VIOLAÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS DE COMUNIDADES RIBEIRINHAS NO PARÁ
Em dezembro de 1989, o governo federal criou a Floresta Nacional de
Saracá-Taquera (Flona) no município de Oriximiná (PA). Flona é uma modalidade
de unidade de conservação (UC) que, de acordo com o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (Snuc), permite, a partir de suas concessões minerais e
madeireiras, a exploração de recursos naturais em escala industrial,
comercializando-os, sob a lógica de commodities, para o Brasil e para o
exterior.
As concessões minerais e madeireiras, localizadas dentro dos limites da
Flona de Saracá-Taquera, sobrepõem-se, em parte significativa, às áreas de uso
direto das comunidades ribeirinhas e quilombolas que ocupam os vales do Rio
Trombetas, usadas tanto para agricultura como para extrativismos em geral –
caça, pesca e extração de madeira, palhas, resinas, frutos etc. A ocupação
quilombola na região remete aos tempos coloniais, e as comunidades ribeirinhas
estudadas, sobretudo a Boa Nova e a Saracá, ocupam as suas áreas de uso há, no
mínimo, quatro gerações. Essas ocupações ribeirinhas remontam ao tempo dos
bisavós e avós dos moradores atuais, conformando uma ocupação, assim como a
quilombola, centenária (Affonso, 2018).
Quando a Flona foi criada, pelo Decreto n. 98.704, com área aproximada
de 429.600 hectares, além de comunidades tradicionais centenárias, havia,
dentro de seus limites, o maior projeto nacional de exploração de bauxita desde
a década de 1970, operado pela Mineração Rio do Norte (MRN). A partir da Lei de
Gestão de Florestas Públicas (LGFP n. 11.284) de 2006, grandes porções de
florestas públicas são concedidas a empresas madeireiras, com o direito de
serem exploradas industrialmente, por até 40 anos, regulamentando, assim, as
chamadas concessões florestais.
Em 2002, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) elaborou o primeiro plano de manejo (PM) da Flona. Esse
documento norteia a gestão da UC. A gestão da Flona de Saracá-Taquera é
realizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), que a subdivide em diversas zonas. Dentre elas, destacamos as zonas
de mineração, produção florestal e populacional. À zona de mineração e
exploração de madeira são destinados 69,1% da área total da Flona. À zona
populacional são destinados 10.690,75 hectares, o que representa apenas 2,49%
de sua área total. Entretanto, o reconhecimento e delimitação da zona
populacional, que “é aquela que compreende a moradia das populações
tradicionais residentes dentro da Floresta Nacional, incluindo os espaços e o
uso da terra, necessários à reprodução de seu modo de vida” (MMA, 2009, p. 37),
continuam sendo ineficazes e contraditórios diante da realidade local.
No momento da elaboração do plano de manejo, a zona populacional
abrangeu apenas uma faixa de aproximadamente dois quilômetros, que acompanha a
margem direita do Rio Trombetas, onde residem somente comunidades quilombolas.
As comunidades ribeirinhas não foram abrangidas.
Em 2010, por meio da Portaria Iterpa n. 729, foi publicado no Diário
Oficial do Estado do Pará a criação do Projeto de Assentamento Agroextrativista
(PAE) Sapucuá-Trombetas que, por sua vez, abrigava áreas contíguas à Flona
ocupadas por comunidades ribeirinhas residentes no baixo Rio Trombetas, no Lago
do Sapucuá e no Lago Maria Pixi.
O PAE Sapucuá-Trombetas contempla somente as áreas de moradia e algumas
áreas de roçado dos ribeirinhos. As áreas de caça, pesca, cultivos e
extrativismos em geral (de frutos, madeira, palha, cipós, óleos, resinas,
cascas de árvores etc.) – chamadas de pontos de trabalho – ficaram de fora das
áreas do assentamento e, desde 1989, são parte da Flona. Até o momento, as
áreas de uso direto das comunidades tradicionais ribeirinhas dentro dos limites
da unidade de conservação não são reconhecidas no plano de manejo. Seu
Brasilino Lopes, da comunidade ribeirinha Boa Nova, lembra-se de quando foi
morar com a sua mãe na comunidade vizinha, Castanhal, e não pôde voltar para o
lugar em que havia nascido e crescido por causa da criação da Flona: “Aqui [no
igarapé Araticum] eu nasci, aqui eu me criei. Daqui eu fui para lá com a mamãe,
morava lá. […] De lá eu voltei. Ela foi pra Oriximiná e eu vim para cá, para
nossa terra. Quando eu cheguei eu não pude mais estar lá naquele lugar, porque
já tinha esse impasse, né, da Flona. Quem entrasse de recente […] ia ser
punido”. A proibição de uso mediante emissão de multas afastou alguns moradores
de seus pontos de trabalho. O que torna essa realidade uma verdadeira violação
de direitos é o fato de que essas comunidades não foram ouvidas no momento do
traçado do zoneamento, o que nitidamente viola a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que assegura a oitiva aos povos e comunidades
tradicionais nesses casos.
• A CONJUNÇÃO DE
FISCALIZAÇÃO PÚBLICA E A EXPANSÃO PRIVADA
O órgão ambiental gestor da Flona segue embargando, autuando e emitindo
multas aos moradores locais que trabalham dentro dos limites da UC. Em março de
2021, o ICMBio realizou uma operação de fiscalização denominada “Operação
Caipora”. Nessa ocasião, três ribeirinhos das comunidades do Lago do Maria
Pixi, localidade compreendida dentro dos limites do assentamento, foram
multados e autuados por abrirem áreas de roça e/ou por praticarem extrativismo
de madeira dentro dos limites da Flona. Foi constatado em campo que uma das
áreas autuadas estava dentro dos limites do PAE, logo, fora dos limites da UC.
Na esteira dessa operação, segundo relatos dos moradores locais, o ICMBio
autuou e multou, também, os ribeirinhos da comunidade Macedônia. Eles
apresentavam as mesmas práticas – aberturas de roças e/ou extrativismo de
madeira. A diferença é que, agora, não se tratava de áreas próximas à
mineração, e sim, à madeireira.
Entretanto, próximo às áreas autuadas pela Operação Caipora, existe a
Serra do Aramã, platô de bauxita inicialmente explorado pela Mineração Rio
Norte em 2020, e com as suas operações de exploração já finalizadas. O que a
empresa mineradora denomina de platô, os ribeirinhos chamam de serra, local em
que é praticada a caça, o extrativismo de frutos e onde encontram-se diversas
nascentes que alimentam os igarapés ocupados pelas comunidades.
Não podemos afirmar que as operações de fiscalização do ICMBio e o
avanço das empresas de exploração de recursos naturais – mineral e madeireiro –
estão diretamente relacionados, contudo, podemos garantir que esse não é um
caso isolado. Em 2011, o platô a ser explorado pela empresa mineradora era o
Bacaba, vizinho ao platô Almeidas – serra onde existia um castanhal denominado
pelas comunidades ribeirinhas de “Castanhal do Almeidas”. No mesmo ano, em uma
operação de fiscalização, sr. Domingos Gomes, morador da comunidade Boa Nova,
por trabalhar com agricultura em áreas próximas ao platô, contraiu a maior
dívida de sua vida; foi multado em R$ 108 mil pela abertura de cerca de nove
hectares de roça.
Jesi Ferreira de Castro, morador da comunidade São Francisco, situada no
Lago Maria Pixi: “Tiraram meia vida do pessoal do Sapucuá, arrancaram uma banda
do coração deles. Aquele castanhal era o sustento de muitas famílias”. Com a exploração do Castanhal do Almeidas, as
famílias ribeirinhas da comunidade Boa Nova, e de outras, deixaram de ter uma
de suas principais fontes de renda: o extrativismo da castanha.
Além das sobreposições existentes entre as áreas historicamente
utilizadas pelas famílias e as áreas de exploração mineral e madeireira, outro
impacto recorrente é o comprometimento da qualidade das águas dos igarapés.
Tanto a mineradora quanto a madeireira constroem pontes sob os igarapés para
atender à logística de escoamento dos recursos naturais explorados. Dessa
forma, a construção dessas estradas contribui para o assoreamento do rio. Há
repetidos relatos dos ribeirinhos de que a partir da exploração mineral das
serras observou-se uma coloração mais alaranjada nas águas dos igarapés,
aparentemente como a cor da bauxita.
A partir das multas emitidas pelo ICMBio e da exploração mineral do
platô Aramã, pela MRN, a comunidade São Francisco se viu impossibilitada de
trabalhar dentro da Flona, principalmente no extrativismo de madeira e de
frutos, de acordo com o professor Antônio Bó, fundador da igreja e primeiro
coordenador da comunidade. “Ficamos sem o minério, sem a floresta e sem os
animais”.
• ACUMULAÇÃO CONTEMPORÂNEA E
O SELO DE SUSTENTABILIDADE
Jesi relata que a sua comunidade só ficou ciente da exploração mineral
do platô Aramã a partir do barulho provocado pelo maquinário da empresa. Por
causa da exploração da serra pela mineradora, os moradores observaram os
seguintes impactos:
(i) comprometimento na
atividade de caça;
(ii) (processo de
afugentamento dos animais – houve o caso de onças que baixavam a áreas próximas
às comunidades, relatos de que macacos se alimentavam das roças de jerimum dos
comunitários, dentre outros; e,
(iii) avermelhamento das águas.
Sobre os impactos ao igarapé Aramã, Jesi afirma que as suas águas ficaram
avermelhadas e relata também que, na beira do canal, é possível observar “o
sujo”.
Podemos compreender o processo descrito como de acumulação primitiva de
capital, noção formulada, inicialmente, por Karl Marx. Mesmo que as comunidades
não sejam necessariamente deslocadas fisicamente, e nem sejam obrigadas a
trabalhar de forma assalariada, sua existência é submetida a esse processo
praticado pelo Estado e pelas mineradoras e madeireiras.
Tal processo ocorre a partir de três fatores: (i) não reconhecimento das
áreas de uso direto das comunidades ribeirinhas no plano de manejo da Flona de Saracá-Taquera;
(ii) aplicação de multas (pelo órgão ambiental gestor), restringindo e
proibindo o uso, dentro dos limites da Flona de Saracá-Taquera, aos ribeirinhos
e (iii) concessão e licenças de operação à mineradora e madeireira, para que
explorem os recursos naturais presentes nos platôs/serras de seus interesses,
até sua exaustão que, não raro, sobrepõem-se às áreas de uso das comunidades e
comprometem a qualidade da água dos recursos hídricos em razão, principalmente,
da construção de estradas sob igarapés e possivelmente a outros fatores.
Trata-se de um verdadeiro cerco das terras de uso comum, o que expropria as
comunidades dos seus meios de sustento e modo de vida.
“Depois que a Flona chegou, ela veio querer proibir da gente tirar
madeira, de caçar”, afirma o ribeirinho Jesi, que contempla somente algumas,
dentre muitas, das violações de direitos amargadas por sua comunidade. Na
comunidade Macedônia, seu Zé Maria, ex-coordenador comunitário, aponta a
seguinte ironia: hoje, a madeireira está explorando árvores que ele mesmo havia
plantado, em uma área em que hoje ele é proibido de trabalhar.
Em relação à mineração, a MRN não consulta as comunidades, explora os
recursos minerais e gera impactos às águas e às áreas de caça dos moradores
locais. O governo criminaliza os comunitários, e, por fim, a empresa recebe o
selo da Aluminium Stewardship Initiative (ASI) no padrão Performance Standard e
no padrão de Cadeia de Custódia (CoC). Essa certificação é uma iniciativa
global de sustentabilidade voluntária e, apesar das queixas das comunidades
locais, abre as portas a um aumento de investimentos internacionais. A prova
disso veio na forma da Glencore, sediada no Reino Unido/Suíça, que comprou 45%
das ações da MRN, a um custo imediato de US$ 700 milhões, em abril de 2023.
Podemos estabelecer aqui um diálogo com as formulações teóricas de Backhouse
(2013) sobre a noção de “green grabbing” e o conceito de acumulação contínua de
capital. Partindo da narrativa de uma mineração supostamente sustentável, a
empresa se apresenta como um possível vetor de expropriação de comunidades
ribeirinhas e explora, em escala industrial, recursos minerais sob a lógica de
commodities dentro de uma unidade de conservação que não reconhece o grupo
social estudado como sujeito de direitos.
Esse caso por nós aqui abordado é um dentre muitos que se repetem Brasil
afora. O desrespeito às comunidades tradicionais e seus territórios é uma
engrenagem da acumulação capitalista que tem no Estado um grande viabilizador.
Para mudar essa lógica será preciso mais do que um verniz sustentável da
indústria extrativa no Brasil. Será preciso transformar também a lógica de
inserção do Brasil nas cadeias globais de valor.
Fonte: Por Hugo Gravina Affonso, Yamila Goldfarb, Thaís Borges, Mauricio
Torres e Brian Garvey, para o Le Monde
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