quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

‘Políticas feministas beneficiam a macroeconomia, afirma ex-diretora de Economia, Igualdade e Gênero da Argentina

NO FINAL de 2019, foi criada na Argentina a Direção Nacional de Economia, Igualdade e Gênero do Ministério da Economia. Era um espaço institucional com um desafio fundamental: pensar a economia com uma perspectiva de gênero. Além da vontade política, esse espaço, assim como outros, foi conquistado graças a uma longa tradição de lutas do movimento feminista argentino. 

Para entender o saldo gerado pela pasta nos quatro anos de gestão do ex-presidente Alberto Fernández e como a economia feminista sofrerá com o extremista de direita Javier Milei, o Intercept Brasil conversou com a socióloga e cientista política Sol Prieto. Ela fez parte da direção do órgão desde o início e, em 2022, tomou a frente da equipe, com liderança vaga desde o início do governo Milei.

Os resultados das últimas eleições representam uma mudança de paradigma e grandes desafios para a sociedade argentina, e, em consequência, para os feminismos. No marco de 40 anos ininterruptos de democracia, o Poder Executivo passa a ser encabeçado por aqueles que levaram adiante uma campanha negacionista da última ditadura civil-militar, que assolou o país entre 1976 e 1983.

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São também aqueles que negam a crise climática, os hiatos de gênero e consideram que o mercado deve ser livre e atuar sem a intervenção do estado. A nova gestão anunciou sua doutrina de choque econômico a uma população que já sofre com uma inflação interanual de 161%. Quarenta e oito horas antes de assumir, o governo anunciou uma desvalorização da moeda de 118%

A transferência para os preços será traduzida em mais inflação e salários arrasados. E, como a economia feminista nos ensinou há muitos anos, a pobreza e o endividamento afetam, na maior parte das vezes, as mulheres e a população LGBTQIA+. 

Ainda não se sabe o que será da Direção Nacional de Economia, Igualdade e Gênero do Ministério da Economia, por exemplo. Javier Milei pretende reduzir a estrutura do estado pela metade, e a exemplo da direção, muitas pastas seguem sem designação de autoridades.

Doutora em Ciências Sociais, pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas e diretora da Usina de Estudos Políticos, Trabalhistas e Sociais, Sol Prieto falou em detalhes ao Intercept sobre o trabalho realizado pela direção com a convicção de ter contribuído, junto com sua equipe, para reduzir as desigualdades de gênero em matéria econômica e social.

<<<<< Leia a entrevista abaixo.

·        Que papel a Direção Nacional de Economia, Igualdade e Gênero desempenhou nesses quatro anos?

A direção planejou políticas em termos de distribuição de renda, emprego e economia do cuidado, temas centrais para se pensar em um modelo de desenvolvimento sustentável e com inclusão. 

Iniciativas como o Orçamento com Perspectiva de Gênero, a Renda Familiar de Emergência na pandemia, o programa “Registradas”, de incentivo à contratação de empregadas domésticas, e o Índice Criança, que mede o custo da criação de meninos e meninas, ilustram o esforço de trabalhar a política econômica sob um enfoque de gênero.

Esse enfoque não é uma invenção dos caprichos das feministas. As desigualdades de gênero estruturam a economia de todas as sociedades, e isso se deve ao modo como o trabalho doméstico é distribuído e ao trabalho de cuidado não remunerado. Em geral, as mulheres são responsáveis pela maior parte desse trabalho – na Argentina, são responsáveis por 70,2% dele. Por isso, dispõem de menos horas para se inserir no mercado de trabalho. 

Quando conseguem, isso é feito em condições piores, registrando maiores níveis de informalidade, trabalhando menos horas, em setores com salários mais baixos e ocupando postos de menor hierarquia. A crise provocada pela pandemia da covid-19 aprofundou essas desigualdades e deixou exposta a necessidade de intervir com ferramentas específicas. 

Por isso, a política econômica exige a abordagem dessas questões de maneira integral. Todas as políticas públicas têm efeitos de gênero. Quando essa perspectiva não está presente na concepção, na elaboração, na diagramação e na implementação das políticas públicas, as iniciativas que são desenvolvidas são, na realidade, alheias aos efeitos que produzem. 

Nesses quatro anos, a direção aprofundou o trabalho de transversalização da perspectiva de gênero no Ministério da Economia e nas 24 províncias argentinas. 

·        Em 8 de março, junto com o ex-ministro da Economia, Sergio Massa, a direção apresentou o Índice Criança. No que ele consiste e qual é sua importância?

A criança é uma parte substancial da economia. Se não existissem pessoas que chegam vivas e competentes à vida adulta, não existiriam mercados, estados, bancos, fábricas, serviços, consumidores, trabalhadores – e assim até o infinito. Toda a economia tem como base os cuidados. Mas criar filhos tem um custo, que é pago com dinheiro e tempo. No capitalismo, o tempo é monetizado. Então, o tempo dedicado a cuidar é, em última instância, dinheiro também.

Apesar de ambos os progenitores deverem contribuir com os custos diretos e de cuidado, a cultura que associa a criança principalmente às responsabilidades maternas levou ao fato de o descumprimento disso ser a norma. 

Em lares liderados por mães solo, muitas mulheres que reclamam a pensão alimentícia encontram diversos obstáculos relacionados ao acesso à justiça, prazos prolongados e dificuldades para captar tanto um valor de referência para estimar o custo de criação, como critérios de atualização desse custo.

Na Argentina, há 1 milhão de famílias desse tipo, onde vivem quase 2 milhões de meninos e meninas, que não recebem pensão alimentícia. Nessas casas, as crianças têm duas vezes mais probabilidade de caírem na pobreza.

Diante desse diagnóstico, a direção, em colaboração com a UNICEF, elaborou uma metodologia de estimativa, que logo foi adotada pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, o Indec, para a criação do Índice Criança. É um valor de referência para saber quanto as famílias destinam para alimentar, vestir, garantir a habitação, transportar e cuidar de meninos, meninas e adolescentes. 

Esse indicador permite contribuir para a organização e planejamento familiar e para a gestão de cuidados. Por isso, fica útil distribuir os gastos com a criança de forma mais igualitária, especialmente nos processos de separação dos casais ou logo depois da separação. Trata-se de uma ferramenta pioneira no âmbito dos dados e estatísticas, sendo o primeiro dado oficial desse tipo a nível mundial.

A metodologia do Índice Criança sugere captar tanto o custo direto de criação como o custo indireto ou de cuidados, já que inclui dois componentes: os bens e serviços essenciais para a primeira infância, a infância e a adolescência e a valoração do tempo de cuidado de meninos e meninas.

O aumento dos valores definidos para a Cesta Criança não só assegura o acesso ao direito alimentício para muitos meninos e meninas, mas também contribui para a diminuição das desigualdades de gênero, ao reconhecer e remunerar o custo associado ao tempo de cuidado.

·        De mãos dadas com essa transversalização da perspectiva de gênero, quais foram as contribuições da direção ao Ministério da Economia no momento de elaborar e implementar políticas públicas?

Desde a sua criação, a direção se comprometeu com a igualdade, sendo regida pela seguinte máxima: o feminismo deve dar respostas aos desafios que a economia argentina enfrenta. Com esse propósito, assumimos a responsabilidade de promover um conjunto de políticas comprometidas com a igualdade de gênero, elaboradas para fortalecer a renda e o trabalho das mulheres, potencializar os setores da economia que as empregam, promover a inserção de mulheres nos setores estratégicos e fortalecer a infraestrutura e as políticas de cuidado. 

Isso implicou em mudar o processo de formulação do orçamento, para poder medir o esforço do estado em acabar com hiatos de gênero e capacitar agentes governamentais nesse sentido. Além disso, implicou em repensar o sistema fiscal, para ter uma política tributária que promovesse a presença de mulheres no mercado de trabalho. 

Também foi importante mudar os indicadores que são monitorados no ministério, tendo em conta o impacto diferenciado das políticas sobre mulheres, mas também medindo coisas novas, como a participação dos cuidados no PIB ou o custo da criação de filhos. 

Implicou em medir, por exemplo, os diferentes níveis de endividamento das famílias e contribuir para melhorar o acesso das mulheres a financiamentos, bem como para diagramar políticas de inclusão financeira e reforço de renda. 

Como resultado da implementação de muitas dessas políticas, as mulheres na Argentina alcançaram níveis recordes de atividade e de emprego – 51,5% e 48%, respectivamente, no segundo trimestre de 2023, os mais altos da história. 

A participação das mulheres no mercado de trabalho é uma condição central para o desenvolvimento sustentável de um país. Não é apenas algo que beneficia as mulheres, mas sim toda a sociedade, já que contribui para reduzir a pobreza, colabora com o crescimento sustentável e com a demanda agregada. 

Por isso, as políticas econômicas e produtivas com perspectiva de gênero são boas para a macroeconomia, não são apenas uma questão das mulheres. 

·        Você mencionou desafios importantes, como a recuperação econômica pós-pandemia e a elaboração de um orçamento nacional com perspectiva de gênero. Que balanço faz dessa gestão?

Trabalhamos para diminuir o impacto da crise sobre as mulheres. E também para melhorar sua renda e suas trajetórias no mercado de trabalho. Esses esforços funcionaram, porque os níveis de emprego das mulheres, mesmo as que têm filhos pequenos, superam amplamente os níveis anteriores à pandemia. 

Esta experiência foi um marco no país e um precedente a nível internacional. Segundo o relatório “Respostas dos Governos à covid-19: lições sobre a igualdade de gênero para um mundo em crise” do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e da ONU Mulheres, a resposta argentina à covid-19 foi uma das mais feministas do mundo.

Mas o resultado foi além da recuperação pós-covid e da administração [que se encerrou]. O Orçamento com Perspectiva de Gênero e nosso sistema de indicadores, por exemplo, são transformações que vieram para ficar, porque são boas políticas. O orçamento de 2023 orientou que 14,7% dos gastos sejam usados para acabar com hiatos de gênero por meio de 49 programas em 16 ministérios. Isso representou 2,9% do PIB. 

Com a primeira publicação do Índice Criança em junho, já houve decisões judiciais em 13 províncias que incorporam essa ferramenta para determinar a pensão alimentícia, com aumentos em média de 250%. Estamos falando de políticas que mudam a vida das pessoas.

Além disso, acredito que são políticas que vão durar, porque são trabalhadas em redes feministas. Uma rede muito importante nesse sentido é a Mesa Federal de Políticas Econômicas com Perspectiva de Gênero. Ela é um espaço crucial para o intercâmbio de ideias e a elaboração de políticas inclusivas em todo o país, envolvendo representantes de distintos setores e províncias. 

Nesse espaço, conseguimos incorporar o Orçamento com Perspectiva de Gênero não só a nível nacional, mas também em versões locais em 18 províncias. Foram desenvolvidos indicadores com perspectiva de gênero em 19 províncias e foram criadas ou reformuladas políticas de inclusão de mulheres em setores estratégicos em 17 províncias. 

·        Em seu balanço, há medidas com resultados satisfatórios para esses quatro anos de gestão. Entretanto, nesse contexto, há desafios adiante. Quais são?

Do compromisso com a igualdade na economia, surgiram quatro grandes desafios de políticas públicas: a Renda Familiar de Emergência foi um bônus de 10 mil pesos, que em um contexto de pandemia alcançou mais de 250 mil trabalhadoras domésticas – e 55,7% de quem recebeu esse benefício foram mulheres. O primeiro Orçamento com Perspectiva de Gênero e Diversidade, que destinou 15,2% do orçamento nacional para reduzir as desigualdades de gênero. “Registradas”, o primeiro subsídio para o emprego de trabalhadoras domésticas, que alcançou mais de 20 mil trabalhadoras. E, como dizia antes, o Índice Criança. 

Os desafios são complexados em um contexto no qual a opção eleitoral vencedora propõe aprofundar a precarização trabalhista, retirar o estado de contextos chave como saúde, educação e previdência social, que requerem uma atenção e ação contínuas para garantir uma verdadeira igualdade de oportunidades. 

Já mencionei antes, mas reitero porque é importante: as mulheres realizam 70,2% das tarefas de cuidados, e o custo de oportunidade que elas pagam para cuidar é muito alto. Para combater esses desafios, a resposta só pode ser com mais economia feminista, mais desenvolvimento inclusivo para as mulheres e maior presença do estado. 

Agora, bem, o partido que ganhou as eleições nega o hiato salarial e considera que a justiça social é uma aberração, então o desafio para as mulheres nessa etapa é muito profundo. 

Ou seja, não só resta uma ampla agenda pendente para avanços relacionada à inclusão de mulheres em setores estratégicos, como economia de conhecimento, mineração, hidrocarbonetos e uma ampla agenda de demandas em relação à democratização e distribuição das tarefas de cuidado, mas além disso, estamos diante de um sério risco de retrocesso. 

Em relação a isso, quero ser muito taxativa: as mulheres na Argentina não podemos nos dar ao luxo de retroceder, porque os avanços vão custar os esforços de várias gerações.

 

Fonte: The Intercept

 

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