Rio de Janeiro tem três chacinas por mês, revelam dados de plataforma
inédita
Uma nova plataforma divulgada pelo Instituto Fogo Cruzado revelou
que as chacinas policiais no Rio de Janeiro não são algo que ficou no passado,
como as conhecidas chacinas da Candelária, Vigário Geral e Acari. Pelo
contrário, elas são parte da política cotidiana de Estado.
Segundo dados levantados, de sete anos para cá, as chacinas ocorridas na
região metropolitana da capital do Rio foram responsáveis pela morte de 1.137
civis. Em média, ocorreram três chacinas ao mês. Apesar das estatísticas
assustadoras evidenciarem uma guerra diária permanentemente, por outro lado, há
a percepção de que o estado brutal de violência não impacta mais a população.
Na avaliação de Maria Isabel Couto, uma das diretoras do Fogo Cruzado e
doutora em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o
que leva a uma insensibilidade diante dos casos é a forma como a violência foi
naturalizada pelo Estado. Por ser um problema tão recorrente, as pessoas passam
a acreditar que a política de extermínio utilizada pelas forças policiais é
algo natural.
No episódio 100 do podcast “Pauta Pública”, conversamos com a
pesquisadora, que questiona a falta de dados produzidos pelo poder público e
acusa que o Estado teme produzir evidências contra si mesmo. Para contornar a
situação, ela orienta a articulação de entidades da sociedade civil com a
gestão pública.
Em comemoração ao centésimo episódio, no último bloco do programa,
Andrea Dip, Clarissa Levy e Ricardo Terto respondem mensagens enviadas pelos
ouvintes e relembram as produções mais marcantes do ano.
>>> Confira os principais pontos da entrevista:
·
Você poderia começar apresentando o que é esse novo
projeto produzido pelo Instituto Fogo Cruzado a respeito de dados sobre
chacinas policiais?
Antes de tudo, é importante saber que o Instituto Fogo Cruzado é uma
organização da sociedade civil dedicada à produção cidadã de dados com atuação
em quatro regiões metropolitanas, distribuídas em 57 cidades espalhadas pelos
estados do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Pará. Somos uma organização que
acredita nos dados como o primeiro passo para mudar a realidade, porque se a
gente não compreende o problema, não tem como agir sobre ele.
Infelizmente, até hoje, no campo da segurança pública, temos muito mais
perguntas a fazer do que evidências. Por isso, esse ano, nossa equipe se
dedicou a destacar algumas informações para ajudar a torná-las mais acessíveis
na construção de políticas públicas. No meio do ano, lançamos uma plataforma
chamada Futuro Exterminado, que apresenta dados sobre violência armada contra
crianças e adolescentes espalhadas no Rio de Janeiro.
E agora, acabamos de lançar uma nova plataforma trazendo dados
sobre chacinas policiais. O que nos motivou a construir isso foi que, de
partida, a plataforma acabou revelando um número estarrecedor na quantidade de
chacinas: no Rio de Janeiro, em média, foram registradas três chacinas
policiais. Isso diz que esse não é o estado de um passado trágico que ficou
para trás, como a chacina da Candelária, Vigário Geral e Acari. O Rio de
Janeiro é o estado das chacinas cotidianas, deixando de ser a exceção para se
transformar num instrumento de Estado.
E quando as chacinas policiais se transformam num instrumento do Estado
de política pública, tem um indicativo que algo muito errado precisa ser
revisto. Porque se o Estado não produz esses dados, é quase como se não
produzisse evidências contra si. Por isso, a importância dessa plataforma para
apresentar o impacto dessas violências na vida pessoal dos moradores da região
metropolitana do Rio de Janeiro. Também para que todo mundo saiba que as
chacinas policiais não são exceções, mas rotina. Os dados justamente nos
alertam para que isso mude.
·
Uma coisa que chamou minha atenção nesse novo
projeto é o índice de letalidade, ou seja, a proporção de mortes em cada
operação. Dá para entender em que tipo de operação policial esse índice é
maior, considerando diferentes contextos de abordagens e a quantidade de
pessoas que acabam sendo mortas?
Quando a gente está falando de chacinas policiais nos referimos a
episódios onde há três ou mais mortos numa mesma situação, que também se
destacam de outros episódios de violência e operações policiais justamente pela
alta letalidade. É o caso da Chacina do Jacarezinho, que ocorreu em 2021 e foi
a maior chacina policial da história do Rio de Janeiro.
O caso, que teve um saldo de mais de 20 mortes, ajuda a entender que há
uma virada de chave no comportamento das chacinas. Isso porque de 2019 para cá
a gente deixa de ter só a recorrência de chacinas e passa a ter o que chamamos
de mega chacinas, quando há oito ou mais mortos em uma operação, revelando o
descontrole das nossas forças policiais nos anos recentes.
Outra coisa importante destacar é que a plataforma foi construída
observando 283 chacinas que levaram a um total de 1.137 mortos. Se você divide
um número pelo outro, há uma média de quatro mortos por chacina. Mas isso é a
média e ela esconde nuances.
Uma delas é a unidade policial envolvida nas chacinas. Por exemplo,
quando o BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), unidade
especializada da polícia militar e recordista na atuação em 34 chacinas, está
envolvida, a média sobe para seis mortos por chacina policial. Quando a CORE
(Coordenadoria de Recursos Especiais), unidade especializada da polícia civil,
que nem deveria estar fazendo operação, porque é uma polícia investigativa,
está envolvida, a média sobe para sete. A gente está falando de unidades, que
deveriam ser treinadas para salvaguardar a vida da população.
Além disso, dentre essas 283 chacinas, analisamos um tipo muito
específico de chacina, que são as que acontecem em operações de vingança —
termo que ficou conhecido pela população do Rio de Janeiro em operações que
acontecem em sequência ou em razão da morte ou do ferimento grave de agentes de
segurança.
E aí, o nome diz tudo. A gente não está falando de justiça, mas de
vingança. Estamos falando de policiais extremamente estressados, porque
perderam um dos seus, ou porque estão em vias de perder um dos seus, indo fazer
operações para, supostamente, buscar e prender o suspeito. E aí, quando se
compara as operações de vingança dentro das chacinas policiais, a letalidade
aumenta 71%.
O número por si só comprova o erro das operações de vingança. Então, por
que ainda o Governo do Estado deixa que policiais extremamente estressados vão
às ruas, promover justiçamento e não justiça, colocando a população na linha de
tiro?
·
De 2016 para cá, mais de 300 meninos ou meninas
menores de 18 anos foram baleados em operações policiais no Rio de Janeiro. Um
ou outro caso acabou ganhando os noticiários, como por exemplo, o caso do Marcos Vinícius, com aquela famosa imagem do uniforme
escolar da rede municipal ensanguentada. Além dessas vítimas específicas que
são atingidas por balas perdidas, o Instituto têm outros dados sobre o impacto
causado pelas chacinas na vida da população?
Olha, uma das razões do Fogo Cruzado existir é justamente tentar
entender o impacto da insegurança, da violência armada na vida das pessoas,
para além da pessoa que é baleada. Porque quando a gente não tem informação
sobre a violência armada, é muito fácil perder do horizonte o impacto que isso
tem sobre a educação e a saúde psicológica das pessoas.
Por exemplo, um dos impactos que mapeamos é que cerca de 30% das escolas
e creches localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro, registram
anualmente pelo menos um tiroteio no entorno de 300 metros dessas unidades de
ensino em dias letivos e no horário escolar. Em pelo menos um terço desses
casos, vai ocorrer em ação e operação oficial. Ou seja, a violência armada
afeta as unidades de ensino e 10% das unidades de saúde por conta dos
tiroteios.
O que ocorre é que muitas vezes as forças policiais não cumprem os
protocolos para promover segurança pública e acabam atrapalhando os serviços e
atividades cotidianas dos moradores. Casos, por exemplo, como a Chacina do
Jacarezinho, que são muito emblemáticos porque foram 10 horas de tiroteio. Isso
representa que as pessoas não conseguem ir para a escola, ir ao trabalho, ou
dar à luz, como já aconteceu.
Quando isso passa a fazer parte do cotidiano das pessoas, há um processo
de naturalizar essas operações policiais que duram muitas horas, que terminam
em muitos mortos. Como se fosse construído internamente dentro da gente essa
insensibilidade para uma política que prega a segurança pública do confronto,
que defende uma única forma de enfrentar a criminalidade urbana: colocando mais
polícia na rua para trocar tiro com bandido.
E isso resulta na pessoa que marcou a consulta no posto de saúde e não
consegue ir, na mãe que não consegue chegar no trabalho e vai perder o emprego,
na criança que não consegue chegar na escola. As chacinas policiais são a ponta
de um iceberg de uma política que está dando errado e que coloca a população
todo dia na linha de tiro, e que atrapalha o desenvolvimento social e humano
das pessoas e, consequentemente, das cidades.
·
Há guerras terríveis acontecendo hoje no mundo, e
claro que geram muita comoção, não deveria ser de outro jeito. Mas por que você
acha que essa guerra que temos no Brasil, essa matança enquanto política de
Estado, parece não gerar a mesma comoção na sociedade?
Eu acho que tem dois elementos aqui que estão interligados: a
naturalização ou a normalização da violência e a frequência cotidiana delas. E
o caso das chacinas é muito emblemático para mostrar isso. São três chacinas
policiais por mês. Isso deveria ser absurdo em qualquer lugar do mundo.
O Brasil já foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos
por conta de duas chacinas ocorridas em na década de 1990, uma na favela de
Nova Brasília e outra no Complexo do Alemão, ambas no Rio de Janeiro. Deveria
ainda estar sendo condenado de novo pela recorrência de chacinas que temos hoje
porque o STF já determinou que o Estado do Rio de Janeiro precisa produzir um
plano de redução da letalidade policial. Porém, até agora não foi produzido
plano algum, um desrespeito à corte mais alta do país.
Isso porque já virou rotina. Naturalizar faz parte para quem não sabe
conviver com o tamanho do problema. Também não há como culpar a população que
normaliza esse problema. É o Estado que não faz nada para resolver e nem estar
interessado em combater.
Outro elemento que a gente tem aqui é que fica muito mais fácil
naturalizar quando a gente não conhece o problema, quando não tem evidências
que mostram o tamanho disso. E aí entra a discussão da importância da produção
de dados na segurança pública porque publicamente não há transparência, nem
produção de dados públicos, que ajudem a fazer um diagnóstico. O que há são
autoridades públicas que dizem que conhecem o problema e as soluções, sem
apresentar evidências, sem apresentar dados. E com a ausência de dados
produzidos pelo poder público, dependemos da sociedade civil para produzir
dados sobre o quanto de violência a ação policial produz, o quanto a ação
policial ajuda a perpetuar a violência.
E é para isso que a plataforma de chacinas policiais foi pensada, para
apresentar dados que venham justamente denunciar isso. Não só isso, mas
problematizar a gestão da segurança pública no país. De forma nenhuma nosso
papel é demonizar o policial que está nesse processo e também é vítima dele. O
propósito é denunciar a própria ausência de dados.
E aí fica o questionamento. Se nós, uma organização da sociedade civil
aprendeu a fazer o monitoramento sobre violência policial, por que as forças
policiais não conseguem fazer isso? Não conseguem criar seus próprios
indicadores ou apenas não querem?
Por isso, reforço que o nosso propósito com a divulgação da plataforma
sobre chacinas policiais é tanto mostrar os números estarrecedores de violência
quanto cobrar um posicionamento do Estado quanto ao combate disso. Porque a
sociedade civil está fazendo a sua parte e quer colaborar com a gestão pública
para que ela melhore. Então, vamos nos unir e produzir esses dados juntos?
Fonte: Por Andrea DiP, Clarissa Levy e Ricardo Terto, da Agencia Pública
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