Pânico de engravidar: entenda a tocofobia, que leva a abstinência e a
exagero em pílulas do dia seguinte
Tomar pílulas do dia seguinte mesmo usando
anticoncepcional. Sexo só com proteção e, ainda assim, fazer vários testes de
gravidez. Ficar meses sem transar. Essas são algumas das estratégias usadas por
mulheres com pânico irreal de engravidar ou do parto. Isso tem nome na
medicina: tocofobia - e é bem mais comum do que parece.
Em grupos de WhatsApp, comunidades virtuais, redes
sociais, mesas de bar e rodinhas de conversa, a troca de experiências sobre
métodos contraceptivos virou algo recorrente.
👉 O que serve de gatilho para essas mulheres que não querem
engravidar ou pretendem adiar a gestação é que, embora eficazes, nenhum desses
métodos é 100% garantido. Ou, então, quando ficam sabendo de quem engravidou
mesmo se prevenindo (leia mais ao fim desta reportagem) ou de
casos de múltiplos, como o da jovem
de 18 anos do Rio de Janeiro que se descobriu grávida de cinco.
Se você não tem tocofobia, provavelmente consegue
identificar alguma mulher do seu entorno que tenha. — Sheila Rodrigues de Medeiros,
psicóloga voluntária do Programa Saúde Mental da Mulher do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP
Ela explica que a tocofobia está classificada
dentro do transtorno de ansiedade.
"A identificação da doença é recente e nós já
temos visto cada vez mais mulheres chegando com um quadro patológico de medo
sobre a gravidez", diz.
·
Impactos da tocofobia
Segundo ginecologistas e psicólogos, é comum que
mulheres que não queiram engravidar sintam algum medo, mesmo usando proteção,
mas há situações em que isso se torna patológico e afeta o dia a
dia, a vida sexual, o relacionamento e a saúde dessas mulheres.
É o caso da assistente social Carolina, 33 anos,
que pediu para que ter seu sobrenome preservado. Atualmente morando na
Dinamarca, ela relembra que, desde que começou a ter relações sexuais, tinha
pânico de que os métodos contraceptivos não funcionassem e que engravidasse.
Muitas vezes, mesmo tomando o anticoncepcional, eu
ficava tão nervosa que tomava pílula do dia seguinte. Em um ano, usei a pílula
seis vezes. Sentia um medo descontrolado e recorria à pílula. — Carolina,
assistente social que mora na Dinamarca
No último mês, Carolina fez vários testes de
gravidez porque acreditava estar grávida. Sua última relação sexual tinha
acontecido em maio, antes do término de um relacionamento. Ela fazia uso de
contraceptivo, mas, mesmo assim, passou os cinco meses seguintes acreditando
que estava grávida, tomando pílulas do dia seguinte e fazendo testes.
Sentia a minha barriga crescer, meu peito inchar.
Comparava a minha barriga com barrigas de grávidas na internet. Vi muita coisa
on-line e não conseguia trabalhar, dormir, ter outras relações. Só me acalmei
quando fiz os exames do sistema que apoia mulheres que precisam abortar aqui e
o exame confirmou que não estava grávida. — Carolina, 33 anos, que mora na
Dinamarca.
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Tocofobia é transtorno de ansiedade
🔎 A tocofobia foi reconhecida formalmente em janeiro de 2000, quando o
renomado British Journal of Psychiatry (Periódico Britânico de Psiquiatria), da
Universidade de Cambridge, publicou um estudo relatando casos do transtorno.
O artigo foi o primeiro a classificar a fobia na
literatura médica e elencou duas versões:
- primária,
que atinge mulheres que nunca engravidaram; e
- secundária,
quando se manifesta em mulheres gestantes com medo do parto.
🚨 Nas pacientes classificadas com tocofobia primária, o estudo observou
que “algumas destas mulheres utilizavam vários métodos de proteção”.
A doença faz parte do quadro de transtorno de
ansiedade e é classificada como uma fobia específica, como é o caso da
claustrofobia (medo de ambientes fechados), por exemplo.
·
Motivos que levam à tocofobia
👩💻 Mudança de prioridades
A ginecologista Mariane Nunes, membro da Comissão
de Anticoncepção da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia (Febrasgo), explica que a fobia é resultado de dois pontos: a
mudança social em relação ao papel da mulher, em que a gestação passou a
ser uma escolha e não obrigação; e a desinformação on-line.
🤰 Essa mudança na prioridade em ser mãe vem sendo observada desde os anos
70 quando, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), começou a sequência
de quedas na velocidade de crescimento da população brasileira -- consequência
de menos nascimentos.
Entre os anos de 2010 e 2022, esse índice atingiu o
menor número dos últimos 150 anos, ficando abaixo de 1%. (Veja a
série histórica aqui)
A mulher tomou para si a escolha de gerar e isso é
importante. Só que isso acontece quando também elas estão expostas a muita
informação on-line, nem sempre verdadeira. Essas informações colocam em dúvida
a eficácia dos métodos contraceptivos e criam mitos que deixam mulheres
inseguras e ansiosas. — Mariane Nunes, ginecologista e membro da Comissão de
Anticoncepção da Febrasgo.
📲 Desinformação on-line
Você já deve ter visto casos de mulheres que contam
na internet terem engravidado, mesmo usando contraceptivo.
Os ginecologistas dizem que é possível, já que não
há 100% de eficácia, mas é preciso analisar o modo de uso: o DIU foi
colocado de forma correta e foi feito exame de rotina para saber se ele estava
no lugar? O anticoncepcional foi usado conforme a determinação do
fabricante? O implante estava dentro do prazo de eficácia?
Essas perguntas não são respondidas por quem faz
esse tipo de publicação e as ginecologistas dizem que, na maior parte dos
casos, são alarmistas e não parte da porcentagem da taxa de falha de
cada método.
O consenso é que esse tipo de conteúdo on-line só
desinforma e é um agravante dessa fobia vista em mulheres.
O que os especialistas pontuam é que apesar de não
existir um método 100% seguro, a chance é mínima em vários deles. No caso do
implante, por exemplo, a taxa de falha é de
"A laqueadura tem uma taxa de falha de uma a
cada mil mulheres. No caso do implante, é uma a cada 10 mil mulheres. Para quem
só usa camisinha, a chance é de 18%. A gente vai avaliando os métodos, aliando
a outros acompanhamentos para que a mulher possa ter melhor controle sobre isso
e fazer uma escolha", explica Mariane Nunes, ginecologista da Febrasgo.
Outro ponto ressaltado é o uso de métodos
contraceptivos do tipo LARC (traduzido do inglês, contracepção de longa
duração) e que não tem ação comportamental. Ou seja, não depende da mulher o
controle. São eles o DIU, SIU e os implantes.
🤰 Solidão no cuidado
A ginecologista e obstetra Mariana Lemos Osiro, que
atende na rede pública de São Paulo, explica que um dos pontos de ansiedade
sobre a gestação para quem não quer ter filhos é, em muitos casos,
a solidão da mulher como única responsável pela proteção.
Essa solidão não é só sobre a proteção, mas também
sobre o risco de abandono na maternidade. Segundo uma pesquisa feita pelo
Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, o Brasil tem
mais de 11 milhões de mães que criam os filhos sozinhas. (Leia mais
aqui)
“A proteção contra a gestação é, muitas vezes,
colocada como uma responsabilidade só da mulher. Elas ainda têm o medo do
abandono do parceiro em caso de gestação", explica.
Uma das saídas que ela sugere a suas pacientes é
deixar de lado os métodos que dependem delas, como a pílula, e trocá-los por
DIU ou implante, que não dependem delas e podem deixá-las menos ansiosas.
·
Estratégias de quem tem medo de engravidar
💊 Anticoncepcional + Pílula do dia seguinte
A ginecologista Mariane Nunes explica que
a combinação do anticoncepcional e da pílula do dia seguinte é comum
entre mulheres com fobia de engravidar, mas que não funciona.
Como age no corpo: o anticoncepcional bloqueia
a ovulação, impedindo, assim, a gravidez. A pílula do dia seguinte age adiando
a ovulação em um caso de emergência para mulheres em que esse processo
acontece. Ou seja, se a mulher toma o anticoncepcional, ela já não ovula e a
pílula não tem eficácia.
“A pílula do dia seguinte é um método de urgência
para quem não se protege ou quando a camisinha falha, por exemplo. Ela tem uma
quantidade de hormônio grande, com efeitos colaterais. Além disso, se for usada
cerca de três vezes seguidas em um intervalo pequeno, tem a eficácia reduzida”,
explica Mariane.
🤰 Sem sexo por medo de engravidar
A vendedora do interior de São Paulo Priscila, 32
anos, que também pediu para ter seu sobrenome preservado, conta que
passou quatro meses sem transar com o marido por receio de o
anticoncepcional falhar. Ela conta que a prioridade do casal é a carreira e os
planos futuros não incluem ter filhos.
Priscila relata que sabe da eficácia da pílula e
tem orientação médica, mas admite que não consegue racionalizar e entra em
pânico.
Depois desses quatro meses, só conseguia transar se
ele usasse camisinha e ainda hoje eu faço muitos testes de gravidez mesmo me
cuidando. Eu não transo em paz. — Priscila, 32 anos
✈️ Poupança para aborto e passaporte em dia
Luana, 34 anos, redatora de São Paulo, conta que só
percebeu que sua relação com a contracepção não era normal quando foi morar com
outras mulheres e elas lidavam de forma natural após as relações.
A paulistana, que também pediu para não ter o
sobrenome divulgado, trabalha com ciência e conta que sempre confiou no método,
mas que tinha uma ansiedade exacerbada que não a deixava racionalizar.
Ela chegou a carregar uma bolsa térmica para levar
a pílula com medo de que ficasse fora da temperatura ideal e não funcionasse.
Também já voltou para casa várias vezes para checar se tinha mesmo tomado a
pílula e tirou a pílula da mala de mão para que não viajasse no compartimento
de cima e perdesse o efeito em razão do ar condicionado frio.
Eu tinha comportamentos nada saudáveis, muita
ansiedade. Não tinha paz para ter uma relação com alguém. Tinha tanto medo de
que, mesmo com todo o cuidado, algo acontecesse e mantinha uma reserva
separada, passaporte e visto sempre em dia caso precisasse cruzar a fronteira
em busca de um aborto legal. — Luana*, São Paulo.
A ansiedade foi crescendo e quando casou, há cinco
anos, decidiu procurar ajuda psicológica e apoio da ginecologista para
trocar o método.
"Eu fui para a terapia tratar e saí da pílula
para o DIU. Me senti mais tranquila com um método que não depende de mim. Ainda
assim, tem tempos que eu compro vários testes só para ver o resultado negativo
e me sentir mais tranquila", afirma.
·
Como tratar a tocofobia?
Apesar de ser reconhecida na literatura médica e
clinicamente (pela experiência de consultório de médicos),
a tocofobia não está incluída na Classificação Internacional de
Doenças (CID) e, por isso, é subnotificada.
👉 Não há dados sobre a prevalência da doença na forma primária, mas, para
termos uma noção em números, uma pesquisa da Federação Nórdica de Ginecologia e
Obstetrícia em 2017, levando em conta estudos de 18 países, identificou
que 14% das gestantes tinham a doença na forma secundária (a fobia do
parto).
🎯 Como é algo recente e que não tem um CID, não há um protocolo de
tratamento. O que os especialistas indicam é o acompanhamento multiprofissional
com psicólogo, psiquiatra e ginecologista.
A psicóloga Sheila Rodrigues, voluntária do
Programa Saúde Mental da Mulher do Hospital das Clínicas da USP, conta que tem
recebido cada vez mais pacientes com tocofobia.
Ela explica que é feito o acompanhamento com
psicólogos -- já que é um quadro de ansiedade -- e, dependendo do estágio
da doença, é feito também o acompanhamento com o psiquiatra para o
tratamento com medicamentos.
“A gente trata em terapia para entender de onde vem
esse medo, se veio de uma experiência já na puberdade em que os pais colocavam
muito pânico sobre isso. A única forma de uma mulher ter 100% de certeza é não
transando, mas a vida sexual é parte importante da saúde. A gente precisa
entender o medo até que consiga racionalizar e se sentir seguro com o que a
medicina oferece”, explica Sheila.
A médica e influenciadora digital Maria Júlia
Ferreira explica que o tema tem sido recorrente nos consultórios e sugere
uma mudança do olhar profissional dos ginecologistas para apoiar as
pacientes a fazerem uma escolha que possa minimizar a ansiedade.
A gente considera a escolha do método contraceptivo
como um tratamento para evitar a gravidez. Só que o que temos visto com a
crescente da tocofobia é que é mais do que isso, é trazer segurança à paciente
de que o desejo dela de não engravidar vai ser respeitado com o método
indicado. — Maria Júlia, médica e influenciadora sobre saúde feminina.
Há alguns anos, Maju Ferreira, como é conhecida
entre seus quase 450 mil seguidores, produz conteúdo sobre saúde feminina e
costuma receber muitas dúvidas sobre tocofobia.
Fonte: g1
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