas forem as receitas, melhores as comparações”, diz Rzatki.
A comparação não é só sensorial, mas também química
e biológica. Além de ser acompanhado de perto pelo Conselho Federal de Química
(CFQ), o Projeto Manipueira foi objetivo de um trabalho apresentado no último
Congresso Brasileiro de Microbiologia pela pesquisadora Carola Carvalho,
doutora em biotecnologia pela USP. Ela reuniu amostras de manipueiras de três
cervejarias diferentes – a Cozalinda, a Uçá, de Sergipe, e outra feita pelo
Instituto Federal de Sertãozinho, no interior paulista – para entender como cada
mandioca, depois de fermentada, gerou microrganismos diferentes para as
cervejas.
O advento da mandioca equivale, no mundo das
cervejas, a uma declaração de independência nacional. Não por acaso, a data
escolhida para a abertura das primeiras garrafas da Manipueira foi a semana do
Sete de Setembro. O evento aconteceu em São Paulo e foi intitulado Semana
Selvagem. Diferentemente do que se pode pensar, não havia rock pesado, gente
barbuda ou churrasco. A trilha sonora era de cúmbia e, além das garrafas, foram
dadas palestras sobre os fundamentos da cerveja e seu significado social.
Entre os convidados, estavam representantes da
cervejaria peruana Victoria, que fabrica uma versão contemporânea da chicha,
bebida ancestral fermentada com base em milho. Para Cilene Saorin, beer
sommelière e mestre-cervejeira com três décadas de experiência, a
Manipueira e a nova chicha não devem ser consideradas como um resgate de
cultura originárias. São uma continuidade. “É uma ideia que se assemelha à do
movimento antropófago, trazendo uma fusão de conceitos clássicos, europeus, e
conceitos caóticos, mas não menos ricos, das culturas locais da América Latina.
É isso que acontece quando a gente ouve Villa-Lobos e também quando a gente
experimenta a mistura da Manipueira.”
A maioria das Manipueiras agradou os presentes,
ainda que elas destoem das bebidas que se costuma ver nas prateleiras dos
supermercados, ou mesmo de estilos razoavelmente populares, como as cervejas de
trigo (weiss ou witbier) ou as India Pale Ale (IPA). Cervejeiros veteranos
souberam identificar na bebida de mandioca um resultado próximo ao de algumas
cervejas belgas ou americanas do estilo Wild Ale. As diferenças regionais
almejadas pelo projeto foram pequenas, quase imperceptíveis para o consumidor leigo.
Em geral, as Manipueiras resultaram amarelas,
variando entre tons pálidos e dourados, com leve turbidez, provavelmente
causada pela fermentação. O aroma era de notas cítricas e acidez láctica,
remetendo a iogurte e frutas frescas. No paladar, as cervejas eram rispidamente
ácidas, com média de 6% a 7% de álcool e uma nota sutil, no final, que parecia
polvilho. “Lembra aquele biscoito Globo que a gente come na praia. É uma
cerveja que as pessoas precisam estar abertas a explorar como possibilidade”,
comenta a sommlière Saorin. Fabricio Almeida, da ZalaZ, observa que “em vários
exemplares, é possível sentir um corpo sedoso, justamente por conta da mandioca
adicionada à receita.”
Neste momento, uma nova safra da Manipueira está
fermentando em barril. Algumas cervejarias aproveitam para testar receitas com
frutas locais: a Zapata, do Rio Grande do Sul, está fazendo uma versão da
cerveja contendo butiá. Experimentos com diferentes tipos de barril – como
amburana e jatobá – estão previstos para acontecer em breve. Quem quiser provar
a receita inicial terá que garimpar e abrir o bolso: em média, uma garrafa de
750 ml de um rótulo Manipueira custa entre 75 e 100 reais, preço salgado que se
explica pelas particularidades logísticas e pelo tempo que a bebida demora para
amadurecer.
A descoberta do potencial etílico da mandioca abre
portas para o que, no futuro, pode se tornar uma escola brasileira de cerveja.
Atualmente, os guias de estilo que servem de referência para cervejeiros do
mundo todo reconhecem a existência de apenas quatro escolas: a alemã, a
inglesa, a franco-belga e a americana. As três primeiras acumulam séculos de
conhecimento; a última foi se construindo nos últimos cinquenta anos.
Para que o Brasil alcance esse status, o primeiro
passo seria estabelecer a receita da Manipueira e de outros experimentos como
estilo oficial nos principais guias especializados – no caso, o da Brewers
Association (BA) e o do Beer Judge Competition Program (BJCP). Gilberto
Tarantino, presidente da Abracerva, não nega a ambição, mas entende que o
caminho é longo. “Sempre lembro de algo que ouvi do Greg Cook, fundador da
cervejaria Stone Brewing: ‘Antes de virar um estilo, a cerveja tem que ser
muito consumida’.”
Cilene Saorin concorda que o buraco é mais embaixo.
“Para ter uma escola, é preciso ter terroir, ter domínio técnico da
produção, da comunicação, do serviço, e ter uma massa crítica que entenda e
reconheça o valor disso tudo”, ela explica. “A escola alemã, que tem um
conceito filosófico bastante ortodoxo, conta com pelo menos 45 estilos
desenvolvidos por mais de quinhentos anos. É difícil imaginar o Brasil sendo
escola, ensinando diferentes estilos, só com uma meia dúzia de gatos pingados.
Não se pode querer tudo pra ontem.”
Rzatki, da Cozalinda, quer tudo ao mesmo tempo
agora. “Espero que demore no máximo três anos para a Manipueira estar nos guias
de estilo”, diz o cervejeiro. “Mas está na hora de ter um guia nosso,
sul-americano. Cadê a independência?” Para ele, há muitos objetivos no
horizonte. O primeiro é aproximar a cerveja brasileira da culinária, que passou
por uma revolução recente ao priorizar ingredientes locais. “Queria muito essa
cerveja no Maní”, diz o catarinense, referindo-se ao restaurante da chef Helena
Rizzo, símbolo desse movimento.
Outro objetivo é fazer justiça ao célebre discurso
de Dilma Rousseff, que, para Rzatki, não foi compreendido em toda a sua beleza.
“É um discurso lindo, civilizado e historicamente correto, porque a mandioca
foi importante para o estabelecimento humano em grandes partes do continente.
Acho foda”, elogia o cervejeiro. “O que eu queria é dar uma cerveja dessa pra
Dilma”. Será que a presidente do banco dos BRICS aceita a saudação?
Fonte: Revista Piauí
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